‘Sem fiscalização, haverá uma enxurrada de processos’, diz Frei David sobre cotas em concursos

11 de junho, 2014

Lei que reserva vagas para negros em órgãos federais tem pontos questionados até por militantes

(O Globo, 11/06/2014) A nova lei que prevê reserva de 20% de vagas para candidatos pretos e pardos em concursos públicos federais, sancionada pela presidente Dilma Roussef nesta segunda-feira, já suscita questionamentos de diferentes naturezas. Entre as vozes críticas, está a de um de seus maiores apoiadores, Frei David Santos, diretor-executivo do Movimento Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro). Defensor das cotas como política afirmativa, ele participou da elaboração do projeto original da lei, em 2010. Agora, critica o estabelecimento da cota de 20%, que considera aleatória, e a ausência de normas claras para dirimir dúvidas sobre a etnia dos candidatos.

De acordo com a lei, basta o candidato a um concurso se declarar negro para concorrer a uma vaga reservada às cotas. Para Frei David, seria necessário que a regulamentação previsse uma comissão nos moldes da adotada no vestibular da Universidade de Brasília (UnB), em que casos polêmicos acabam verificados por uma banca. Nela, o candidato deve comprovar, por exemplo, se teve parente negro.

— Se não tivermos uma fiscalização no critério da autodeclaração, haverá uma enxurrada de processos. Essa lei precisa ser emendada logo. Em um mundo ideal, onde todos agissem de boa-fé, não precisaria haver comissão. Não é o caso.

Em setembro passado, O GLOBO revelou que um médico carioca de pele clara e olhos verdes foi aprovado na primeira fase do concurso para o Instituto Rio Branco ocupando vagas de afrodescendentes. O caso ganhou repercussão nacional, mas o Ministério das Relações Exteriores manteve a candidatura dele, que alegava ter ascendentes negros. Acabou não sendo aprovado. Além disso, o Ministério Público investiga 41 denúncias de fraude no sistema de cotas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Economista pede meritocracia

Já para o economista Sérgio Besserman, o problema da lei é não estabelecer áreas em que as cotas deveriam ser aplicadas. Ele defende as políticas afirmativas, mas crê que o critério da meritocracia deveria ser primordial, por exemplo, em áreas técnicas.

— Colocar cotas onde a meritocracia se impõe, como concursos para professores universitários ou o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), acho um absurdo completo. Para o país e a população negra e marginalizada, o importante é que esses órgãos funcionem com o máximo de meritocracia possível, a fim de ter eficiência.

O caráter teoricamente vitalício (ou, pelo menos, de longo prazo) do benefício, dada a estabilidade de servidores, também é passível de críticas. Besserman destaca que o próprio regime estatutário deveria ser mudado:

— Deveria ser restrito apenas às carreiras de Estado. O resto teria de ser flexibilizado.

Além de defender que a cota nacional de 35% prevista no projeto de lei original seja implantada, Frei David prega mudança que leve em consideração o critério de proporcionalidade entre os estados. Pela norma aprovada, 20% das vagas em qualquer unidade da federação devem ser destinadas às cotas. O ativista chama isso de “injustiça étnica”.

— Santa Catarina só tem 12% de negros e vai botar 20%. Na Bahia, 70% são negros, e só há cotas para 20%. No final, isso provocaria uma imigração de baianos para Florianópolis. Mesmo errando, o governo fará um bem para o Brasil — ironizou.

Há quem apoie a norma sem restrições

Tentando há quatro anos entrar numa vaga de diplomata, o carioca Luter de Souza, formado em Relações Internacionais, teve motivos especiais para comemorar, já que é militante do movimento negro e fez aniversário no dia em que a presidente Dilma sancionou a nova lei. Mesmo assim, ele faz coro com quem cobra fiscalização maior:

— Para efeito de punição, era necessário haver uma norma mais efetiva, não é o que estamos vendo com essa lei.

Há, por outro lado, quem defenda a norma sem restrições. Na avaliação do pesquisador do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (Gemaa) da Uerj Luiz Augusto Campos, ela é “completamente acertada” ao dar aos negros, marginalizados, mais chances de ascensão social:

— O Estado tem a obrigação de resolver questões sociais como o racismo. Nas instâncias federais, há muita desigualdade. A lei melhora a distorção.

Ele destaca, ainda, que incentivar a entrada de negros no mercado não beneficia só as pessoas dessa etnia, mas o funcionamento do Estado de forma geral.

Mesmo com as conhecidas reações negativas de grupos de “concurseiros”, há candidatos brancos que concordam com a reserva de vagas. O museólogo Felipe Farias, que tenta vaga no Itamaraty, reconhece que cotas “atrapalham um pouco a aprovação”. Mesmo assim, é favorável ao sistema:

— A lei é um caminho importante para termos um corpo diplomático com a cara dos brasileiros. As cotas são uma forma jurídica de combater uma desigualdade real.

Se não for alterada, a lei vigorará por dez anos. Então, o formato das políticas afirmativas será reavaliado.

Leonardo Vieira/ Colaborou Juliana Prado

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