(Geração E, 14/04/2016) Alexandra apropriou-se da voz que ganhou da mídia para falar sobre empoderamento feminino, sobretudo para a representatividade da mulher negra. “Tenho muita fé no brasileiro”, ressalta
“Escolha dez pessoas que você mais admira e mande um e-mail para cada uma delas. Diga que você as admira e porquê, pergunte se esta pessoa quer ser sua mentora, se pode tomar um café com você uma vez por mês, para contar a trajetória dela e te ajudar com a sua história”. Este é o conselho de Alexandra Loras, consulesa da França em São Paulo.
Há quase quatro anos no Brasil, Alexandra tornou-se um ícone no País quando se fala em empoderamento feminino, sobretudo para a representatividade da mulher negra.
Mas isso a espanta, uma vez que ela sabe que o buraco é mais embaixo. “Eu acho muito interessante como o Brasil me deu um palco para falar deste assunto, como se eu fosse mais válida a falar sobre isso porque sou estrangeira e mulher negra da elite. É interessante ver isso porque vejo muito mais mulheres brasileiras militantes, ativistas, que são muito mais experts na causa negra do que eu, mas elas não estão presentes na mídia. Estão basicamente ausentes”, ressalta. No entanto, “se querem me dar a palavra, eu pego”, diz.
A consulesa, que é mestre em Gestão de Mídias pela mais importante escola de Ciências Políticas da França, o Institut d’études politiques de Paris (Sciences Po), falou que adora o Brasil. Ela esteve em Porto Alegre em março para um evento do Jogo de Damas, na UniRitter, e conversou conosco sobre a sua vivência no País, que é o oitavo de uma longa lista. Além da França, Alexandra já viveu na Alemanha, Inglaterra, Espanha, México, Estados Unidos e Suécia.
Casada com o Consul Geral da França, Damien Loras, e mãe do Raphael, de 3 anos, Alexandra nasceu e cresceu na França, em uma família formada por brancos. A mãe teve cinco filhos, com quatro pais diferentes. O dela era negro, imigrante da Gâmbia, que chegou a morar na rua.
Aqui, afirma, está tendo a experiência de sentir na pele o que realmente é o racismo pela primeira vez.”Quando tem um guarda me seguindo no supermercado do Pão de Açúcar, eu posso sentir o que é o racismo. Porque lá, não sou consulesa, sou uma mulher negra. Então eles me seguem pra ver se vou roubar alguma coisa”, conta. Também quando faz eventos diplomáticos em casa, ao receber a elite na entrada – como manda o protocolo francês – muitas vezes os convidados não dão-se conta de que ela é a anfitriã, pelo fato de ser negra. Entre outras histórias como estas, fez questão de salientar: “O branco de hoje não é responsável pela escravidão. Hoje, somos todos responsáveis por equilibrar as coisas”, reforça.
GeraçãoE – Como você enxerga o tratamento da mídia como mulher negra?
Alexandra Loras – Eu acho muito interessante como o Brasil me deu um palco para falar deste assunto, como se eu fosse mais válida a falar sobre isso porque sou estrangeira e mulher negra da elite. É interessante ver isso porque há muito mais mulheres militantes, ativistas, que são muito mais experts na causa negra do que eu, mas que não estão muito presentes na mídia. Estão basicamente ausentes. Também temos mulheres formadoras de opinião como a Maga Moura que tem milhares de seguidores e, ao mesmo tempo, a mídia não fala dela. É uma mulher negra brasileira, itgirl da Nike, e ninguém fala dela.
GE – Como você enxerga a inserção da mulher no empreendedorismo e no universo de negócios?
Alexandra – Há obstáculos invisíveis, que achamos que já estão resolvidos. Nós mulheres somos 52% da população mundial. Nos países com democracia, a mulher ainda é muito ausente das pautas, sejam políticas, sociais ou de negócio. Aqui no Brasil há 7% de mulheres nos boards executivos das empresas. É uma coisa absurda no sentido de que estamos em 2016, falando de democracia, que seja de gênero ou racial. A mulher é ausente das discussões, quando em 80% dos casos é ela que faz as compras, é ela que escolhe o que vai entrar em casa. A mulher negra é ainda mais ausente. Os diretores de marketing têm que parar de dizer que mulher negra não vende. Porque ela compra R$ 500 bilhões a cada ano. Então ela precisa também entrar no debate.
GE – E nesse sentido, há muita diferença entre Brasil e França?
