Em entrevista ao HuffPost Brasil, autora de “Calibã e a Bruxa” fala sobre a existência de uma nova caça às bruxas e como esse movimento permite o controle das mulheres.
(HuffPost, 21/10/2019 – acesse no site de origem)
“A imagem da bruxa e a acusação de bruxaria não é algo que está em um passado distante. É algo que hoje está sendo usado novamente para disciplinar mulheres”, afirma a filósofa Silvia Federici, 77 anos, em entrevista ao HuffPost Brasil. Para ela, o movimento de caça às bruxas que matou milhares de mulheres no século passado ganha roupagens tão cruéis quanto na atualidade.
Nascida na Itália e hoje com residência nos Estados Unidos, onde é professora emérita da Universidade de Hofstra, em Nova York, Federici ajudou a fundar o Coletivo Feminista Internacional e participou do movimento Wages for Housework (Salários pelo trabalho doméstico, em tradução livre) nos anos 70.
Ela é autora do cultuado ensaio Calibã e a Bruxa (Editora Elefante), que marcou os estudos feministas ao mostrar como a caça às bruxas na Europa ajudou a estabelecer o capitalismo, junto com exploração das colônias e da escravidão.
“Novamente, mulheres estão sendo acusadas de serem bruxas, e pensar a caça às bruxas hoje é sobre o pensar o crescimento da violência contra a mulher que começa, particularmente, com o crescimento da violência contra mulheres que estão liderando lutas, como Marielle Franco”, explica a escritora ítalo-americana, ao defender a existência de “novas bruxas” hoje.
Federici recebeu a reportagem do HuffPost Brasil na semana passada, em São Paulo, durante intervalo de eventos que compõem sua agenda de visita no País. Pela editora Boitempo, a historiadora lança Mulheres e caça às bruxas: da idade média aos dias atuais, em que revisita argumentos do cultuado Calibã e a Brux e também Ponto Zero da Revolução (Editora Elefante), em que explora as camadas do trabalho doméstico e opressão às mulheres.
Para a filósofa, leis penais não são suficientes para combater a violência contra a mulher e o movimento feminista precisa entender que a luta pelo direito ao aborto deve ser feita conjuntamente com o direito à maternidade plena e relacionada ao entendimento do trabalho doméstico, sim, como trabalho.
“Virar para o Estado e pedir por proteção é um erro porque, em muitas maneiras, tanto o Estado quanto os governos e a polícia são os maiores responsáveis pela violência”, defende.
E adiciona, sobre trabalho doméstico: “É um trabalho que é feito pelas mulheres e, ainda assim, temos todo um governo, todo um sistema social que de forma alguma dá algum tipo de assistência”.
Em conversa com o HuffPost Brasil, Federici explica por que é importante revisitar a história da caça às bruxas, relacioná-la com o presente, e pensar sobre os efeitos da apropriação da força de trabalho e do corpo feminino.
Leia a entrevista completa:
HuffPost Brasil: Você lançou o Calibã e a Bruxa em 2004, em que explora a fundação do capitalismo do ponto de vista da história das mulheres e, agora, lança Mulheres e Caça às Bruxas (Editora Boitempo). Por que retomar a história da “caça às bruxas” no contexto atual?
Silvia Federici: Para mim, a questão sobre a caça às bruxas é muito importante por diversas razões. Em primeiro lugar, houve uma enorme perseguição que foi completamente apagada pela história. Que nunca foi ensinada em nenhuma aula. Nunca foi dada a ela nenhuma importância. E o pior, a história das bruxas foi transformada em lenda, e a figura da bruxa foi ridicularizada. Eu viajei para lugares onde mulheres eram queimadas vivas, massacradas, e agora, a caça às bruxas nesses lugares é usada para atrair turistas. Eles usam a imagem das bruxas, voando na vassoura, criam uma história muito fantástica. Nada é contado sobre essa terrível, terrível perseguição.
Atacar mulheres enquanto bruxas está conectado com os desenvolvimentos que emergem das novas formas de acumulação capitalista.
