(O Popular, 20/01/2015) Em princípio, campanhas contra o racismo em países tão miscigenados e com origens heterogêneas como o nosso são louváveis. Entretanto, os fins não justificam os meios. Em uma das mídias de sua “propaganda” contra o racismo no SUS, o Ministério da Saúde explora o sofrimento de milhares de brasileiros com doença falciforme – para cujo tratamento o mesmo Ministério faz vista grossa – para embasar um sofisma. Em sua peça publicitária já retirada do site (o que não atenua seu propósito e método), mas que continua circulando nas redes sociais, o Ministério da Saúde atribuiu diretamente ao racismo no SUS o fato de a taxa de mortalidade por doença falciforme em 2012 ter sido bem maior entre pessoas negras e pardas do que entre brancas.
Doenças falciformes são um conjunto de doenças genéticas que têm em comum o gene da hemoglobina falciforme (HbS; “S” de “sickle”, foice em inglês). Elas têm esse nome porque na anemia falciforme o glóbulo vermelho, que normalmente é discoide, assume a forma de uma foice (ou lua minguante). A mutação do gene da HbS originou-se na África subsaariana provavelmente como um fator genético de resistência à malária.
O hediondo tráfico de escravos trouxe para o Brasil pessoas portadoras do gene HbS (com um gene HbS e outro normal) de pelo menos duas regiões africanas. No Brasil, a frequência de portadores do gene HbS varia entre 5% a 10% entre autodeclarados afrodescendentes. Na população do Estado de São Paulo como um todo, essa frequência é inferior a 2%. Por essas razões, a prevalência de doença falciforme é maior em Estados da Federação em que a proporção de pessoas autodeclaradas negras ou pardas também é maior. Enquanto na Bahia a doença falciforme acomete uma em cada 650 crianças, esta proporção cai para uma em cada 10.000 crianças no Rio Grande do Sul.
A forma mais comum de doença falciforme é a anemia falciforme, na qual ambos os genes da hemoglobina, herdados tanto da mãe quanto do pai, possuem a mutação da hemoglobina falciforme (HbS). A anemia falciforme é a doença hereditária monogênica mais comum no Brasil. Em pacientes com a doença, a hemácia falciforme causa obstrução de artérias e um estado inflamatório crônico, provocando dores intensas e lesões permanentes no cérebro, coração e rins.
Também ocorrem no Brasil variantes da doença falciforme, como a hemoglobinopatia SC, em que um gene é da HbS e o outro da hemoglobina C, e a S?-talassemia, em que um gene possui a mutação falciforme e o outro da talassemia. Os genes da talassemia vieram para o Brasil fundamentalmente com a migração italiana e por conta da alta miscigenação brasileira, a S?-talassemia é mais frequente aqui do que em outros países.
Apesar de ser uma doença genética, a anemia falciforme pode ser curada com o transplante de medula óssea. Com o transplante, a oclusão de vasos e a inflamação constante são interrompidas, há melhora dramática da qualidade de vida e mesmo a lesão de órgãos pode ser revertida. Nos Estados Unidos e na França, por exemplo, o transplante é realidade há vários anos. Há aproximadamente cinco anos, pacientes com anemia falciforme e médicos hematologistas vêm lutando incessantemente junto ao Ministério da Saúde para que o transplante de medula óssea seja oferecido pelo SUS.
Apesar da insistência de médicos e pacientes e do benefício claro do transplante para pessoas que sofrem dessa doença, o Ministério da Saúde vem procrastinando essa decisão e não há previsão de quando deverá ser autorizado o tratamento que cura a anemia falciforme para os pacientes do SUS. O único tratamento que o SUS oferece atualmente é paliativo.
Fosse a anemia falciforme uma doença como o linfoma, outra doença hematológica, mas que acomete indistintamente brancos e negros, homens e mulheres, poderosos e anônimos, talvez a sua cura já fosse disponível pelo SUS. Estivesse o Ministério da Saúde verdadeiramente preocupado com o racismo de suas próprias políticas, o transplante de medula óssea para a cura da anemia falciforme seria uma realidade no Brasil há tempos.
Salomão Rodrigues Filho, psiquiatra e conselheiro por Goiás do Conselho Federal de Medicina, escreve com Rodrigo do Tocantins Calado, hematologista e professor associado da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto
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