Alexandra – Tem muito. Temos empresas na França em que a maioria é mulher nos postos executivos. Alemanha e Suíça estão ainda mais a frente. Acho interessante enxergar e nos inspirar de outras formas. Mas estou segura de que, nos debates sobre conflitos mundiais, se pegarmos uma mãe muçulmana, uma judia e uma católica, que perderam seus filhos nestes conflitos, o brainstorming que poderia sair seria muito diferente, com mais compaixão, mais empatia, com outras alternativas, diferente das que estamos colocando na nossa sociedade, que é de contra-ataque. Eu acho que hoje não dá mais pra continuar a enxergar da maneira do homem que decidiu como ia ser as coisas. Temos que ter 52% de mulheres em todos os lugares e 57% de negros, em todos os lugares do Brasil.
GE – E como você vê o negro no Brasil?
Alexandra – Ainda temos forma sutis e subliminares dentro de nossa sociedade que inferiorizam a gente. E através da narrativa coletiva, da mídia, dos livros didáticos, dos desenhos animados. Já começa na raiz. As crianças negras de menos de cinco anos já veem a boneca branca como a linda e a boazinha e a boneca negra como a feia e má. Por quê? Eles nascem com ódio deles mesmos? Claro que não. A sociedade cria este ódio. E temos que reconhecer que hoje sabemos disso, que não somos como nossos avós e bisavós, ancestrais que não tinham este conhecimento. Hoje sabemos que a mídia cria doenças, como a anorexia. É uma enfermidade clinicamente provada que é da nossa época moderna. Eu acho que a mulher também tem uma doença clínica, que ainda não tem nome, que é a síndrome do impostor. Quando ela conquista espaços privilegiados, ela se acha uma impostora. Quando na verdade as mulheres saem mais diplomadas das universidades do que os homens, somos uma maioria. Por que somos uma minoria então nas escalas das empresas? Se somos melhores nas escolas, por que no mercado nosso potencial não é reconhecido?O mesmo para o negro. Ele tem muito potencial no carnaval, que é o maior evento criativo do mundo, feito por pessoas que chamamos de carentes. Mas o evento sai na hora, super bem organizado, cronometrado e impecável. Então, nós descartamos também toda uma parte da população que tem talento e potencial, achando que são coitadinhos, inferiores, analfabetos funcionais, etc. Não, isso é preconceito. Precisamos levar eles para também poder conquistar espaços e dar uma dignidade econômica, infraestrutural, e de saúde, de educação. O problema do Brasil não é a corrupção. A corrupção existe em todos os países, na Europa é mais sofisticada. O problema do Brasil é que ele é o décimo país mais rico no mundo. Sem contar o dinheiro da corrupção. Ele tem o 9º PIB mais alto do mundo. O PIB brasileiro é R$ 66 mil por pessoa. Por que 80% das casas brasileiras ganham menos de R$ 3 mil? Quando 80% da população vai ter uma dignidade econômica e acesso às melhores infraestruturas? Esse é o problema do Brasil.
GE – E em qual momento você acha que o brasileiro está, na sua visão?
Alexandra – Eu tenho muita fé no brasileiro. Até 1930 não tinha universidades aqui, sua mancha é muito mais aberta que a do europeu. A produção intelectual lá foi tão forte que hoje eu sinto que estamos só olhando para trás. O brasileiro é muito mais aberto. O Brasil é um adolescente rebelde. Eu acho que vocês estão mostrando o caminho, que elevar o debate sobre coisas complicadas é importante.
GE – E tu gostas de viver aqui, das coisas que tu vê e de como funcionam?
Alexandra – Eu adoro morar aqui. É a minha oitava expatriação mas a mais interessante. Foi uma revolução. Estou como num laboratório, aprendendo muito. Eu fico muito humilde na frente do brasileiro, porque vocês me emocionam muito. Mexe muito comigo tudo que está acontecendo aqui, com a questão racial, e como as pessoas me enxergam. É mesmo uma oportunidade de sentir o que é o preconceito. E ver o que se tem que fazer para mudar isso, porque isso não é o governo que irá fazer, somos nós mesmos, elevando o debate, estando aberto a escutar o que as pessoas têm a dizer.
GE – Neste papel, tu sentes uma posição de representatividade, chegando neste cenário brasileiro?
