(Brasil Post, 04/07/2014) Em um mundo ideal, indivíduos não são “encoxadxs” no transporte público. Em um mundo ideal, as mulheres não são aconselhadas a não usar roupa curta para evitar um estupro. Em um mundo ideal, homens sabem desde pequenos que as mulheres são donas de seu próprio corpo e não existem para sua satisfação. Em um mundo ideal, as mulheres não são segregadas para evitar violência sexual.
São Paulo se distanciou um pouco mais de um lugar ideal nesta sexta-feira (04) quando sua Assembleia Legislativa aprovou a obrigatoriedade de vagão exclusivo para as mulheres, o chamado “vagão rosa”.
Há quem comemore a decisão, quem diga que é um avanço no combate à violência contra a mulher, quem se sinta segura no vagão rosa e apoie a ideia, mas eu quero explicar neste texto por que eu sou contra essa decisão.
1) Segregar não é a solução. A solução, como em vários problemas sociais que vivemos, está na educação. Homens PRECISAM aprender que o corpo das mulheres não lhes pertence. É uma questão cultural que tem a ver com a forma como as mulheres são vistas (e se enxergam também) como objetos para satisfação masculina, com a cultura do estupro, com a ideia de que “aproveitar a oportunidade” de estar em um vagão lotado para “se dar bem e passar a mão na novinha”. E pior, achar que não é nada de mais ou que ela pediu porque estava de saia curta. Repeito e convivência pacífica, resumindo. Como a Marcha das Mulheres afirma: “Consideramos esse projeto um grande problema, pois propõe que, para os homens pararem de assediar as mulheres no transporte, somos nós mulheres que devemos perder o direito de entrar em todos vagões e ônibus. É um problema porque somos 52% da população, e em São Paulo representamos 58% dos(as) usuários(as) dos serviços de transporte público.”
2) Pare de culpar a vítima. Se não houvesse mulheres no metrô não haveria encoxada, certo? ERRADO, óbvio. Mas é essa a mensagem que o vagão rosa passa. Como se as mulheres devessem ser separadas do “normal” – o que naturalmente evoca uma citação do clássico “O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir. “A humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo”, já dizia uma das mais famosas obras feministas. Importante frisar: eu não estou sugerindo a criação de um “vagão azul” para segregar os homens por causa disso (ou pelo fato de que somos maioria no metrô), isso seria simplesmente idiota. O que eu quero frisar é que o assédio é resultado da cultura do estupro tão evidenciada pela pesquisa do Ipea que foi duramente criticada e provocou o movimento #NãoMereçoSerEstuprada. Ninguém pede pra ser estuprada ou abusada em lugar nenhum porque ninguém tem o direito de invadir o espaço alheio. Separar a vítima do agressor é dar liberdade a ele. Como disse a socióloga Marília Moschkovich em um artigo publicado na Carta Capital: “As mulheres, que sofrem as agressões, são confinadas a um espaço limitado. Quer dizer: além dos assédios que limitam nossa liberdade, as políticas públicas que deveriam combatê-los fazem o mesmo. Não faz o menor sentido, não tem a menor lógica. Para sermos livres precisamos ser menos livres – é isso, mesmo?”
3) Pênis > Cérebro? Separar homens de mulheres no espaço público pressupõe que os homens são incapazes de conter seu desejo sexual ao ver uma mulher. Veja se não é o monstro da cultura do estupro aparecendo aqui novamente? Nessa lógica, o homem se isenta da responsabilidade do assédio porque ele é incapaz de controlar seu órgão sexual. Tradução: impunidade.
4) Heteronormatividade. Agora vamos fingir que homens não abusam outros homens e mulheres não abusam mulheres? Cito outro trecho do texto da Marília: “Separar as mulheres dos homens no transporte público, além de tudo que já mencionei, ainda reforça essa ideia retrógrada e surreal de que a heterossexualidade e heteroafetividade são o “normal”, o “natural”, e de que relacionamentos gays e lésbicos são exceção, aberração, etc. Ou seja, no fim das contas, políticas como essa do vagão exclusivo estão muito mais para Marco Feliciano do que para Simone de Beauvoir.”
5) Ignorando todos os itens acima, o vagão rosa já mostrou que não funciona. Uma reportagem do Globo publicada no ano passado mostrou que homens usam o vagão rosa no Rio de Janeiro (onde já é lei desde 2006) porque não há fiscalização. “Eles entram e ainda querem bater boca com as mulheres que reclamam. Já vi situações revoltantes, de o carro ter vários homens sentados, uma mulher grávida entrar, e ninguém falar nada”, disse uma entrevistada pelo Globo. Procuradas pela reportagem, as empresas de transporte disseram que o desrespeito é um problema comportamental. Não brinca? Pois é exatamente o que eu disse acima. Não vai funcionar.
Antes dessa aprovação, a marca Dermacyd, em uma tentativa de se aproximar das suas clientes, fez uma campanha em prol do vagão rosa. A marca diz que os casos de assédio têm se tornado mais frequentes e violentos e, por isso, precisam ter um fim rapidamente, porque “as mulheres que vão voltar para casa no fim do dia de hoje não podem esperar a solução definitiva”. E vão sair do vagão rosa para correr o risco de serem assediadas no brete corredor do metrô, na rua, a caminho de casa, talvez até na própria casa? Não sei vocês, mas esse definitivamente não é o caminho que eu quero seguir para avançarmos no combate à violência contra a mulher. E não digo isso somente como mulher… Penso que a decisão da Assembleia de São Paulo marca uma falha nossa como sociedade.
Gabriela Loureiro, repórter de mundo do Brasil Post
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