Mortalidade materna tem altos índices no Norte e entre povos tradicionais. Uma das soluções: integrar e equipar trabalhadoras do cuidado que acompanham gestantes e garantem partos realmente humanizados — além de garantir sua remuneração
O Brasil pena para alcançar a meta de redução de mortalidade materna estabelecida para 2030. Em cinco anos, o país deveria registrar menos de 30 mortes por 100 mil nascidos vivos, mas ainda amarga a razão de 68,1. E há ainda grandes desigualdades regionais: no Norte, mais mães morrem durante a gravidez, parto ou puerpério. Entre os cinco estados com a pior situação, três ficam nessa região: Roraima, Amazonas e Tocantins. Outra iniquidade diz respeito à etnia: morrem 115 mães por 100 mil habitantes entre os povos indígenas – e 44% deles vivem em estados do Norte.
Não há como reverter esses indicadores, portanto, sem pensar em como oferecer cuidados e boas condições de pré-natal e parto para as mulheres indígenas. Para que isso aconteça, também parece inevitável que o SUS busque compreender essas diferentes culturas e suas características únicas.
Há um caminho interessante para isso, que já começa a ser posto em prática no Amazonas: a integração de parteiras indígenas com as equipes da Atenção Básica do estado. É o que conta Júlio Schweickardt, sociólogo e pesquisador da Fiocruz Amazônia, em entrevista ao nosso programa SUS 35 anos, que celebra o aniversário da lei que fundamentou o sistema e busca contribuir para pensar seu futuro.
Júlio, que trabalha há 23 anos na região amazônica, especialmente com saúde de populações indígenas e quilombolas, começou a se aproximar de parteiras tradicionais em 2016. Foi a partir de uma “experiência exemplar” do Ministério da Saúde, o Programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais, que algumas delas começaram a se organizar, no Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Alto Rio Solimões, no Amazonas. A Fiocruz organizou oficinas com as parteiras e ajudou a pensar a articulação de seu trabalho com as equipes multiprofissionais.
“A gente tem uma ideia de que a parteira é aquela que faz o parto, mas ela também acompanha todo o processo da gestação. São aquelas pessoas que estão na comunidade e são procuradas”, explica Júlio, ao contar como foi pensada a inclusão dessas personagens no cuidado das gestantes pelo SUS.
Esses encontros, conta o sociólogo, serviam para a formação das parteiras mas também das equipes do SUS: “as equipes também precisam estar preparadas, ter um processo de educação permanente, porque necessitam também entender que a parteira também tem seus saberes, seus conhecimentos, suas estratégias”. Ali foi traçada uma estratégia de fluxo entre o sistema de saúde e as indígenas: um lado aciona o outro, e vice-versa, quando há uma nova gestante a ser acompanhada.
Esse acompanhamento e trabalho conjunto permitiram a redução da mortalidade materna naquele Dsei. “Obviamente a saúde é uma questão complexa, nem em todos os territórios isso será possível, mas a experiência mostra a possibilidade de incluirmos essas ‘profissionais’ – mesmo não tendo uma formação acadêmica, elas atuam como cuidadoras”, avalia Júlio.
Uma vitória alcançada por elas foi a inclusão das parteiras no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), algo muito inédito, segundo o sociólogo. Hoje, há cerca de 1,2 mil parteiras cadastradas – um número significativo, mas que claramente ainda não engloba todas elas. Isso permite que sejam incluídas e reconhecidas nos territórios onde vivem e atuam.
Parteiras terão seu trabalho remunerado?
Mas um ponto chave para seu reconhecimento é a remuneração dessas trabalhadoras, que ainda não é garantida. Segundo Júlio, esse debate surgiu e ganhou força na Associação de Parteiras Tradicionais do Estado do Amazonas Algodão Roxo, que nasceu a partir das oficinas realizadas na região. “Houve alguns projetos de lei, algumas iniciativas municipais, mas nunca conseguimos avançar muito”, conta ele.
O reconhecimento financeiro pelo trabalho que praticam é essencial porque, além do tempo que se dedicam a cuidar das gestantes e realizar seu parto, elas muitas vezes precisam fazer deslocamentos e “às vezes levar até comida para ajudar na alimentação daquela família”. Júlio continua: “Elas também devem ser reconhecidas enquanto pessoas que atuam no cuidar da saúde”.
A inclusão das parteiras nas equipes do SUS precisa ser acompanhada de remuneração, para que não haja exploração desse trabalho que, na maior parte das vezes, é voluntário. Talvez uma saída fosse incluir as parteiras tradicionais no Plano “Brasil que Cuida”, que está sendo desenvolvido pelo governo federal e busca valorizar o trabalho de cuidado no país.
Júlio reflete sobre como uma visão equivocada das parteiras atrasa o seu reconhecimento: o imaginário de que elas ocupam um lugar “do passado” – como as benzedeiras, rezadeiras, pajés etc –, que devem ser superadas e substituídas por equipes médicas. “Essa é uma questão que também é importante de ser discutida: o cuidado de saúde não acontece somente pela equipe. A política pública também precisa olhar para aqueles que estão nos territórios cuidando […], porque a população não vai só no posto de saúde, vai também buscar outras pessoas que às vezes são o primeiro ponto de cuidado, a real porta de entrada”. Esses cuidadores tradicionais, aliás, são essenciais para que haja uma cobertura de 100% do território.