O RD1 convidou os autores Walcyr Carrasco, Duca Rachid e Renata Dias Gomes para uma discussão sobre a ausência de personagens negros nas novelas.
(RD1, 20/10/2016 – acesse no site de origem)
Apesar dos recentes avanços, há poucos atores negros em destaque na televisão, e muitas vezes eles ocupam papéis de subalternos e são escalados para arquétipos específicos.
Atualmente preparando a sinopse de sua próxima trama das 21h na Globo, Walcyr foi responsável por emplacar a primeira protagonista negra em uma novela brasileira quando escreveu “Xica da Silva”, em 1996. Apesar de retratar a vida real da escrava, a TV Manchete resistiu em escalar uma atriz negra para o papel e chegou a propor intérpretes brancas com peles bronzeadas para dar vida à personagem, fato que não foi aceito pelo autor.
Carrasco, no entanto, afirma que nem todos os personagens negros de suas novelas foram escritos para serem interpretados necessariamente por atores negros, como geralmente acontece na dramaturgia, mas admite que a diversidade étnica é ignorada em grande parte das produções.
A opinião do dramaturgo é parecida com a da colega de emissora Duca Rachid. Autora de novelas como “Cordel Encantado” (2011), “Cama de Gato” (2009) e “O Profeta” (2006), ela acredita que além da falta de atores negros, há a ausência de autores vindos de outras realidades, e a televisão precisa reeducar o telespectador. “[É preciso] dar a ele, inclusive, o que ele ainda não sabe que quer”, opinou. Recentemente, a Globo cancelou a novela “O Homem Errado”, que Duca escrevia com Thelma Guedes para o horário nobre, por considerar a sinopse ousada.
Neta dos autores Dias Gomes (1922-1999) e Janete Clair (1925-1983), Renata Dias Gomes também acredita que a falta de representantes negros reflete a sociedade em que vivemos, e afirma que se o autor não definir a etnia de determinado personagem, dificilmente a equipe de direção pensará em um ator negro para o papel, o que não ocorre com atores brancos. Para a escritora, a televisão carece de estrelas negras justamente por conta da falta de oportunidade.
Ainda há muito pouco espaço para atores negros nas novelas. No entanto, vem surgindo produções em que os negros foram destaques recentemente, como em “Mister Brau” e “Justiça”. Houve um avanço?
Walcyr Carrasco: Há um avanço, mas acredito que ainda pequeno. Boa parte das produções não têm papéis negros de destaque.
Duca Rachid: Sim, acho que sim. “Mister Brau”, sobretudo, é um bom exemplo disso. Mas acho que ainda falta avançar muito.
Renata Dias Gomes: Olhando a TV hoje, percebemos alguns avanços em relação a anos atrás. Os avanços vêm acontecendo bem lentamente. Ainda há um caminho enorme a ser percorrido. O racismo no Brasil é estrutural. Está em todos os lugares, em todas as camadas da sociedade. Não é um problema só da TV.
Recentemente, a atriz Aline Dias afirmou ao RD1 que sua personagem em “Malhação” não foi idealizada para ser negra, e que ela conquistou o protagonismo da trama por conta de seu talento. Quando um autor cria um personagem, geralmente a etnia é pensada antes da escalação do ator? Porque existe tanta falta de personagens negros?
Walcyr: O autor às vezes pensa na etnia, às vezes não. Óbvio que se a personagem for uma escrava, a questão da etnia é importante. Se não for um personagem cuja história dependa da etnia, o importante é que seja um bom personagem. A falta de bons personagens negros reflete, na minha opinião, a discriminação a que os negros são submetidos em todo país. Em “Eta Mundo Bom!”, por exemplo, eu tinha o personagem do garoto Pirulito, que no filme “Candinho”, de Mazzaropi, que inspirou a novela, foi feito por um branco. Eu resolvi botar um menino negro, e tivemos uma grande interpretação de JP Rufino.
