Vantagens materiais e simbólicas de pessoas brancas precisam ser notadas para enfrentamento da discriminação
(Folha de S.Paulo, 15/12/2019 – acesse no site de origem)
Reconhecimento das vantagens materiais e simbólicas de pessoas brancas é indissociável do processo de consciência e enfrentamento do racismo num país em que a cor da pele pode determinar se um inocente será abatido como potencial criminoso.
Você vai às compras sozinha sabendo que não será seguida ou perturbada?
Se ligar a TV ou abrir o jornal, é certo que verá pessoas da sua raça amplamente representadas?
Quando um policial para seu carro, você tem convicção de que não foi por causa da sua cor?
Você escolhe facilmente maquiagem corretiva ou curativos no tom da sua pele?
Se respondeu “sim” a essas perguntas, com certeza você é uma pessoa branca. Esses são alguns dos 46 privilégios brancos elencados pela pesquisadora americana Peggy McIntosh em 1988, quando a acadêmica feminista e antirracista se tornou a principal divulgadora dos estudos críticos da branquitude (“whiteness”, em inglês) enquanto lugar social de vantagens materiais e simbólicas.
Desde então, a lista de McIntosh, uma mulher branca, já foi complementada de várias maneiras em diferentes partes do mundo. No Brasil, questões duras e bastante reveladoras seriam inevitáveis, como “você se preocupa com a possibilidade de um helicóptero da polícia metralhar as ruas do seu bairro ou a sua casa?”.
No Twitter, as mais de 2.300 respostas dadas à pergunta “se o racismo acabasse hoje, o que você faria?”, feita pelo jornalista Gilberto Porcidonio, sugerem outros privilégios tão singelos quanto surpreendentes para não negros: ir ao shopping de chinelos, correr na rua tranquilamente, abrir a bolsa dentro de uma loja para pegar o celular, usar o capuz do moletom nas ruas.
“Como uma pessoa branca, eu tinha aprendido que o racismo é algo que coloca os outros em desvantagem, mas não fui ensinada a enxergar um de seus corolários, o privilégio branco, que me coloca em vantagem”, escreveu McIntosh, que define a branquitude como um “pacote invisível e indébito de ativos que podem ser descontados diariamente”, mas cuja existência não se reconhece.
Por mais que muitos brancos se esforcem, já não é possível, hoje, ignorar esse pacote de ativos. Há uma crescente pressão de velhos e novos movimentos negros, que ganharam poder de articulação graças à tecnologia, aumentando o alcance de suas demandas por equidade e de suas denúncias a respeito das opressões do racismo estrutural.
Há também o imperativo dos dados, que ilustram o aumento da consciência negra, descrevem as demandas e preocupações dessa população e evidenciam a desproporcionalidade a que ela está submetida quando o assunto é violência, oportunidade e representatividade.
Se, em 2006, 48% dos brasileiros se autodeclararam pretos ou pardos, em 2018 esse percentual atingiu 56% da população do país, segundo dados do IBGE. Analistas avaliam que o aumento possa ser atribuído à miscigenação da população ou ao progressivo autorreconhecimento de negros que antes empreendiam processos de embranquecimento em busca de aceitação.
Um aspecto bastante visível desse fenômeno está nos cabelos de pretos e pardos: antes majoritariamente alisados, hoje exibem volumes crespos, black powers, tranças e dreadlocks.
Estudo do Instituto Locomotiva apontou que 86% dos negros têm orgulho de quem são, mas 71% foram vítimas ou presenciaram crime de racismo no último ano.
Segundo pesquisa do Google realizada com brasileiros negros pela consultoria Mindset e pelo Instituto Datafolha, a pauta mais urgente para essa parcela da população é a inclusão no mercado de trabalho (46%), no qual negros são minoria em posições gerenciais (29,9%). Mesmo quando têm curso superior, recebem salários 31% menores que brancos nas mesmas condições.
A segunda questão mais urgente para os negros é o racismo estrutural (44%), seguido do feminismo negro (27%) e da matança de negros (24%).
Além disso, a intensidade e a visibilidade dos debates sobre racismo não tem precedentes na história do Brasil, como ficou evidente na profusão de campanhas, mesas-redondas e eventos no último novembro, mês da Consciência Negra.
“Muito mais lentamente do que deveria, mas de maneira crescente, as fichas estão caindo por pressão”, afirma a psicóloga negra e colunista da Folha Cida Bento, eleita pela revista britânica The Economist como uma das 50 pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade.
