(ONU Mulheres, 20/03/2015) “Na Década Internacional de Afrodescendentes, as empresas têm grande papel na promoção da igualdade racial no Brasil”, frisa gerente de Programas Ana Carolina Querino em entrevista a rede de investimento social composta por empresas e fundações
Hoje, mais de 200 milhões de pessoas que vivem nas Américas se identificam como afrodescendentes. Muitos mais vivem em outros lugares do mundo, fora do continente africano. Estas pessoas constituem alguns dos grupos mais pobres e marginalizados. Diversos estudos e pesquisas de órgãos nacionais e internacionais demonstram que afrodescendentes ainda têm acesso limitado a educação de qualidade, serviços de saúde, moradia e segurança.
Diante deste cenário e com a proposta de promover o reconhecimento, a justiça e o desenvolvimento da população afrodescendente no mundo, a ONU declarou 2015-2024 a Década Internacional de Afrodescendentes.
A iniciativa foi proclamada pela resolução 68/237 da Assembleia Geral da ONU, de 23 de dezembro de 2013, que cita a necessidade de reforçar a cooperação nacional, regional e internacional em relação ao pleno aproveitamento dos direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos de pessoas afrodescendentes, bem como sua participação plena e igualitária em todos os aspectos da sociedade.
No Brasil, o tema se torna ainda mais urgente tendo em vista que é o segundo país no mundo em população negra, composta por mais de 100 milhões de homens e mulheres negras. Apesar de diversas iniciativas que visam promover a igualdade racial, ainda há uma lacuna enorme entre a realidade vivida por estes milhões de brasileiros afrodescendentes e a população declarada branca.
Em entrevista exclusiva para o RedeGIFE, Ana Carolina Querino, gerente de Programas da ONU Mulheres Brasil – entidade que lidera o Grupo Temático de Gênero, Raça e Etnia das Nações Unidas no Brasil -, aponta a urgência no envolvimento, principalmente do setor corporativo, no enfrentamento aos diversos desafios encontrados pelos afrodescendentes no país. Para ela, as organizações sociais, sobretudo aquelas que dedicam pouca atenção ao enfrentamento ao racismo, também precisam atuar e fortalecer políticas de igualdade de direitos e condições no Brasil.
Confira a entrevista completa:
RedeGIFE: A ONU declarou 2015-2024 a “Década Internacional de Afrodescendentes”. Qual a importância de um marco como este?
Ana Carolina Querino: Sob o lema “Pessoas afrodescendentes: reconhecimento, justiça e desenvolvimento”, a Década é uma oportunidade que convoca a todas as pessoas e instituições para o enfrentamento ao racismo. Estamos diante de um sistema que estruturou a política e a economia do mundo moderno nas Américas, expropriações no continente africano e concentração de riquezas na Europa. Logo, é fenômeno alicerçado em projetos de poder com consequências para toda a humanidade. Nos últimos 50 anos, o mundo viu e apoiou os direitos civis nos Estados Unidos, uma série de independências dos países africanos, o fim do apartheid na África do Sul e ação do movimento negro brasileiro para a consciência negra e a institucionalização de políticas antirracistas. Contudo, o racismo é persistente e se renova, provocando a urgência de respostas políticas, sociais e econômicas para a sua eliminação frente aos crescentes assassinatos de jovens negros, à ação perversa do racismo e do sexismo na vida das mulheres negras e a reações racistas diante das migrações humanas.
Quais iniciativas o Brasil pretende desenvolver localmente (ONU, junto com governo, entidades etc) em consonância com os objetivos a serem alcançados nesta Década?
O Brasil é o segundo país no mundo em população negra, composta por mais de 100 milhões de homens e mulheres negras. É um país estratégico para a Década Internacional de Afrodescendentes e com grandes oportunidades e também desafios. Por exemplo, as mulheres negras recebem, em média, 50% da remuneração das mulheres brancas e que respondem por quase 70% das famílias com renda de até um salário mínimo. São 51% das chefas de família. O governo brasileiro está trabalhando num plano de ação para a Década de Afrodescendentes, com prioridade a mulheres negras, juventude negra e ações afirmativas. Na ONU Brasil, estamos elaborando um planejamento estratégico, baseado em resultados de 5 e 10 anos, e na identificação de áreas de ações e parcerias para respostas mais eficientes ao objetivo de enfrentamento ao racismo no país.
Diversas pesquisas e estudos apontam a grande distância que existe entre brancos e negros, por exemplo, em relação à taxa de ocupação, quantidade de anos de estudo, mortes de adolescentes etc. A que se deve, ainda, essa distância e dados impactantes vivenciados pela população afrodescendente?
No Brasil, o racismo é um sistema que hierarquiza as pessoas de acordo com a cor da pele. Em razão disso, negros e brancos vivem países diferentes num mesmo território nacional. Por um lado, a exclusão racial se torna um vetor permanente na trajetória de mulheres e homens negros, condicionando-os a contínuas desvantagens e limitações pelo fato de serem pessoas negras. De outro lado, a inclusão racial de pessoas brancas é fomentada por um sistema de privilégios que lhes fornece condições de poder, decisão, representação valorada que forja patrimônios materiais e imateriais das pessoas negras. Ou seja, enfrentar o racismo significa romper esse mecanismo e trazer à consciência o que significam os privilégios da branquitude. Significa também adotar modelos e práticas distributivas baseadas na equidade e em ações afirmativas que tenham como objetivo fomentar o acesso, a participação e a valorização da presença de negras e negros.
Quais são os grandes desafios a serem enfrentados no Brasil para que a igualdade racial seja de fato vivenciada pela população?
Talvez o principal desafio seja a entrada de atores-chave e ainda não engajados como deveriam nessa questão que é crucial para o desenvolvimento do país. Um deles é o setor corporativo, pois é no mercado de trabalho e na economia onde as desigualdades raciais e de gênero vão ser expostas de maneira mais contundente sobre a ocupação de cargos, processos seletivos, políticas de ascensão profissional e salário. É lá também onde se dão oportunidades únicas como o investimento em talentos, correção de privilégios e a proatividade de transformar a realidade de colaboradoras e colaboradores, parceiros, fornecedores e comunidades à sua volta para que haja realmente igualdade entre negros e brancos. Para uma mudança estrutural, é necessário que atores governamentais, da sociedade civil e do mundo empresarial estejam engajados e fazendo sua parte.
Qual seria então o papel e responsabilidade do setor empresarial na busca por uma igualdade racial para os brasileiros?
São movimentos internos e externos. Para promover a igualdade racial, é necessário enfrentar o racismo. Isso implica a compreensão rigorosa do funcionamento de um sistema que privilegia pessoas brancas enquanto pessoas negras são subjugadas e excluídas. Uma das maneiras de verificar a operacionalização do racismo é por meio de censos internos sobre a quantidade de negros e brancos contratados, cargos ocupados, salários, tempo na empresa, política de promoção, entre outros. As empresas também precisam deslocar atenção para a liderança que devem ocupar na questão da igualdade racial no Brasil. Isso significa considerar a eliminação do racismo como um objetivo a ser alcançado em cada setor de mercado e se envolver numa das questões que tem impedido o país de se desenvolver plenamente. Em 2010, o “Perfil Racial, Social e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil”, traçado pelo Instituto Ethos, revelou que a presença de negros e negras está concentrada na posição operacional (31%), reduzindo-se na medida em que os postos e os salários se tornam mais valorosos: 13% na gerência e 5% nas diretorias. Para as mulheres negras, a situação se torna mais perversa: apenas 0,5% nas posições executivas. A ONU Mulheres, por meio de um programa financiado pelo Fundo de Igualdade de Gênero, apoiou técnica e politicamente o desenvolvimento do “Guia de Enfrentamento do Racismo Institucional”. Trata-se de um roteiro para identificar práticas e rotinas que sistematicamente impedem o gozo das oportunidades por parte das instituições e possibilita a elaboração e um roteiro para alterar esta situação. É importante ter consciência de que o racismo se manifesta de distintas formas: no nível interpessoal, subjetivo e institucional. Para cada nível, é necessário um tipo de ação. E o setor empresarial tem muito a contribuir, principalmente eliminando as práticas institucionais do racismo.
E as organizações sociais? De que forma podem colaborar/intervir para que os direitos da população afrodescendente sejam garantidos e respeitados?
As organizações sociais, sobretudo aquelas que dedicam pouca atenção ao enfrentamento ao racismo, precisam atuar e fortalecer políticas de igualdade de direitos e condições no país. Isso requer colocar inteligência e experiência em prol da construção de tecnologias inclusivas e em busca de soluções que até então não foram possíveis de responder à energia destrutiva do racismo, cuja intensidade se volta contra as pessoas negras e não negras.
Acesse no site de origem: Em entrevista ao Gife, ONU Mulheres destaca importância da Década Internacional de Afrodescendentes (ONU Mulheres, 20/03/2015)