Duca: Depende muito da história. Algumas histórias exigem que o ator seja negro, japonês, loiro, tenha sotaque, etc. Outras não. Acho que a falta de personagens negros ainda é um reflexo da falta de protagonismo do negro na nossa sociedade, infelizmente. Já avançamos bastante. Mas ainda falta avançar muito. Eu acho que faltam inclusive autores negros trabalhando na TV e no cinema. É preciso dar voz a esses autores. Que eles tragam histórias das suas realidades. Isso é muito importante. Só vai contribuir para a diversidade e qualidade da nossa dramaturgia.
Renata: Isso depende bastante e não sei falar por outros autores. O que vejo em geral é que se o autor não marca que o personagem precisa ser negro, dificilmente as outras pessoas da equipe pensarão num ator negro. De qualquer forma, hoje no Brasil ser negro inevitavelmente impacta na vida da pessoa e com isso também impactará na vida do personagem. Acredito que a falta de personagens negros se deve a diversos fatores. Um deles é o fato do “pensamento branco” ser dominante. Como falei antes, se não estiver marcado no perfil que tal personagem é negro, dificilmente produção de elenco ou direção pensarão num ator negro. Já para o ator branco, isso não precisa estar escrito. A falta de oportunidade para atores negros faz também com que existam menos estrelas negras do que brancas. Pra mim isso vai começar a mudar de verdade quando tivermos mais autores negros também. Precisamos abrir essas oportunidades para eles e, principalmente, ouvi-los.
À medida que artistas negros ganham destaque na TV, aumentam casos de racismo nas redes sociais. Como você avalia essas manifestações?
Walcyr: Elas expressam o racismo de maneira horrível. Eu me arrepio quando vejo algo assim acontecer.
Duca: É difícil pra gente admitir, mas existe um pensamento extremamente retrógrado muito atuante hoje não só no Brasil, mas no mundo. É triste, mas é real. Talvez nas redes sociais essas manifestações sejam mais agudas. É um meio de expressão ainda novo. As pessoas ainda não sabem lidar muito bem com ele, não têm a dimensão da exposição a que estão sujeitas, se julgam protegidas por um falso ambiente privado, por um falso anonimato. Mas infelizmente o racismo, a homofobia, o misoginismo, não estão só nas redes. Estão nas ruas. Estão em toda parte.
Renata: O Brasil é um país racista. Quem é negro percebe isso no dia a dia inevitavelmente. As redes sociais só estão escancarando isso.
Você acredita que a dramaturgia precisa se esforçar para criar formas de representar todas as pessoas?
Walcyr: Eu, como escritor, acredito que tenho responsabilidade social. Há situações a denunciar, e à medida que envelheço, considero isso mais importante.
Duca: Sempre. A dramaturgia tem que dar opções ao público. Dar a ele inclusive o que ele ainda não sabe que quer. Mas que vai querer. Vai gostar de ver. Só não sabe ainda disso, porque nunca viu. E trazer outras vozes também. Vozes de outros autores, de realidades diversas, de outras culturas, de outras regiões do país.
Renata: Acredito que sim. É muito importante que os negros, que formam mais da metade da população brasileira, sejam representados e se vejam representados.
Muitos telespectadores criticam a presença de personagens negros bem sucedidos nas novelas, argumentando que a dramaturgia às vezes mascara a realidade da maioria dos negros, mas também há muitas críticas por atores que geralmente só fazem os mesmos papéis de subalternos. Como lidar com isso?
Walcyr: O autor tem que escrever movido por suas ideias, sua inspiração. Seus princípios apareceram claramente, porque ninguém consegue mentir quando escreve com o coração.
Duca: Com honestidade. A gente tem que tentar retratar a realidade da maneira mais honesta e humana possível.
Renata: Se houvesse mais papéis para negros, não haveria esse problema. Não vejo problema no negro fazer o empregado. O problema é só ter esse personagem negro no produto. Há brancos fazendo toda sorte de personagens. É ridículo ter uma favela sem negros, por exemplo. Mas por que não ter também um negro advogado, arquiteto, artista, contador. Negros estão em todos os lugares da nossa sociedade apesar de ainda serem maioria na população pobre exatamente por conta desse racismo estrutural.
Daniel Ribeiro