“Em matéria de representação, de vermos mais negros em campanhas publicitárias, temos crescido. Não se trata de uma decisão do mercado, mas de uma forte cobrança da sociedade”, afirma a publicitária negra Samantha Almeida, chefe de conteúdo na agência Ogilvy Brasil. “Quando a sociedade e a mídia se manifestam, as marcas vão junto para não perder a conversa.”
Ainda assim, quando se fala de racismo no Brasil, fala-se do negro, e o branco desaparece, como se não fizesse parte da questão.
“No mínimo, o racismo é um problema das relações entre negros e brancos e, se você quiser polarizar, ele seria um problema essencialmente dos brancos, que o criaram”, provoca Bento, pioneira no debate crítico da branquitude no Brasil.
Refutar a existência do privilégio branco, contudo, tem a ver tanto com a própria origem da branquitude, nascida no processo de colonização europeia do mundo, quanto com a sua resiliência ao longo dos 500 anos que se seguiram.
“A raça é uma construção geopolítica, e não biológica. E corresponde aos três grandes continentes conquistados: amarelos na Ásia, negros na África, vermelhos nas Américas”, explica a psicóloga branca Lia Vainer Schucman, professora da Universidade Federal de Santa Catarina e autora de “Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo”, livro esgotado, a ser relançado pela editora Veneta.
“A colonização explorava outros povos, identificados como inferiores, primitivos e sem alma. A hierarquia e a dominação, que são a prática racista, já existiam. E a ideia de raça surge para justificá-las”, diz ela.
O jornalista branco Laurentino Gomes explica em seu novo livro que a escravidão é tão antiga quanto a humanidade e provinha de todas as regiões do mundo, afetando diferentes populações ao longo da história.
Em “Escravidão” (Companhia das Letras), o primeiro volume de uma trilogia sobre o tema, ele registra que os índios do Novo Mundo foram dizimados e substituídos por um tráfico negreiro “volumoso, organizado, sistemático e prolongado” como nunca antes na história, o que está na origem da segregação e do preconceito racial dos dias de hoje.
Num país que foi “construído por negros, mas sempre sonhou ser um país branco”, escreve Gomes, aqueles que foram escravizados pelos europeus eram tratados como exóticos e selvagens ou ingênuos e incapazes.
Este processo de definição do “outro” a partir do imaginário ocidental europeu foi descrito pelo crítico palestino Edward Said (1935-2003) no clássico “Orientalismo”. Trata-se de uma construção, a partir do olhar do branco europeu, daqueles que são diferentes, sob o seu ponto de vista.
Contudo, ao lançar sobre o outro aquilo que julgam não lhes caber, os brancos reservaram para si um lugar desracializado, neutro, “normal”. Enxergam em si uma espécie de modelo paradigmático de humanidade.
“A branquitude é uma particularidade que se pensa universal e geral. E, desta forma, coloca os demais grupos como margem, como desviantes ou inferiores”, afirma Schucman. “Fala-se em ‘beleza negra’, por exemplo, mas não em ‘beleza branca’, que é pensada apenas como ‘beleza’, uma categoria universal e geral.”
Essas classificações acabaram dominando subjetivamente colonizadores e colonizados, resultando, por um lado, na não aceitação, por parte dos negros, de seus fenótipos. Essa rejeição gerou um desejo de branqueamento —aquilo que o filósofo e psiquiatra negro Frantz Fanon (1925-61) chamou de “máscaras brancas”.
Por outro lado, formou-se também o que Cida Bento classificou como “pacto narcísico da branquitude”, em que os brancos, embevecidos pelas narrativas edificantes que criaram sobre si, são omissos em relação aos seus privilégios, ao racismo e a sua responsabilidade pela manutenção desse sistema, que procurou se justificar enquanto ciência no campo da eugenia.
“A branquitude é um lugar de privilégio a partir do qual o sujeito olha para os outros, os define e os nomeia”, explica Bento, que é doutora em psicologia social pela USP e diretora executiva do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), criado em 1990.
O escritor gaúcho —e branco— Juremir Machado da Silva empreendeu um exercício literário para evidenciar privilégio e racismo como dois lados da mesma moeda.Em seu novo livro, “Acordei Negro”, um homem branco comum e anônimo desperta num corpo negro e se surpreende com a maneira como o mundo reage a sua nova cor, como quando é enxotado por um policial ao encostar em um carro de luxo na rua.