Além disso, hoje, nós encontramos novas formas de caças às bruxas em muitas partes do mundo. Na África, na Índia, mulheres estão novamente sendo acusadas [de bruxaria] e são torturadas e mortas. Milhares de mulheres foram mortas em diversos países africanos – na República Centro-Africana, no Quênia, na África do Sul – em diferentes tempos, nos últimos 30 anos – na Zâmbia, na Tanzânia; [também] em diferentes regiões da Índia.
Porque, novamente, atacar mulheres enquanto bruxas está conectado com os desenvolvimentos que emergem das novas formas de acumulação capitalista, as novas formas de trabalho, a privatização da terra, o ataque a relações comunitárias, e também, à chegada a essas áreas dessas perseguições, do que eles chamavam de ‘o novo missionário’, que são grupos pentecostais, grupos evangélicos, que estão novamente utilizando em suas religiões toda a temática do diabo, do demoníaco, dizendo que as pessoas estão infelizes e pobres porque são bruxas, e assim estão contribuindo para o desmantelamento de comunidades que já são vitimizadas pelos problemas da austeridade, do extrativismo, por todas as questões ligadas ao capitalismo.
A questão da caça às bruxas é muito importante porque está nos ajudando a entender por quais caminhos estas particulares formas de perseguições de mulheres, estão, na verdade, ajudando na expansão desta relação destrutiva.
Em Mulheres e Caça às Bruxas você afirma que hoje existem “novas bruxas”. Quem são elas?
Novamente, mulheres estão sendo acusadas de serem bruxas, e também, é sobre o crescimento da violência contra a mulher que começa, particularmente, com o crescimento dessa violência contra mulheres que estão liderando lutas, como Marielle Franco, mulheres que estão liderando lutas na área urbana, liderando lutas contra o encarceramento, contra o empobrecimento, contra despejos; ou liderando lutas em áreas rurais: as mulheres indígenas, Berta Cáceres [ativista ambiental Hondurenha, assassinada em 2016], mulheres lutando contra a agricultura industrial, contra sementes transgênicas, etc.
Sim, estas são as novas bruxas. Mulheres que estão praticando formas antigas de medicina, utilizando ervas e plantas, curandeiras, estão agora sendo acusadas de serem bruxas. Então que acho que é muito, muito importante, enxergar que a imagem da bruxa e a acusação de bruxaria não é algo que está em um passado distante. É algo que hoje está sendo usado novamente para disciplinar mulheres.
A imagem da bruxa e a acusação de bruxaria não é algo que está em um passado distante. É algo que hoje está sendo usado novamente para disciplinar mulheres.
Essa “caça às bruxas” que acontece na atualidade, então, pode ajudar a explicar altos índices de feminicídios e violência contra a mulher?
O que estou dizendo é que há uma batalha sendo travada por mulheres. E essa luta é errada. É errada em proporção à destruição de nossas vidas. É errada em proporção à destruição de nosso meio-ambiente. Das necessidades básicas de reprodução que nossas famílias tem. Então mulheres estão realmente batalhando na linha de frente. E elas também estão recusando serem subordinadas e dependentes de homens. Essa é a reação. Essa é a reação de governos que veem mulheres como um grande oceano de trabalho barato que pode ser utilizado em todos os lugares. Nós somos as trabalhadoras ideais. Estamos nas fábricas, nos lares, nos serviços – e muitas vezes estamos em todos estes lugares em momentos diferentes do dia. Há uma quantidade enorme de exploração sendo feita. E há uma quantidade enorme de lutas.
Todas essas acusações são parte do processo: o feminicídio, a violência, acusar mulheres de serem assassinas quando elas querem fazer um aborto – são todas maneiras de intimidar uma mobilização feminista, uma insurgência feminista.
Nós somos as trabalhadoras ideais. Estamos nas fábricas, nos lares, nos serviços – e muitas vezes estamos em todos estes lugares em momentos diferentes do dia.
Aqui no Brasil, há 13 anos, a Lei Maria da Penha visa combater e prevenir a violência contra a mulher, mas boa parte de suas ações afirmativas que visam a prevenção não são implementadas em sua totalidade. Você acredita que leis são o caminho para combater a violência?
