(Folha de S. Paulo, 24/02/2016) Ano passado foi o ano em que meu corpo descobriu o que na teoria eu já achava que sabia. Não existe emancipação individual que não passe por um movimento coletivo. Diferente do que alguns – e infelizmente algumas – insistem em afirmar, o feminismo não é uma paixão triste, uma afirmação do ressentimento e da vitimização. É a virada de mesa.
Pensar em emancipação coletiva exige desorganizar e desnaturalizar o que a primeira vista parece natural. Requer inverter a lógica de que só um pequeno grupo de pessoas têm valor e, portanto, direitos. O feminismo é uma discussão sobre o valor: o valor econômico, o valor cultural e artístico, o valor das trocas afetivas que determinam a nossa economia desejante nesse mundo.
Redefinir nosso lugar no mundo, o valor que nos é atribuído é lutar pelas nossas vidas.
Porque o machismo mata, de muitas maneiras, todo dia. Mata fisicamente, concretamente: nas cenas corriqueiras de violência doméstica e nas salas clandestinas de aborto, e mata também aos pouquinhos, silenciosamente.
Mata quando nos transforma em objetos cujo único intuito é atender o desejo masculino. Há nessa objetificação alguma coisa que arranca um pedaço da nossa potência de vida. Mata mais ainda, quando nos sentimos carne de segunda, apodrecida, pronta para ser jogada no lixo, como mercadorias que não atendem à demanda do mercado.
O machismo também mata quando silencia nosso desejo de enveredar por caminhos desconhecidos, quando desqualifica nossa fala, nossas ideias e nos obriga a ocupar um lugar fixo, e desvalorizado. E, por fim, mata também quando nos obriga a assumir um modus operandi fálico e também machista para não ser engolida e amassada pelo trator das relações de poder. Para não confundir: um modus operandi machista não é aquele que corta o cabelo curto, fala grosso e usa terno e gravata. Uma forma machista de estar no mundo é a que abraça sem limites a lógica da competição individual, explorando os mais vulneráveis, silenciando opositores.
As mulheres sempre resistiram de muitas maneiras ao machismo nosso de cada dia. Ora não se deixando enquadrar e sendo taxadas como loucas, piranhas, machonas, histéricas, depravadas. Ora contornando pelas beiradas, encontrando rotas de fuga para não sufocar. Resistiram enfrentando o julgamento e a culpabilização daqueles que perversamente nos ensinam que é nossa culpa o fato de que outras pessoas se apropriem do nosso corpo, do nosso desejo, de nossa força de trabalho em benefício próprio. Não é nossa culpa a vulnerabilidade da nossa condição em um sistema que não nos ajuda a virar a mesa de forma nenhuma.
Sabemos que algumas mulheres, graças a uma série de privilégios e à luta das gerações anteriores, não sofrem como as demais. Nenhum dos pontos dessa discussão toca profundamente a sua pele. Algumas chegam a proclamar uma nova categoria, a de: homem fêmea. Aquelas que supostamente transcendem, individualmente, o machismo da sociedade. A homem fêmea não gosta de vitimização, sua lógica é a do sucesso. O que não vai bem merece ser empurrado para debaixo do tapete, não é bom expor derrotas. A homem fêmea não gosta de choro de mulher, de sofrimento. Ela já entendeu que não adianta espernear com os machões geniais. Nem se suicidar. Melhor ser como eles, um machão bem humorado e racista que fala sobre o corpo da babá ignorando que, como ele, essa mulher também é um sujeito. Uma sujeita política. O feminismo é a luta contra o privilégio dos homens machos e das homens fêmea. Com a certeza de que o homem fêmea é uma mulher desconectada da sua condição que pode despertar para a luta.
Logo, aos homens fêmeas e aos machistas clássicos, daqueles que fumam charuto, passam a mão na bunda e recitam poemas, fica o nosso aviso carinhoso: a caravana vai passar, e vocês vão ter que ceder o lugar nesse trem da história ou descer na próxima estação. Não é maldade ou ressentimento. É que a gente quer rir também, quer amar também, quer recitar poemas e fumar charuto, a gente quer sentar no sofá e beber do whisky, a gente quer escrever livros e publicar, quer gozar alto. Não se trata de fazer como vocês fazem e desprezar o papel de mãe, cuidadora, enfermeira, confessora, secretária, faxineira, ajudante, cozinheira, produtora. Todos esses são trabalhos criativos e dignos como qualquer outro. O que queremos é dividi-los com vocês, sem definições asfixiantes, sustentadas por qualquer explicação biológica que remonta aos piores tempos do fascismo. Com essa nova divisão, em que todas poderemos ocupar todos os lugares, quem sabe vai chegar o dia onde a gente possa rir junto.
O feminismo é a luta contra as forças que nos oprimem e querem nos fixar em lugares subalternos. Mas não podemos fazer isso sozinhas, cada um por si. Para ter a força suficiente para virar a mesa precisamos estar unidas. Essa união é política. Se não fomos consideradas animais políticos por Aristóteles e pela política ocidental, vamos chutar a porta da pólis e nos fazer ouvir.
Mariana Patrício é Doutora em Letras, co-editora da Revista DR e uma das articuladores do movimento Mulheres Contra Cunha.
Acesse o PDF: O machismo mata, de muitas maneiras, todo dia”, por Mariana Patrício (Folha de S. Paulo, 24/02/2016)