“É uma maneira de dizer que, em um país racista, existe uma visibilidade negativa com relação ao negro, o que é insustentável e criticável sob todos os aspectos e que pode ser tematizado”, explica o autor, também jornalista e professor universitário.
O livro, lançado em conjunto pelas editoras Sulina e Figura de Linguagem —esta criada e dirigida por negros— “trata do ponto de vista de como um branco se sentiria tornando-se negro”, diz o autor. “Não pretende dizer o que um negro sente.”
O poder de caracterizar o outro em oposição a si próprio se traduz, explica Bento, numa referência branca positivada de beleza, inteligência, competência e protagonismo que se consolidou ao longo dos séculos na falácia da superioridade branca.
Foi a retomada da retórica da supremacia branca nos discursos públicos nos EUA que fez a premiada poeta jamaicana negra Claudia Rankine sugerir um curso sobre branquitude para a prestigiosa Universidade de Yale. Toparam.
“A partir das eleições de 2016, as narrativas do nacionalismo branco ganharam espaço. E assistimos a um aumento de grupos terroristas supremacistas brancos e de atentados contra pessoas de pele escura”, afirma Rankine. Segundo o FBI, o número de ocorrências de crimes de ódio ligados a questões étnico-raciais aumentou quase 25% entre 2015 e 2017, antes e depois da eleição de Donald Trump.
“A retórica do presidente Trump aumentou a intensidade das respostas das instituições, como as polícias, pautadas na premissa da supremacia branca. E serviços sociais foram cortados para que não chegassem a determinadas populações”, avalia Rankine, que aponta o nacionalismo branco como determinante do zeitgeist, o espírito do nosso tempo.
Com isso, diz a poeta, os posicionamentos de Trump jogaram luz em questões que havia muito estavam presentes, mas pouco visíveis. “A agenda supremacista branca se tornou mais vocal e pública. Muitos começaram a perceber que não podem mais fingir que a branquitude não está no jogo e acordaram para isso pela primeira vez na vida.”
O aumento de poder das mulheres, dos grupos LGBTQ e dos negros nos últimos anos colocou em xeque a ideia de sujeito universal, cuja posição de privilégio era tida como garantida pela branquitude.
Mas, no lugar de repensar hierarquias e redistribuir recursos, o que se viu em países como EUA e Brasil foi um apelo ao nacionalismo como um conceito monolítico —e branco.
No Brasil, o aumento da visibilidade negra deriva, em parte, da superação do mito da democracia racial, espécie de paraíso da branquitude, segundo Lia Schucman, do qual pulamos diretamente para o recente desvelamento do racismo brasileiro.
“A identidade dos brasileiros brancos descendentes dos imigrantes chegados a partir do século 19 nem sempre é bem autodefinida do ponto de vista étnico-racial”, avalia o escritor e compositor Nei Lopes, que lança agora “Afro-Brasil Reluzente: 100 Personalidades Notáveis do Século XX” (Nova Fronteira).
“Muitos se veem como brasileiros, como são, de fato e de direito —e num país sem conflitos, ‘racialmente democrático’. Mas o povo negro, historicamente excluído, tem necessidade de afirmar sua identidade. E esse posicionamento é que pode unir todos nós, afrodescendentes de todos os matizes e origens, em busca da sonhada igualdade.”
Segundo Schucman, a defesa da ideia de que somos todos mestiços e, portanto, iguais, “isenta a sociedade brasileira do preconceito e permite que o ideal liberal de igualdade de oportunidades seja apregoado como realidade”, o que, de acordo com Cida Bento, produz um senso de alívio entre os brancos, restringindo os debates sobre racismo aos grupos não hegemônicos, que são alvo do racismo estrutural.
“Considero que a grande eficácia do projeto da democracia racial foi o silenciamento e a invisibilidade dos negros e de sua história, em vários níveis. Desde a negação da crueldade da escravidão até a falta de reconhecimento dos intelectuais negros, que sempre existiram e produziram, mas que só recentemente têm sido recuperados. Tudo foi invisibilizado”, explica Márcia Lima, única professora negra do programa de pós-graduação do departamento de sociologia da USP.
Lima, que coordena o Afro Núcleo de Pesquisa sobre raça, gênero e justiça racial do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), explica que esse tipo de discussão deixou “os guetos” do país a partir do debate nacional sobre cotas na educação superior. Foi quando a insistência brasileira em uma questão de classe passou a ser mais confrontada com a questão de raça.
