A história de Luana e o genocídio da população negra no Brasil, por Stephanie Ribeiro

03 de maio, 2016

(HuffPost Brasil, 03/05/2016) “Mas tinha ficha criminal”
“Deus quis assim, virou anjinho”
“Bandido bom é bandido morto”

Quando um negro morre no Brasil, essas três frases são usadas de forma constante como as melhores respostas para fazer do genocídio sistêmico da população negra um eufemismo.

Então, precisamos falar sobre Luana.

Luana Barbosa dos Reis era uma mulher negra, periférica, lésbica e mãe. Ela morreu após ser tratada de forma brutal e covarde pela polícia militar de Ribeirão Preto (SP).

Leia mais: 
Gênero, raça e classe: Categorias de análise para compreender (não só) as mulheres negras (HuffPost Brasil, 03/05/2016)
Luana Interrompida: no caminho da vida o racismo e a lesbofobia, por Emanuelle Goes (População Negra e Saúde, 01/05/2016)

Luana foi abordada pela polícia (algo rotineiro para qualquer negro em face à segurança pública despreparada, racista, sádica e corrupta). Não acreditaram que ela era uma mulher. Ela foi revistada de maneira invasiva, truculenta e ilegal. O seu golpe de defesa, justificado pelo abuso de poder, serviu de desculpa para um espancamento. Luana foi espancada na rua, na frente de seu filho de 14 anos. Ela foi levada para a delegacia. Após dias internada em um hospital, não resistiu.

A existência de Luana foi oprimida e criminalizada. Ela era mulher, negra, lésbica e pobre. Luana tinha uma moto que “só poderia ser roubada”. Luana tinha uma casa que “só poderia esconder drogas”. Luana tinha uma vida que não tinha valor.

No Brasil, a polícia se julga acima do bem e do mal. Luana foi praticamente executada e o que vimos foi (mais uma vez) a tentativa de culpar a vítima por sua própria morte: “ela tinha ficha criminal”, disseram. Essa, entre tantas outras, é uma das desculpas que a população em geral dá para o assassinato arbitrário de negros no País, estimulado pelo Estado e materializado pela polícia.

Segundo o estudo Violência Contra a Mulher: Feminicídios no Brasil, feito pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) são em média 5.664 mortes de mulheres por causas violentas a cada ano — o equivalente a 472 a cada mês, 15,52 a cada dia ou ainda um óbito a cada hora e meia.

Das mulheres assassinadas no Brasil entre 2001 e 2011, mais de 60% eram negras, não por coincidência, que foram as principais vítimas em todas as regiões, com exceção da região Sul.

No Brasil, o feminicídio contra negras aumentou 54%, sendo que a porcentagem de mulheres brancas mortas de forma violenta diminuiu 9,8% segundo o Mapa da Violência de 2015. Por fim, as mulheres negras registram um aumento considerável na porcentagem da população carceraria nacional e por região.

Mulheres negras são marginalizadas e oprimidas constantemente simplesmente por serem negras. Sendo assim, o caso de Luana não pode ser considerado isolado. Uma infração cometida por ela no passado não justifica a estrutura homicida e racista que regeu o tratamento que foi dado a ela. Nada justifica ser brutalmente espancada na frente de seu filho sem direito à defesa.

A criminalização e culpabiliização das vítimas é um artifício comumente usado para naturalizar o fato de que mulheres, homens e crianças negras e inocentes morrem diariamente no Brasil e se transformam em estatísticas.

“Deus quis assim, virou anjinho”

A cultura de relativização e naturalização da morte de inocentes simplesmente atribui a morte aos encargos de “Deus” e da chamada “Providência Divina”. Crianças negras não “viraram anjinhos” depois que foram mortas por uma bala perdida. Elas se tornam dados, números e vítimas de uma situação que não tem fim e assombra o inconsciente de todo negro no Brasil.

Afirmo com convicção e certeza que essas crianças que foram mortas não queriam ser “anjinhos”, só queriam ser crianças. E isso significa brincar na rua, soltar pipa, colecionar bolinhas de gude, ir para a escola, ter amigos, crescer, estudar, trabalhar, entre várias outras questões que envolvem uma narrativa de crescimento digno, pleno e saudável que deveria ser garantido pelo Estado.

Precisamos parar de usar eufemismos para falar da trajetória de quem morre cada vez mais cedo: eles são negros, pobres e periféricos.

O Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial de 2014 aponta que a taxa de jovens negros assassinados por 100 mil habitantes subiu de 60,5 em 2007 para 70,8 em 2012. Entre os jovens brancos, a taxa de vítimas de homicídio também aumentou: de 26,1 para 27,8. Em números absolutos, isso significa que 29.916 jovens foram mortos em 2012, sendo 22.884 negros e 7.032 brancos. A diferença é gritante. Será mero acaso? Não cabem análises socioeconômicas tampouco raciais?

Caio Daniel levou um tiro enquanto estava jogando bola, Ana Beatriz levou um tiro na cabeça numa festa na casa de um tio, Ryan Gabriel brincava na porta da casa dos avós quando foi baleado e Matheus Moraes brincava de bolinha de gude quando teve o mesmo fim.

Eles estavam sendo o que eram: crianças. Mesmo que seja absurdo pressupor que uma criança tenha sua vida tirada pelas mãos de policiais enquanto brinca na frente de casa, nós nos calamos.

“A culpa sempre é de Deus”

Banalizamos e silenciamos tanto o genocídio de pessoas negras, que nos tornamos cúmplices destas mortes. O ponto principal para a mudança dessa realidade é a quebra do silêncio sobre o racismo. É preciso debater gênero, raça e classe. O brasileiro precisa enfrentar sua realidade.

Não existe uma reação coletiva quanto um negro é morto. Histórias assim não viram capa de jornal. As famílias não receberam apoio da população em peso. Facebook não cria um filtro para foto de perfil ou uma hashtag.

No fundo, vivemos sabendo que o Estado mata negros inocentes. E diante disso nós continuamos em silêncio. Mas, por quê?

A resposta está na falta de empatia dos que não serão assassinados em suas casas, salas, festas, etc. Os fatores? A região onde moram e a cor que possuem. Além, claro, da falta de indignação com os que atiram e pela falta de embasamento sobre a história que explica e embasa facilmente porque a estrutura foi criada para ser racista e matar negros. A indignação coletiva se limita a colocar a culpa destas mortes em “Deus”, afinal:

“Ele quis assim, queria esses anjinhos perto dele”.
“Deus a amava demais, a chamou pra junto dele”.

O Brasil é um dos países onde a fé cristã mais se mostra e até participa da política de forma ativa. Somos educados dentro de religiões que colocam Deus no poder, no controle e que é dono das respostas para tudo. Em nome da fé a esse Deus punitivo, muitas ações criminosas já foram justificadas. Na história nacional, a população indígena foi praticamente dizimada e a negra escravizada “em nome de Deus”.

Hoje entregamos a Ele a culpa pelo “não-desconforto”, pela anestesia e pela indiferença diante das mortes com as quais não nos importamos. A culpa é sempre do outro, do alheio, da alteridade. A culpa da morte de um negro nunca é nossa, e jamais é assumida coletivamente.

Eu gostaria de acreditar que falar que “crianças viram anjinhos” e entregar tudo na conta de um Deus funcionaria. Gostaria de acreditar que 111 tiros foram “sem querer”, que Amarildo não está desaparecido e que Cláudia não sofreu nenhum pouco enquanto era arrastada por quilômetros amarrada a uma viatura. Eu queria realmente pressupor que Luana não sentiu a dor de morrer por ser o que era. Mas não posso e não consigo enxergar um fator que torne todas essas narrativas menos cruéis do que elas são.

Crianças estão sendo assassinadas, mulheres estão sendo espancadas e arrastadas, meninos que andam na rua com seus amigos estão sendo fuzilados. Mais uma criança morreu hoje. Mais uma criança morrerá amanhã. Uma mulher negra morrerá a pelo menos cada dia do ano, mesmo sendo inocente. O meninos negros vão jogar futebol ao lado de corpos porque estão acostumados a isso.

E se você não entende a gravidade disso, não diga que alguém “virou um anjo” para poder dormir em paz ao fim do dia. E para esses tão jovens e inocentes que morrem você nem poderá dizer ou pensar “que bandido bom é bandido morto”, porque eles são seus “anjinhos” não é mesmo?

A cada dia, a cada hora e minuto, no Brasil, o descaso e a dívida com a população negra só aumenta. Essa conta nunca vai bater, essa costura nunca vai fechar. O genocídio da população negra não é teoria, vontade divina, ou algo justificável.

Acesse no site de origem: A história de Luana e o genocídio da população negra no Brasil, por Stephanie Ribeiro (HuffPost Brasil, 03/05/2016)

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas