Presídios fazem revista vexatória mesmo com scanners corporais

05 de junho, 2025 Gênero e Número Por Redação

Desnudamento de mulheres ainda é realizado em caso de quebra ou erro de leitura de agentes em equipamentos de revista mecânica.

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu este ano que “é inadmissível a revista íntima vexatória com o desnudamento de visitantes ou exames invasivos, com finalidade de causar humilhação”. O julgamento tratava da legalidade de provas obtidas por meio das revistas íntimas vexatórias, e concluiu que essas provas são ilícitas, salvo o caso em que seja decidido o contrário por decisões judiciais em cada caso concreto.

A revista íntima é realizada nos dias de visitas em unidades prisionais e tem como objetivo inspecionar as cavidades corporais de familiares visitantes, para evitar a entrada de objetos proibidos. Mas o que deveria ser um procedimento de segurança se consolidou como um instrumento de humilhação – por isso o nome revista vexatória. Todos os dias de visitas, mulheres de diferentes idades são orientadas por agentes penitenciárias a se despirem para terem seus corpos inspecionados – mesmo em lugares onde a prática é proibida.

Segundo um levantamento realizado em março deste ano pela Conectas Direitos Humanos, ainda não divulgado ao público, pelo menos nove estados e o Distrito Federal proíbem a prática de revistas íntimas: Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Pernambuco, Piauí, Paraná, São Paulo e Tocantins.

Maria* costumava visitar a Penitenciária Estadual de Vila Velha I, no Espírito Santo, em dois horários diferentes: pela manhã e pela tarde. Em março deste ano, em mais um dia de visita, passou pelo scanner corporal na parte da manhã e entrou. Quando saiu, entrou na fila para a visita da tarde. Ao passar pelo scanner novamente, foi surpreendida pela agente penitenciária, que disse que a máquina acusava um corpo estranho na imagem:

“Eu falei: ‘Eu acabei de entrar e de sair do presídio, estou entrando novamente’. Não tem como constar nada de estranho, se eu acabei de entrar e passei no scanner.”

Maria, então, foi levada para outro cômodo, onde abaixou a roupa a pedido da agente e teve seu corpo apalpado. “Ela pede para levantar a blusa e pega na gente, nos peitos, no corpo, e pede para abaixar a roupa até certo ponto, para elas verem as nossas partes.”

O scanner corporal é o principal substituto para as revistas vexatórias. O equipamento não detecta apenas metais. De forma semelhante a um raio-x, ele gera uma imagem em que é possível verificar anomalias. Ao passar por ele, a pessoa tem o corpo escaneado, permitindo a visualização de objetos escondidos.

A tese sobre as revistas vexatórias votada pelo STF prevê que o Ministério da Justiça e da Segurança Pública e os estados promovam a aquisição ou locação dos scanners, além de os distribuírem para as unidades prisionais. Mas não basta disponibilizar o equipamento, é preciso investir em formação profissional para quem o opera.

É o que defende Carolina Diniz, coordenadora de enfrentamento à violência institucional da organização Conectas Direitos Humanos: “Os scanners corporais têm um problema muito grande de operadores”, avalia. Para ela, o primeiro passo é justamente capacitá-los para verificar as imagens.

Um artigo publicado no site da empresa VMI Security, uma das fornecedoras de equipamentos de inspeção corporal no Espírito Santo, destaca que “é importante que o agente penitenciário que fará a revista tenha um bom conhecimento da anatomia do corpo humano.”

De acordo com a Secretaria de Justiça do estado, os servidores que operam aparelhos de scanner corporal recebem treinamento ministrado pelo fabricante do equipamento, que aborda proteção radiológica, noções sobre anatomia humana e demais aspectos técnicos.

A falta de capacitação adequada pode gerar equívocos como o mencionado por Maria. Desde a implantação do equipamento na unidade, ela já precisou passar pela revista íntima cinco vezes. Depois da revista, ela é direcionada novamente para o scanner. E, se a operadora do equipamento continua identificando um corpo estranho, ela perde o direito à visita.