“Até as cotas, ninguém aqui era branco ou negro. Mas o debate mudou, e hoje é difícil achar um branco que não saiba que é branco. É uma categoria que passou a existir”, diz Schucman, cuja tese de doutorado entrevista pessoas brancas de diversas classes para aferir o privilégio da cor da pele em diversos níveis socioeconômicos, da miséria à riqueza.
Sua pesquisa traz o caso mais evidente de que cor e classe não são a mesma coisa —o de um homem branco em situação de rua que diz que “ser branco é poder entrar no shopping pra cagar”, enquanto seus colegas negros sem teto passam aperto do lado de fora, nas ruas.
“Mesmo na ausência de recursos financeiros, a branquitude representa um privilégio que as pessoas não reconhecem quando são pobres ou de esquerda”, comenta Cida Bento, para quem a esquerda brasileira lida mal com o corte racial da questão de classe. “Ainda assim, avanços foram feitos pela esquerda porque os negros são maioria [75%] entre os pobres”, complementa.
O corte racial, e não social, das cotas universitárias passou a ser mais bem aceito a partir da mensuração da performance dos alunos cotistas, que se revelou distante da catástrofe projetada pelos críticos da política de ação afirmativa. Hoje, pela primeira vez, os negros são maioria nas universidades públicas do país.
Trata-se de uma novidade com potencial para mudanças sociais mais profundas no país.
A artista plástica Rosana Paulino, autora das obras que ilustram esta matéria, atribui grande parte de seu passaporte para o monocromático mundo das artes visuais brasileiras a seu diploma de graduação, que conquistou nos anos 1980, quando era a única negra do pedaço.
“O que fez diferença pra mim foi ter estudado na USP e ter ganho uma bolsa para uma especialização em gravura em Londres”, avalia ela, pioneira na discussão de raça e gênero nas artes plásticas brasileiras, e que teve uma exposição na Pinacoteca entre 2018 e 2019. “Sem negros nas universidades não se forma quadros negros de elite.”
Paulino lembra que não tinha colegas negros na faculdade e que passou dez anos trabalhando sem ter artistas negros de sua geração com quem discutir e trocar experiências.
“Num país em que 56% da população é não branca, basta saber operar uma calculadora pra ver que alguma coisa está muito errada”, diz.
Entre as muitas consequências da baixa representatividade de negros nos espaços de poder, de produção de conhecimento e de produção de subjetividades, Paulino aponta a solidão. “São muito poucas mulheres negras em qualquer lugar de destaque e, além da falta de modelos, a solidão também se torna inevitável.”
A cultura de massa do país, em especial as telenovelas, também pisou na bola até há pouco. E produções audiovisuais, em especial as novelas, representaram reiteradamente negros em posições de subalternidade. Muitas obras chegaram a negar o lugar do negro na dramaturgia mesmo quando se baseiam em obras cujo protagonista era uma personagem negra.
É o caso da minissérie “Chiquinha Gonzaga”, de 1999, que conta a história da pianista e compositora negra interpretada pelas atrizes brancas Gabriela Duarte e Regina Duarte.
Em 2018, a TV Globo escalou um elenco majoritariamente branco para uma trama que se passa na Bahia, o estado com mais negros do Brasil. Enquanto apenas 11% do elenco era composto por negros, 76,3% dos baianos se autodeclaram pretos e pardos.
A Bahia branca apresentada na novela gerou críticas, uma nota de retratação da emissora, a escalação emergencial de atores negros e ainda uma notificação do Ministério Público do Trabalho, que demandava “a representação da diversidade étnico-racial da sociedade brasileira”.
“Essa baixa representatividade de negros faz com que, quando em evidência, eles sejam submetidos a uma cobrança desproporcional, tanto para fora do grupo das pessoas negras como para dentro dele”, explica a socióloga Márcia Lima. “Para fora, não podem errar. Para dentro, não podem divergir.”
Um exemplo da cobrança “para fora” ocorreu na semana de estreia da jornalista negra Maju Coutinho na bancada do Jornal Hoje, da TV Globo, quando foi criticada por cometer falhas geralmente ignoradas na performance de outros apresentadores, quase todos de pele branca.
Outro foi o caso da química e pesquisadora negra Joana D’Arc Félix de Sousa. Ela descrevia em seu currículo um diploma da Universidade Harvard (EUA) que se descobriu ser inexistente. O governador branco do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, também turbinou seu currículo com um diploma falso da mesma instituição.
