(El País, 13/11/2015) “O feminismo não terá cumprido sua proposta de mudança dos valores antigos se ele não levar em conta a questão racial”. GONZÁLEZ, Lélia. Entrevista ao jornal do MNU (Movimento Negro Unificado) em 1991.
Estamos em pleno novembro negro, momento em que mulheres no Brasil inteiro tomam as ruas protestando contra o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e o PL5069 que representa enorme retrocesso aos direitos conquistados pelas mulheres brasileiras. Nós, mulheres negras, estamos também nas ruas para demonstrar que essa afirmação de Lélia González continua mais atual do que nunca. É preciso enegrecer não apenas o feminismo, mas todos os espaços de fazer política, pois as pautas que ecoam hoje na sociedade são os temas que atravessam a nossa vida do nascimento à morte.
Leia mais: A carne mais barata, espancada, estuprada e morta é da mulher negra (Opera Mundi, 09/11/2015)
Os ataques que vêm da Câmara dos Deputados contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres nos atingem antes que às demais. O controle a ser feito primeiro é o controle do corpo das mulheres negras, pois nós somos a mercadoria, o objeto, a carne mais barata e o perigo mais iminente a ser controlado.
O PL 5069 dificulta o nosso acesso ao SUS em casos de violência sexual, aumenta a nossa vulnerabilidade social ao criminalizar profissionais de saúde que orientarem sobre o direito ao aborto legal nos casos de estupro, risco de morte para a mulher ou anencefalia. Será crime ajudar a nós mulheres que sofremos com violência sexual, como se a realidade já não fosse dura o bastante, principalmente quando falamos de acesso a direitos sexuais e reprodutivos para mulheres negras. Querem nos deixar mais desamparadas do que a sociedade já nos deixa, aprofundando assim o abismo social existente no Brasil.
A violência machista, racista e de classe são partes estruturantes da sociedade brasileira, gerando assim um grande processo de exclusão social. É por compreender a importância latente de todos as questões que contribuem para a promoção da nossa marginalização social que temos ido às ruas, nos organizado e feito ecoar nossa voz. Esta caminhada na defesa contra o machismo e o racismo, apesar da forte oposição dos setores conservadores, mostra o quanto a construção de intervenção política das mulheres negras nos movimentos sociais tem contribuído para a visibilidade dos sujeitos políticos desses movimentos de forma mais geral.
Para pensar a situação da mulher negra na sociedade atual é preciso compreender que os estereótipos que estigmatizam grande parcela das mulheres, como as mulatas e as domésticas, têm sua construção iniciada a partir da figura da mucama, ainda no período da escravidão. Essa construção simbólica do lugar da mulher negra na sociedade resulta em violências materiais cotidianamente. Ignorar isso, é ignorar parcela importante dos sujeitos políticos atingidos pela violência machista e racista no Brasil.
Somos 49 milhões de mulheres negras neste país, 25% da população brasileira que tem em sua história social a marca da escravidão, dos estupros e da violência cotidiana imposta por uma sociedade racista e machista. Chegamos a ter salário duas vezes menor do que os homens brancos e, em geral, ocupamos lugares de trabalho muito precarizados. Isso não é ser vitimista, é encarar de peito aberto a verdade nua e crua que o racismo e o machismo impõe a nós.
Segundo nota técnica do IPEA publicada em 2014, 51% dos casos de estupro relatados são de pessoas negras. Em um país em que uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, que ocupa o 5º lugar mundial de assassinato de mulheres, é fácil constatar que a maioria das vítimas de violência somos nós. Segundo o Mapa da Violência lançado na semana passada, em 10 anos, o número mulheres negras mortas aumentou 54%. Também somos o país que mais mata mulheres trans e estas figuram de forma mais marginalizada ainda no acesso a direitos sociais e políticas públicas. Nenhuma destas mulheres morreu por causa da roupa que usavam, ou porque provocaram seus algozes. Morreram porque até hoje sofremos mais diretamente com a violência simbólica, com a exotização e objetificação de nossos corpos.
A violência sexual que nossas ancestrais sofreram como mucamas não é muito diferente do que acontece em diversas casas de família com as empregadas nas Casas Grandes modernas.
Porém, o jogo virou. Nesse novembro negro, quando comemoramos 300 anos de Zumbi dos Palmares, as mulheres negras estão nas ruas para dizer não à violência, ao racismo e pelo bem viver de sua comunidade. Estamos ocupando os nossos lugares de direito. Nossos passos vêm de longe e esta história sempre foi feita de forma aguerrida e com profunda resistência política. Temos plena capacidade de falar por nós mesmas, apontar como os sortilégios da política afetam nossas vidas de forma concreta.
Do PL5069 à revista vexatória. Da piadinha racista e machista de Roger aos ataques racistas à Taís Araújo. Não ficaremos caladas, não abaixaremos nossas cabeças, não nos retiraremos dos lugares que estamos ocupando. Nós viemos para ficar. Nós mulheres negras denunciamos o deputado Eduardo Cunha em pleno novembro negro, estamos novamente nas mobilizações para protagonizar enfrentamentos contra aquilo que nos atinge diretamente. Saímos às ruas contra o PL 5069 e Eduardo Cunha em todo país, e estaremos, milhares de mulheres negras, marchando em Brasília no dia 18 de novembro demonstrando que as pretas brasileiras têm muito o que dizer, pautar e reivindicar em diversos níveis da política e da constituição social do nosso país.
Nossos passos irão mais longe ainda, pois viemos da nossa terra fazer barulho na terra alheia e que não mais é alheia, é nossa!
Luka Franca é integrante do Núcleo Impulsor de São Paulo da Marcha de Mulheres Negras
Acesse no site de origem: A ocupação do novembro negro e a primavera feminista, por Luka Franca (El País, 13/11/2015)