No Espírito Santo, as revistas íntimas são proibidas desde 2012. A Portaria 1.578-S da Secretaria de Justiça veda o “desnudamento parcial ou total e/ou qualquer outra forma de tratamento desumano ou degradante ao visitante, durante o procedimento de revista.” Mas, como ocorreu com Maria, a prática ainda acontece, se os agentes detectarem alguma imagem inconsistente.

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Justiça do Espírito Santo negou a prática de revistas vexatórias em unidades prisionais do estado, em oposição ao relato ouvido pela Gênero e Número. De acordo com a assessoria, “são utilizados mecanismos eletrônicos que auxiliam nas ações de segurança, como scanners corporais, portas e bastão com detector de metais e videomonitoramento, além de contar com equipe operacional treinada para guarda e vigilância.”

Revista vexatória e seletiva

Além do treinamento dos agentes penais, Gisela Baer Albuquerque, secretária de Atuação no Sistema Prisional da Defensoria Pública da União, defende que deverão ser criados protocolos nacionais e estaduais para direcionar as revistas nos estabelecimentos penais. “A Secretaria Penitenciária daquele estado vai ter que criar grupos ou comitês para o acompanhamento da implementação da medida [do STF]”, disse à reportagem.

O relatório “Revista vexatória: uma prática constante” foi publicado em 2021 pelas organizações Agenda Nacional pelo Desencarceramento, Conectas Direitos Humanos, Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Instituto Terra Trabalho e Cidadania, Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Pastoral Carcerária Nacional e Rede Justiça Criminal.

O documento analisa as respostas de uma pesquisa com abrangência nacional, respondida por 471 pessoas. Segundo o relatório, 77,7% dos familiares que visitam unidades prisionais afirmam já terem passado pela revista vexatória. Dessas, 97,7% são mulheres. A pesquisa evidencia também que a violação ocorre de forma muito mais acentuada entre pessoas negras – elas são 69,9% das que passaram por revistas, sendo 15,4% pretas e 54,5% pardas. Os familiares brancos são 26,3% dos que foram submetidos à revista.

Além do perfil dos visitantes, 93,6% das respostas do questionário apontam a presença de scanner corporal nas unidades prisionais. Com base nisso, o relatório ressalta que a instalação dos equipamentos por si só não acaba com as violações de direitos.

Questionados se já haviam sido obrigados a passar pela revista íntima mesmo com o uso prévio do scanner, 41,2% dos familiares afirmaram que sim.

Outro dado reforça que as mulheres são miradas pelos agentes: 40,9% delas passaram pela revista, versus 33% dos homens. A prática, como já mencionado, também é mais comum entre pessoas negras: 71,2% delas foram revistadas, sendo 55% pardas e 16,2% pretas, versus 24,7% de brancos e brancas.

Há nove meses, de quinze em quinze dias, Renata* visita o Presídio de Curvelo, no município de Curvelo, em Minas Gerais. Durante esse período, já precisou passar pela revista vexatória quatro vezes. Segundo os agentes penitenciários, o scanner corporal estaria quebrado.

Renata observou, contudo, que só algumas mulheres são selecionadas para a revista íntima. Essas visitantes são levadas para outro cômodo.

Cada uma entra com duas agentes e é obrigada a tirar toda a roupa, agachar em cima de um espelho três vezes e tossir. Se não, não entram.

“Se tem o scanner, deveria fazer o scanner, né? E, pelo fato de não ser com todas as pessoas, acho que cismam com uma pessoa e fazem isso. Por que não faz isso com todos? Geralmente é mais com as mulheres.”