Alexandra – Pela primeira vez, eu estou em um papel inverso. É interessante isso, porque é a primeira vez que estou sentindo na minha pele que sou privilegiada. De ver que hoje, este título diplomático me dá credibilidade para falar. Claro que poderia ficar aqui promovendo o champanhe francês, a gastronomia, a moda, há muito o que se promover. Mas a mídia se interessou também por o que é ser uma mulher negra nesta elite. Eu escutava as minhas amigas falando ‘Alexandra, não tem racismo no Brasil. O racismo é econômico social.’ Eu discordo. Eu estou na elite, não sou pobre, e sofro de racismo. Então é fácil colocar esta desculpa. Eu, dentro de minha própria casa, tem brasileiros que acham que sou uma funcionária, porque o protocolo francês faz questão que eu fique na entrada para dar as boas-vindas a todos os meus convidados. Eles não têm uma caixinha mental com a ideia de que uma consulesa negra possa existir.Claro que tenho o privilégio de depois de pegar o microfone, fazer o discurso e eles saberem que sou a anfitriã da noite. Mas é interessante ver isso acontecer. Igual se eu for na delegacia. Vou ser muito mal tratada porque sou uma mulher negra. Imagino a mulher negra, pobre, que acabou de perder o filho morto pela polícia, indo denunciar isso. Como ela deva ser tratada. Eles me conhecem muito bem, porque ficaram muito na frente de minha casa depois dos atentados na França, e me trataram super mal.
GE – Por quais situações você já passou
Alexandra – Quando tem um guarda me seguindo no supermercado do Pão de Açúcar, eu posso sentir o que é o racismo. Porque lá, não sou consulesa, sou uma mulher negra. Então eles me seguem pra ver se vou roubar alguma coisa. Ser barrada em um hotel de cinco estrelas em Salvador, porque sou uma mulher negra. Mas pelo fato de eu ter sotaque me deixam entrar, porque sou uma mulher negra estrangeira. Se eu fosse uma mulher negra brasileira, talvez não poderia entrar neste lugar. Quando vou no Clube Pinheiros, por exemplo, onde sou sócia-convidada. Uma vez esqueci minha carteira de passaporte diplomático, que é um passaporte bem diferente, e a mulher da entrada não podia me ver em outro papel que não de acompanhante do meu filho. Até eu falar que eu era sócia, ela continuava procurando meu nome na lista das babás. E também as pessoas ficam me olhando torto porque não estou vestida de branco. Por que é uma forma de segregação, de apartheid, pedir às babás se vestirem de branco. Não é uma questão de higiene, senão os pais se vestiriam de branco. Me mostra aonde as babás são vestidas de branco no mundo? Só no Brasil. Mas isso é tão enraizado na cultura que as pessoas nem questionam. Querem justificar que “Ah, isso vem do vestuário dos médicos, das enfermeiras”, não, não. Vem mesmo da escravidão. Na casa grande as pessoas que podiam se vestir de branco bem limpinho era para diferenciar das que trabalhavam no campo. Precisamos enxergar que isso tem uma raiz muito preconceituosa.
Temos que nos lembrar que o holocausto foi legal, o apartheid foi legal, a escravidão, o fato de a mulher não poder votar, ter conta no banco e nem trabalhar também, em algumas dezenas de anos atrás, não séculos. Faz pouco tempo que se tem lei para tudo isso. E tivemos que ter pessoas para se levantar e denunciar. O branco de hoje não é responsável pela escravidão. Hoje somos todos responsáveis por equilibrar as coisas.
GE- Qual conselho você daria a mulheres empreendedoras?
Alexandra – Escolha dez pessoas que você mais admira e mande um e-mail para cada uma delas. Diga que você as admira e porquê, pergunte se esta pessoa quer ser sua mentora, se pode tomar um café com você uma vez por mês, para contar a trajetória dela e te ajudar com a sua história.
GE – Tu participaste do Fórum Econômico Mundial de Davos este ano. Como foi tua participação lá?
Alexandra – Bem, eu me queixava que não tinha participação de mulheres negras lá. Então, em vez de me queixar, fui lá. Foi muito interessante porque consegui encontrar muitas pessoas e debater sobre vários assuntos, e pelo fato de ter só 15% de mulheres em Davos. Então acho que ainda estamos precisando mesmo conquistar estes espaços. Foi muito bom, consegui conhecer o Ban Ki-moon (Secretário-Geral das Nações Unidas), encontrar uma pessoa encarregada da Anistia Internacional, olhando mesmo para o genocídio negro que está acontecendo no Brasil. As pessoas dizem “Ah, mas olha como os Estados Unidos têm problema de racismo”, claro. Mas lá o negro, dentro do espectro da sociedade, tem poder econômico e poder na mídia. Então, quando se mata um negro nos Estados Unidos se fala no mundo inteiro. Mas no Brasil morrem 82 jovens negros por dia. Em um ano no Brasil tem mais mortos do que todos os soldados norte-americanos em 20 anos de guerra do Vietnã. É um absurdo e ninguém está falando disso. Na cultura brasileira ainda sobrevive, de maneira subliminar, a ideia de que um ladrão bom é um ladrão morto, de que um negro bom é um negro que conhece seu lugar. Tem muitas coisas na raiz da sociedade que precisam ser limpas, que estão debaixo do tapete.
Roberta Fofonka
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