Eu não coloco minha confiança neste tipo de lei, neste tipo de medida. Nós temos visto que aumentar as penas de agressores, por exemplo, em muitos casos, vitimiza os homens de comunidades mais pobres. E eu acho que essa é uma questão muito importante aqui. De onde a violência vêm? E eu diria, e acho que não estou sozinha nisso, que a maioria da violência é sempre, e antes de tudo, institucional. Então, virar para o Estado e pedir por proteção é um erro porque, em muitas maneiras, tanto o Estado quanto os governos e a polícia são os maiores responsáveis pela violência.
Então, a questão é que o melhor jeito de responder a esta violência é realmente as mulheres se organizarem, se mobilizarem, criarem formas de suporte mútuo, formas de conexão, formas de reprodução que são mais cooperativas para superar o isolamento no qual as mulheres foram forçadas a viver. Eu acho que essa é a melhor forma de defesa para as mulheres, e é a melhor forma pela qual mulheres podem efetivamente confrontar o Estado.
Virar para o Estado e pedir por proteção é um erro porque, em muitas maneiras, tanto o Estado quanto os governos e a polícia são os maiores responsáveis pela violência.
Porque o que me parece que está acontecendo com esta Lei ― que eu não conheço muito bem ― é que ela está colocando a culpa em alguns homens em particular. Em outras palavras, se o argumento é de que há homens que estão cometendo transgressões e precisam ser educados e punidos, eu acho que chegamos à conclusão de que a violência individual é sempre um produto da violência institucional.
Homens se tornam violentos porque acreditam que têm impunidade. Porque eles têm governos que, de certa forma, toleram e justificam a violência deles. E chegamos à conclusão de que as grandes fontes de violência estão sempre no topo. Por exemplo, inacreditável militarização da vida cotidiana – há uma importante socióloga e ativista feminista chamada Jules Falquet que fez uma excelente análise das consequências do fato de que nos dias de hoje há um número crescente de homens que têm empregos que exigem violência. O número de guardas vem aumentando, o número das pessoas nos exércitos, companhias de exércitos particulares, todos esses lugares tem homens armados. Tudo isso tem uma consequência nas vidas individuais e nas famílias. Se você está lidando com uma arma, respondendo a problemas com violência, quando você vai para casa é assim que você trata a sua esposa, seus filhos.
Você defende que a criminalização do aborto é só mais uma forma de controle dos corpos das mulheres. Gostaria que você explicasse essa questão e falasse um pouco sobre quais seriam essas outras formas de controle. O trabalho doméstico seria uma delas?
Bem, toda a organização da vida em família é um jeito de controlar as mulheres. O fato de que este trabalho reprodutivo, que produz uma quantidade enorme de riquezas para os empregadores- pois é o trabalho que reproduz a mão-de-obra – ser completamente não pago, não remunerado, não ser considerado trabalho. Essa é uma forma de opressão, de exploração, é uma forma de violência contra as mulheres. Ainda, há todo o controle sobre a sexualidade da mulher. E este é o jeito como o Estado se apropria do corpo das mulheres. E esse é motivo para que isso esteja no centro da luta feminista.
Toda a organização da vida em família é um jeito de controlar as mulheres.
Em maio, o HuffPost Brasil publicou uma série de reportagens chamada “O Custo Social de Ser Mãe”, explorando a relação entre a maternidade, falta de creches e mercado de trabalho. Existe uma crítica de que o movimento feminista não olha para estas questões em sua totalidade. A que você atribui isso?
Eu acho que essa questão ainda precisa ser resolvida, ainda precisa ser encaminhada. Qualquer coisa que eles [empresas, patrões, estado] pedem, as mulheres fazem, vamos encarar isso. Se nós temos filhos, mesmo se o homem ajudar, não há dúvidas – particularmente quando a criança é pequena – que é uma quantidade tremenda de trabalho e que este trabalho ainda é realizado por mulheres. É um trabalho que é feito pelas mulheres e ainda assim, temos todo um governo, todo um sistema social que de forma alguma dá algum tipo de assistência. De forma alguma. Esse sistema explora as mulheres, tira proveito do trabalho das mulheres, mas não dá o sistema de suporte que é necessitado. Para que, apenas um exemplo, seja possível viver a maternidade de uma forma que não arruíne as nossas vidas. Penso que o movimento feminista não se dirigiu a essa questão. O movimento se dirige a questão do aborto, demanda o direito ao aborto ― o que é muito importante, sim; mas não olhou para o outro lado do problema, que é o direito de ser capaz de ser mãe, o direito de reproduzir nossas famílias, de uma forma que isso não destrua nossas vidas.
