O relacionamento abusivo vivido por Clara, personagem de Bianca Bin na novela “O Outro Lado do Paraíso”, escancara a realidade de muitas brasileiras. A recusa da personagem em denunciar o agressor, seu marido Gael (Sergio Guizé), após um episódio de violência física, é outro ponto em comum entre a vítima da ficção e as da vida real. Quem confirma é a promotora de justiça Fabiola Sucasas Negrão Covas, membro do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID) e assessora do Centro de Apoio Operacional do Núcleo de Inclusão Social de Direitos Humanos.
(UOL, 31/10/2017 – acesse no site de origem)
Só no primeiro semestre de 2016, o Ligue 180, conhecido como Central de Atendimento à Mulher, recebeu cerca de 58 mil relatos de violência doméstica. O número corresponde a um aumento de 133%, em comparação ao mesmo período do ano anterior. Apesar do crescimento, muitas mulheres ainda sofrem caladas. Um levantamento do Data Senado de 2017 mostrou que 27% das vítimas ainda não fazem nada em relação ao autor da agressão, assim como Clara.
Leia mais: Três de cada cinco mulheres já foram vítimas de relacionamentos abusivos (Fantástico, 29/10/2017)
O que está por trás do silêncio?
Visto com maus olhos pela sociedade, que ainda julga as mulheres que permanecem em um relacionamento abusivo, esse silenciamento esconde uma série de fatores. “Não se trata de uma simples omissão em buscar ajuda”, diz Fabiola. “Elas sentem medo de que o agressor volte a agir de maneira ainda mais violenta, diante do registro da ocorrência ou separação, de perder a guarda dos filhos ou fazê-los sofrer, de ficarem desamparadas financeiramente. Isso sem falar na vergonha, falta de confiança nas instituições de amparo e do risco de descrédito. E o principal de tudo, elas acreditam que ele mudará.”
O ciclo da violência em um relacionamento
A grande dependência emocional atrelada a uma possível transformação de comportamento por parte dos companheiros é o que os especialistas chamam de “lua de mel do ciclo de violência”. É quando, ciente da agressão, o autor se mostra arrependido, pede perdão e promete mudar. E a vítima o inocenta, chegando a acreditar que contribuiu para estar naquela situação”.
Qualquer semelhança com Gael não é mera coincidência. Após espancar Clara e atirá-la escada abaixo, o rapaz fica assustado diante do estado de saúde da mulher e pede desculpas. “Me perdoa. Eu bati por ciúme. Ciúme é prova de amor, eu te amo tanto que enlouqueci de pensar que aquele garçom e você podiam ter alguma coisa”, tenta justificar.
Para a promotora, existem dois problemas evidentes na ficção, que se aplicam também na realidade. “Naturalizar a violência a ponto de tratá-la como prova de amor e descrever o responsável como um doente é gravíssimo”, diz.
Da violência psicológica ao feminicídio
O “arrependimento” é a terceira etapa de um longo ciclo de violência. A primeira delas é marcada pela evolução da tensão, começa com a violência psicológica. Ameaça, ofensa, humilhação, xingamentos e controle são algumas das atitudes mais comuns. Nesse momento, a mulher não necessariamente se reconhece como vítima, acha que fez por merecer e busca justificativas para tolerar. A segunda etapa é quando acontece a explosão, seguida das agressões física e verbal mais acirrada. Nesse momento, ela se choca e se sente completamente fragilizada. Mas logo é amparada pelas falsas promessas da “lua de mel”.
“Sabemos que ele se repete e se intensifica em escalada, até a etapa final, o feminicídio”, explica Fabiola. “Daí a importância do enfrentamento da violência contra a mulher, que não se dá somente por meio da denúncia.”
Muito além da queixa
Para a promotora, a denúncia é só um dos pilares fundamentais do enfrentamento. Até chegar a esse ponto de repressão ao agressor, ela precisa se sentir protegida e assistida, não só pela Justiça, mas por profissionais da saúde. “Se ela estiver em vulnerabilidade psicológica, a grande chance é que volte atrás, retire a queixa, reate o relacionamento e permaneça em perigo”, diz. “Num cenário de dependência emocional e financeira, isso não é raro de acontecer.”
Ela lamenta, porém, não haver serviços públicos suficientes para esse tipo de amparo, assim como o fato de a baixa fiscalização das medidas protetivas não garantir proteção à vítima. “A integração e garantia de todos esses serviços é essencial. Mulheres têm morrido em silêncio e também com o documento na mão. Sem o envolvimento efetivo da Polícia Civil, da Policia Militar e da Guarda Militar como fiscais do cumprimento da ordem, o Estado segue escolhendo quais mulheres merecem ser salvas.”
Ela não gosta de estar ali, nem merece
O tempo de decisão de cada vítima também precisa ser respeitado. Segundo Fabiola, elas ainda são muitos julgadas pelo silêncio. “Há quem diga que elas gostam de apanhar, querem estar ali. Isso não é verdade. Falta empatia”, diz. “Antes de questioná-las, é preciso se voltar ao autor dessa violência perversa, que de um lado culpa a mulher e de outro trata o homem como doente. Muitos ainda são vistos como bons pais de família da porta para fora e, por isso, acabam sendo socialmente inocentados. Ninguém nasce violento, ele aprendeu a se relacionar de alguma forma. E a sociedade pode estar contribuindo para cada lesão corporal e feminicídio ao reforçar e justificar atitudes violentas.”
Por isso, Fabiola acredita na importância da conscientização através da novela, que está cumprindo uma das diretrizes da Lei Maria da Penha. No artigo 8º, ela se refere ao respeito que os meios de comunicação social devem aos “valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar”.
Dessa forma, acredita, mais vítimas podem se identificar e se sentirem encorajadas a procurar serviços de assistência social especializado ou o Ministério Público. “Aquelas que agem no início do ciclo tendem a prevenir fatos mais graves.”
Daniela Carasco