(O Globo, 28/04/2014) Quando despencou, baleado, do muro de uma creche na comunidade carioca do Pavão Pavãozinho para a morte, na semana passada, Douglas Rafael da Silva Pereira ratificou uma nefasta estatística. O dançarino DG foi mais uma vítima da quase profecia que aterroriza famílias pobres e negras Brasil afora. No país, assassinatos subtraem 20 meses da esperança de vida dos homens pretos e pardos. No Rio de Janeiro, eles vivem dois anos menos, o nono resultado entre os 27 estados e o Distrito Federal. Se os óbitos não sensibilizam pelo argumento humanitário óbvio, pensemos na economia. São homens que poderiam trabalhar, girar a roda da produção e do consumo. Mas não vão. Alguns, de tão jovens, sequer conseguiram o primeiro emprego.
E morrem cada vez mais novos. “Em 1980, o pico das taxas de homicídios por idade no país se dava aos 25 anos. Em 2010, caiu para 21 anos”, informa o economista Daniel Cerqueira, diretor de Estudos e Políticas de Estado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Ser jovem e negro no Rio é fazer parte de um grupo de risco, completa o antropólogo Rolf Malungo de Souza, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Se morar em favelas, no subúrbio ou na Baixada, tem de torcer para passar dos 24 anos. DG resistiu um ano mais”, lamenta.
Dados do Ministério da Saúde e do Censo 2010 mostram que a taxa de homicídios dos negros no país é de 36 mortes por cem mil habitantes da mesma cor. O indicador cai a menos da metade (15,2 por cem mil) entre os brancos. Nas contas do Ipea, para cada dois brancos assassinados morrem cinco negros. “Uma pesada herança das discriminações econômicas e raciais contra afrodescendentes no Brasil é a letalidade violenta”, escreveram Cerqueira e Rodrigo de Moura (Ibre/FGV) no paper “Vidas perdidas e racismo no Brasil”, publicado em novembro de 2013.
Os dois pesquisadores encontraram nos tempos da escravidão explicação para o índice alarmante de assassinatos de pretos e pardos. As mortes têm a ver com a alta participação do grupo entre os pobres e os menos instruídos. São pessoas, por isso, mais vulneráveis à violência urbana. A cor da pele, completa Cerqueira, conta também pela visão estereotipada que baliza, por exemplo, as abordagens policiais.
A violência, para Souza, faz parte da construção social da masculinidade no Brasil. Ele estuda o tema desde os anos 1990. “Aqui, os homens se impõem pela violência física ou simbólica. É cultural”, diz. DG foi a vítima da hora, visível pelo emprego que tinha num programa de TV e pela mãe assertiva no discurso por Justiça. Tantos outros tombaram (e tombam e tombarão) sem alarde em crimes de rua, em confrontos entre facções ou pelas mãos da polícia truculenta.
Até a indignação social dar um basta pela via das políticas de respeito aos direitos humanos, o Brasil continuará contando mortos. Em 2012, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foram 99.766 óbitos masculinos por causas violentas (além de assassinatos, acidentes de trânsito e suicídios). Do total, 40.016 tinham de 15 a 29 anos de idade.
Contará também os prejuízos. Cerqueira estima em 2,34% do PIB o custo anual dos homicídios. É muito além do superávit primário que o governo não consegue produzir. É quatro vezes o orçamento do Bolsa Família. E é pouco, diante do valor inestimável de uma vida perdida.
Acesse o PDF: Nefasta estatística (O Globo, 28/04/2014)