90% das mulheres negras têm filhos no sistema público de saúde. Manifesto demanda uma transformação para que sejam tratadas com dignidade. As estratégias vão de reparação a vítimas de racismo e atenção à saúde mental a política de creches e direito ao aborto
A história do Brasil não pode ser contada sem a força e a resistência das mulheres negras. Em um ato de mobilização que reverbera por toda a América Latina, milhares de mulheres negras ocuparam Brasília no dia 25 de novembro, para a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver. Ocupar as ruas é um gesto que reafirma um projeto de sociedade que busca a vida digna e livre de violências.
A mobilização se tornou histórica em 2015, quando mais de 100 mil mulheres marcharam pela primeira vez sob o lema “Contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver”. Idealizada pela ativista paraense Nilma Bentes, em 2011, a Marcha se consolidou como o maior movimento de mulheres negras do continente, carregando a sabedoria ancestral do Bem Viver: a busca por uma vida plena que só se realiza na ausência do racismo, da violência e na presença da liberdade.
Às vésperas da grande Marcha, o movimento lançou uma pauta central e urgente para a saúde e a vida de todas as pessoas que gestam: o Manifesto por Justiça Reprodutiva. Este documento foi construído coletivamente pelo Comitê de Justiça Reprodutiva da Marcha Nacional de Mulheres Negras, contando com a contribuição de mais de 300 participantes por meio de consulta pública. Ele evidencia que o racismo e outras desigualdades estruturais fazem da vida sexual e reprodutiva das mulheres negras um campo de luta.
Mas, afinal, o que é justiça reprodutiva? Trata-se de um conceito político que articula, de maneira indissociável, direitos sexuais, direitos reprodutivos e justiça social. Inspirada em formulações do movimento de mulheres negras nos Estados Unidos e nos debates latino-americanos, essa perspectiva vai além do conceito tradicional de liberdade de escolha e questiona as bases das desigualdades no acesso à saúde.
A justiça reprodutiva parte de um reconhecimento fundamental: a decisão sobre os corpos, sobre a vida das mulheres e sobre constituir ou não uma família depende de condições concretas de existência.
“Mais do que o direito de escolher, a Justiça Reprodutiva afirma que a liberdade reprodutiva só é possível quando há plenas condições de vida com dignidade.” – Manifesto por Justiça Reprodutiva da Marcha das Mulheres Negras, 2025.
Para as mulheres negras, as condições concretas de existência envolvem renda, moradia, saúde e segurança. Onde falta moradia, falta saúde de qualidade; onde falta segurança, a violência institucional floresce. Por isso, a justiça reprodutiva está diretamente vinculada à justiça social. É impossível falar de saúde sexual e reprodutiva sem enfrentar o racismo que nega direitos básicos. Essa é a chave para entender o papel do Sistema Único de Saúde (SUS) nesta pauta: um sistema que existe para garantir o direito à saúde para a maior parte da população do país, mas que falha de forma grave com aquelas que mais dele dependem.
A Marcha das Mulheres Negras, que reuniu cerca de 300 mil pessoas em sua segunda edição, não reivindica apenas a correção de um passado longínquo, mas o acerto de uma dívida que se manifesta no presente, ceifando vidas e negando dignidade. O racismo, enquanto herança da escravidão e da exclusão pós-abolição, é o motor da desigualdade que cerceia a plena cidadania ao impedir o acesso à segurança alimentar, à autonomia econômica e, de forma essencial, ao direito à saúde de qualidade.
A reparação não se esgota em ações simbólicas; ela se materializa em medidas concretas que desestruturam a lógica da desigualdade. Isso significa exigir do Estado o reconhecimento formal da dívida, a implementação de políticas públicas como um direito inegociável e não como concessão, além da participação efetiva das mulheres negras nas instâncias de poder onde decisões sobre suas vidas são tomadas.
O SUS, que tem como um de seus pilares a universalidade, é o palco onde a maior parte da vida reprodutiva das mulheres negras brasileiras se desenrola. Cerca de 67% da população atendida no SUS é negra de cor preta ou parda e impressionantes 90% dos nascimentos de mulheres negras ocorrem em suas instalações.
Paradoxalmente, é nesse sistema vital que a promessa de equidade se rompe diante do racismo institucional. O indicador mais trágico e incontestável dessa falha é a disparidade na mortalidade materna. De acordo com o Relatório da Oficina “Morte Materna das Mulheres Negras no Contexto do SUS” (2025), a maternidade, momento que deveria ser de máxima proteção, é transformada em um risco de sobrevivência para as mulheres negras.
Pesquisas demonstram que, ao buscar atendimento, mulheres negras frequentemente têm sua dor subestimada e negligenciada por profissionais de saúde, uma desumanização que remonta à objetificação histórica de seus corpos. Essa desassistência aumenta o risco de violências, desde a falta de informação até o abuso físico, elevando os índices de lesões no parto e, em casos extremos, levando à perda de vidas.
A luta por justiça reprodutiva é, portanto, a luta para que os corpos das mulheres negras sejam finalmente tratados com humanidade. Envolve a necessidade de cuidado integral no ciclo gravídico-puerperal e a garantia plena dos direitos sexuais e reprodutivos, incluindo acesso a informações claras, a métodos contraceptivos e, sobretudo, ao aborto legal e seguro, reconhecido como componente essencial da saúde pública e da autodeterminação.
O Manifesto por Justiça Reprodutiva não é apenas um documento de denúncia das violências e iniquidades; ele é, sobretudo, um projeto de futuro. Ao exigir reparação e Bem Viver, a Marcha das Mulheres Negras apresenta ao Estado uma agenda política por justiça reprodutiva com ações concretas para transformar o SUS e garantir que a autonomia corporal seja uma realidade e não um privilégio racial e de classe.