A denúncia de Renata contradiz a resposta da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais. Procurado pela reportagem, o órgão alegou que a denúncia não procede e que a revista é feita apenas por scanners corporais, portais e banquetas de raio-x. Afirmou ainda que os procedimentos relacionados à visitação nas unidades prisionais estão previstos no Regulamento e Normas de Procedimentos do Sistema Prisional de Minas Gerais.

“As unidades prisionais do estado de Minas Gerais são regularmente fiscalizadas por diferentes órgãos de controle, entre eles o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. As inspeções são periódicas, criteriosas e, em sua maioria, acompanhadas pelo próprio Juiz da Vara de Execuções Criminais” destacou a nota.

Para Carolina Diniz, da Conectas Direitos Humanos, toda revista com desnudamento é, por natureza, vexatória, e deve ser abolida completamente. “ É uma prática sem eficácia comprovada, que pune, na verdade, mulheres e visitantes de pessoas presas. Está criminalizando esses corpos.”

De acordo com Diniz, a prática presume que visitantes das unidades prisionais portam objetos proibidos. “A gente defende que a revista vexatória não deve ser realizada de forma alguma e que o estado tem várias outras formas de exercer o controle do que entra e do que sai do cárcere.”

Tortura sexual

Durante um ano e quatro meses, Célia Pérola visitou o filho na Penitenciária Prof. José de Ribamar Leite, em Teresina, capital do Piauí. Todas as vezes, precisou passar pela revista íntima.

“Eu considero não só uma violência, mas uma tortura sexual. Tortura, porque tudo que é degradante, que é humilhante, passa a ser tortura.”

Na época, a unidade não possuía scanner corporal, então a rotina era sempre a mesma: Célia aguardava, com muitas outras mulheres, o horário da visita do lado de fora do presídio. Assim que liberava, pegava a fila até a entrada principal. Depois de apresentar o nome da pessoa encarcerada, dar o seu nome, entregar documentos e passar pela vistoria da comida, era o momento da revista íntima para todas que estavam ali.

Entravam quatro mulheres de cada vez. Elas passavam por um portal detector de metais e entravam em outro cômodo, onde tinham seus corpos inspecionados. “A gente ficava completamente nua, se agachava nos quatro cantos, agachava quatro vezes de frente, de costas e sacudia.”

Assim como Célia, a Defensoria Pública da União defende que a revista vexatória pode ser equiparada à tortura. “Essa prática viola o princípio da dignidade da pessoa humana, da proteção ao direito à intimidade, à honra, à imagem e também um princípio que a gente tem na execução da pena, que é o da intranscendência da pena”, reforça Gisela.

“A pena não deveria ultrapassar a pessoa condenada, mas com a prática da revista vexatória, a gente tem a punição ao visitante.”

Desde 2014, o Piauí proíbe a revista íntima por meio da Lei Estadual 6.620, que prevê que se a revista mecânica apontar alguma inconsistência e a pessoa ainda quiser realizar a visita, ela deve ser encaminhada para um ambulatório médico, onde são realizados os procedimentos adequados para investigar a suspeita. A lei entende como revista íntima todo procedimento que obrigue o visitante a se despir.

Atualmente, a unidade Penitenciária Prof. José de Ribamar Leite já possui o equipamento de scanner corporal, mas quando ele quebra e vai para a manutenção, a pessoa visitante é obrigada a passar por uma revista com desnudamento se quiser entrar.

Apesar de essa prática ser ilegal, Tânia Maria. relatou ainda precisar mostrar partes íntimas para entrar na unidade. “A gente não tira a roupa toda, tira a calça e a calcinha até o joelho. De cima, só levanta o top e não precisa colocar os seios para o lado de fora.”

Tânia também contou passar por revistas íntimas em outras unidades e entende as revistas como uma violência contra as mulheres: “Não é porque os outros erram, que a gente é obrigado a errar também. Tem que ter revista, mas tem que ser por um raio-x”.

Procuramos a Secretaria da Justiça do Piauí para esclarecimentos, mas até o fechamento da reportagem, não obtivemos retorno.

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