É um trabalho que é feito pelas mulheres e ainda assim, temos todo um governo, todo um sistema social que de forma alguma dá algum tipo de assistência.
Em sua palestra no Memorial da América Latina no mês passado, em São Paulo, você afirmou que é preciso fazer do trabalho doméstico uma revolução. Esta seria a saída?
Este tipo de revolução, em várias formas, já está acontecendo. Eu vejo isso em muitos lugares. Mulheres já estão começando, por exemplo, a organizar suas vidas em uma maneira que não as isola na performance de tarefas domésticas. Por exemplo, cozinhando juntas. Não significa que deve haver apenas mulheres cozinhando juntas. Mas a ideia de que a reprodução não é uma atividade que deve acontecer de uma maneira separada, como uma atividade individual – que é a forma pela qual é organizada. E este como [o trabalho reprodutivo se organiza] é a causa de muito sofrimento, pois essa isolação, quando você realiza um trabalho diariamente, sozinha e sem recursos, ou com recursos escassos, é isso que torna o trabalho reprodutivo tão difícil. E assim, para muitas mulheres, é por isso que tal trabalho é rejeitado; muitas mulheres não querem ter nada a ver com a reprodução.
Penso que muitas mulheres chegaram a conclusão de que trabalhar e fazer muitas das atividades necessárias juntas pode transformar a relação com o trabalho, transforma as relações.
Mas eu vejo que já há uma confiança para estabelecer formas mais cooperativas de reprodução. Os “comedores populares” [restaurantes populares no Peru], os “merendeIros” – todos exemplos particulares da América Latina. Penso que muitas mulheres chegaram a conclusão de que trabalhar e fazer muitas das atividades necessárias juntas pode transformar a relação com o trabalho, transforma e politiza as relações. Porque você passa a tomar decisões coletivas. Você pode discutir com outras mulheres como fazer as coisas. Isso te dá mais poder em termos de relação com o Estado, com os homens.
Então essa transformação já está acontecendo. Insisto que essa transformação deve ser acompanhada de um interesse cristalino de reivindicar as riquezas. Quando digo reivindicar as riquezas, é importante pontuar que isso varia de acordo com o contexto: podem ser terras, acesso à água, pode ser [a presença nos] parlamentos, acesso a outros espaços, serviços… Um movimento de massa que tenha este programa. Recuperar recursos para que eles se coloquem à disposição de nossa reprodução.
A questão da reprodução, de uma forma ou de outra, irá influenciar a vida de uma mulher por muito tempo.
O que nós queremos? Esta é a discussão que deve existir nos espaços de mulheres. Como queremos nos reproduzir? Como nós vemos – qual é a ideia da maneira pela qual podemos organizar nossa reprodução? A ideia é todas sozinhas, em nossas casas, cada uma com sua criança, com seus problemas, etc. – se não assim, então como? Creio que um movimento de massa, creio que essa nova geração de mulheres jovens deve colocar esse assunto na mesa.
Pois o ódio à reprodução segue presente, e quando você é jovem você acha que encontrará um jeito – você não encontrará. Eu te garanto. Eu não me casei, eu não vivi com meu companheiro pela maior parte de nosso relacionamento e decidi não ter filhos. Ainda assim, fiz muito trabalho doméstico. A questão da reprodução, de uma forma ou de outra, irá influenciar a vida de uma mulher por muito tempo. A menos que você seja uma mulher capitalista, uma mulher burguesa, e então você pode contratar outra mulher para fazer este trabalho. Mas, evidentemente, esta não é a solução. Não é a solução.
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