A atenção dada ao caso da cientista negra, foi, porém, muito diferente daquela dispensada ao do político branco. Uma busca no Google com as mesmas palavras-chave —“diploma”, “falso” e “Harvard”— mostra que, aliadas ao nome do governador, há 7.230 ocorrências; ao da pesquisadora, aliam-se 13.200 links, quase o dobro de menções.
As cobranças “para dentro” do grupo de pessoas negras, no entanto, dificilmente se tornam públicas, por supostamente alimentarem lógicas racistas.
Antes de ter a nomeação para a direção da Fundação Palmares cassada pela Justiça, no início de dezembro, o jornalista negro Sérgio Nascimento de Camargo, que nega a existência do racismo no Brasil, foi criticado pelo próprio irmão, que, nas redes sociais, disse sentir vergonha.
A postagem de Wadico, músico, foi imediatamente repreendida pelo pai de ambos, o escritor Oswaldo de Camargo, especialista em literatura negra e militante do movimento negro, que escreveu: “Não nos exponha. Há muita gente gostando deste espetáculo que, afinal, é prejuízo para toda a comunidade negra”.
Para a psicóloga negra Maria Lúcia da Silva, uma das organizadoras do livro “O Racismo e o Negro no Brasil: Questões para a Psicanálise” (Perspectiva), a restrição tem razão de ser. “A branquitude se aproveita de conflitos de grupos subalternizados para mantê-los assim, subalternizados.”
Isso porque, segundo Lia Schucman, o maior privilégio da branquitude é que cada indivíduo branco representa apenas a si mesmo, enquanto cada indivíduo negro representa, aos olhos da branquitude, todo o grupo de pessoas negras do país.
“Enquanto os brancos pensam que seus atributos positivos são méritos e conquistas pessoais, e não os privilégios da sua raça, cada negro sabe que qualquer julgamento negativo sobre um indivíduo de seu grupo recai sobre todas as pessoas contidas nele”, explica. Para ela, aquele que não se enxerga como parte do sistema racista não consegue ser antirracista.
Com isso, ela persegue uma máxima cunhada por um dos ícones dessa luta, a também filósofa e ativista negra feminista americana Angela Davis: “Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”.
Cida Bento explica que hoje existe “uma impaciência e um desconforto dos negros na relação com os brancos, porque esse negócio não muda nunca, e o branco genérico se torna um inimigo”.
Ela lembra do grupo de brancos que se posicionaram contra o regime do apartheid na África do Sul, adotando uma postura ativamente antirracista. “Aqui é difícil o cara largar o osso. E essa hostilidade e essa impaciência têm razão de existir, na minha avaliação, porque existe uma omissão branca difícil de acreditar, inclusive no que diz respeito ao genocídio dos jovens negros.”
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil. A taxa de homicídio entre homens pretos e pardos é quase o triplo daquela entre brancos. E, no estado de São Paulo, entre 2014 e 2016, 67% dos mortos em ações policiais eram negros. A maioria dos jovens mortos durante ação da polícia militar no baile da DZ7, na favela de Paraisópolis, eram pretos e pardos.
No mesmo sentido, Rosana Paulino critica quem aborda a negritude como um debate meramente identitário. “A questão negra não é identitária. É uma questão de vida ou morte. Tratá-la de outra maneira é enfraquecê-la, porque, no Brasil, a cor da sua pele vai determinar se você pode ou não levar 80 tiros a caminho de um batizado”, diz.
Para Claudia Rankine, é impossível ser antirracista sem reconhecer os privilégios da branquitude.
“O trabalho que a cultura fez ao insistir na humanidade dos brancos versus a desumanidade de todos os demais grupos é muito profundo”, afirma. “As próprias pessoas negras dão privilégios para pessoas brancas. Os mesmos privilégios que negam a outras pessoas negras”, avalia, citando como exemplos comportamentos discricionários de policiais e seguranças negros.
“O reconhecimento dos privilégios traz um entendimento de que cada um precisa desejar conscientemente realocar o poder. Do contrário, tudo continuará a ser como tem sido nos últimos séculos: as pessoas continuarão a acreditar naquilo que elas foram ensinadas a acreditar, ou seja, que uma pessoa branca é melhor simplesmente porque ela se parece mais ‘comigo’”, diz ela.
E conclui: “São centenas de anos deste sistema. Mudá-lo vai dar trabalho. Temos de começar em a lgum momento”.
Por Fernanda Mena e Priscila Camazano