Odara, 30, já tinha denunciado intolerância religiosa sofrida em outro colégio onde lecionava
(Folha de S.Paulo, 12/10/2018 – acesse no site de origem)
Quando no início deste mês viu a foto do ataque racista na porta de sua sala de aula, a professora Odara Dele, 30, conta que reviveu em segundos as agressões que já passou por ser uma mulher negra. “Na escola, quando tinha 8 anos, a professora me chamou de macaca. Aos 12, fui xingada por um colega.”
As agressões foram riscadas a giz na porta da sala do 3º ano D da escola estadual Conselheiro Ruy Barbosa, no Tremembé, zona norte de São Paulo.
Para não deixar dúvidas a quem foram endereçados os insultos, os agressores escreveram o nome da professora seguido pelos xingamentos “preta galinha do caralho”. Acima, o símbolo da suástica em referência ao nazismo alemão. As ofensas foram apagadas em seguida.
O mesmo símbolo havia sido tema recente de uma de suas aulas, quando exibiu o filme “A Outra História Americana”, para justamente discutir os tipos de violência presentes na sociedade. O personagem principal, líder de uma gangue, tem uma suástica tatuada no peito. “Eles [alunos] sabem o que significa porque eu lhes mostrei em sala de aula.”
Formada em ciências sociais, Odara é professora concursada da rede estadual desde 2014. O magistério é encarado como uma forma de direitos humanos por colocar em prática a lei federal que obriga escolas a inserir no currículo ensino da história e cultura africana.
Por ser a única professora negra efetivada na escola, Odara assume papéis diversos, como incentivar as alunas a assumirem os cabelos crespos iguais aos seus. “No começo do semestre, elas aparecem com os cabelos alisados e, no fim, os deixam black power”, diz ela, que entende a mudança estética como resultado das discussões sobre racismo em sala de aula.
A consciência racial, ela conta, vem de ter sido criada por pais que a incentivaram desde cedo a exaltar o fato de ser negra. A começar pelo seu nome, de origem iorubá, que significa “a beleza chegou em casa”. Essa criação foi fundamental para ter reagido, por exemplo, quando foi chamada de “macaca” pela professora na infância. “Fui direto para a sala da diretora e pedi para chamarem meus pais. A professora acabou transferida”, diz ela, que mora com a mãe em uma casa próxima à escola.
Enquanto não está em sala de aula, a professora ministra oficinas de línguas e costumes africanos. Essas matrizes culturais, inclusive, a inspiraram a criar um aplicativo em formato de game direcionado a crianças em idade de alfabetização que ensina palavras em idioma falado em Angola. “Percebia que elas ficam muito no celular com jogos que não acrescentam nada.”
É para crianças pequenas também que a professora organiza encontros para lhes contar histórias sobre figuras folclóricas africanas. As atividades incluem oficinas de culinária típica e artesanato.
Essas foram as formas que ela encontrou para evitar que as novas gerações sofressem como ela de falta de referência da cultura negra nas escolas. “Só fui ter contato com autores como Malcolm X e Toni Morrison aos 14 anos.”
As diversas formas de preconceito que conta ter vivido na infância e adolescência se prolongam na vida adulta e profissional. Quase sempre foi uma das únicas alunas negras nas escolas onde estudou e na faculdade e a situação se repete no ambiente profissional.
Ela conta que é comum perceber reações enviesadas quando se apresenta a turmas novas, formadas, em sua maioria, por estudantes brancos. “Penso nos negros que foram escravizados e resistiram e tento aguentar também.”
O ataque da semana passada não foi a primeira vez que ela foi vítima de injúria racial pelos próprios alunos. Em outra escola onde lecionava, por seguir o candomblé, ela foi dar aula um dia com roupas brancas. Um aluno fez uma foto dela e postou em uma rede social com a legenda: “Hoje vamos ter aula de vodu”.
Na ocasião, ela registrou boletim de ocorrência na polícia por intolerância religiosa e lembra que tentou reverter a situação “pelo diálogo informativo”. Dessa vez, a ida à delegacia foi incentivada pelos próprios estudantes. “Eles me pediram um posicionamento e queriam entender o que estava acontecendo”, disse a professora, que ganhou dos alunos um bolo de chocolate como uma forma de apoio.
“O racismo está presente em nosso país, mas é velado. O véu cai quando surge uma pessoa que defende essas atitudes, e as pessoas se mostram realmente como são”, diz ela, em referência ao atual momento político do país e ao candidato a presidente Jair Bolsonaro (PSL), com histórico de declarações ligadas ao preconceito e à intolerância.
Ela conta que é comum enfrentar resistência diante da temática racista até mesmo de alunos negros. “O preconceito racial é sempre negado.”
No dia seguinte às agressões, alunos procuraram a coordenação da escola para apontar adolescentes de 16 e 17 anos como suspeitos. De acordo com a Polícia Civil, um deles confessou o envolvimento. Os pais foram chamados na escola para uma conversa. O crime foi registrado como injúria racial e está sendo investigado pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância.
A direção da escola decidiu suspender as aulas naquele dia para organizar rodas de discussão sobre racismo. Odara só foi entrar de novo na sala marcada pela agressão nesta quarta-feira (10), para aplicar uma prova. “Eu fingi que nada tinha acontecido e eles também. Sobrevivemos a 50 minutos dentro daquela sala.”
Odara lembra que desde o ano passado tem presenciado atitudes agressivas em sala com mais frequência, principalmente endereçadas a gays e mulheres. Diante disso, a professora diz que tem se reunido com outros docentes para traçar estratégias de enfrentamento. “A palavra empoderamento pode ter virado um clichê, mas é muito importante poder falar, denunciar e agir.”
Por Mariana Zylberkan