Ser homem negro no Brasil é conviver com uma série de estereótipos, que envolvem gênero, raça e classe social. Discutir isso é reiterar a noção básica de que ninguém é uma coisa só
(Trip, 22/09/2017 – acesse no site de origem)
Colocar uma lupa sobre a maneira como homens negros experimentam sua masculinidade não é uma tarefa simples. O tema ainda é tabu. “É um debate que tem se encaminhado aos poucos, as mulheres estão anos-luz da gente”, diz Caio César, estudante de geografia. A hipersexualização do corpo negro, a idealização do “negão” bom de cama, selvagem e viril é um dos estereótipos que acompanham o ideal da masculinidade do homem negro. “Não somos o padrão de beleza, nem o padrão de racionalidade e muito menos o padrão de homem de família. Então, se enquadrar nesse estereótipo muitas vezes é o que nos resta”, conclui Caio, sobre como a idealização também age como um mecanismo para driblar a baixa autoestima, o que dificulta a ampliação da discussão aberta sobre o tema.
Para Túlio Custódio, sociólgo e membro do coletivo Sistema Negro, pensar em masculinidade negra em um país como o Brasil é pensar em gênero, raça e classe em conjunto, pois todas as relações de poder influenciam na construção da identidade. Ele considera que “o bom homem negro é o que performa a ética branca”, como se a masculinidade do homem branco fosse o parâmetro do que é correto, o que implica em resgatar os estereótipos de homem trabalhador, provedor, que tem poder de consumo. “Como agem a maioria dos jogadores de futebol negros, por exemplo? Eles ostentam o poder de consumo, escolhem parceiras brancas, atitudes que aumentam o status”, exemplifica.
O filósofo e psiquiatra martinicano e francês, Frantz Fanon, já refletia sobre a expectativa de que o homem negro se encaixe em uma ética que não é dele em “Pele negra, máscaras brancas”, livro publicado na década de 50. Outro estudioso que abordou a questão foi o sociólogo jamaicano Stuart Hall, em seu livro “Cultura e representação”, em que analisa a presença do negro no cinema e na publicidade ocidental. Uma de suas reflexões é de que os estereótipos se formam enfatizando as diferenças: se o homem branco é civilizado e trabalhador, o homem negro é primitivo e preguiçoso. Apesar das imposições, há uma “luta histórica em torno da imagem” que precisa ser considerada.
O ator e diretor Jé Oliveira, o sociólogo Túlio Custódio e o estudante Caio César (Foto: Divulgação/Stephanie Ribeiro/Arquivo pessoal)
Hip hop: construção de identidade própria
Embora o parâmetro seja a masculinidade branca, o homem negro convive com um cenário particular. O Atlas da Violência 2017, produzido com base em estudo realizado pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, confirma um diagnóstico antigo: jovens negros são as principais vítimas de violência. Entre os casos de homicídio, 92% das vítimas são homens e os negros têm 23,5% a mais de chances de serem assassinados, em comparação a brasileiros de outras raças.
Alessandro de Oliveira Campos é psicólogo e coordena encontros para discutir masculinidades, em São Paulo. “Há angustias que impactam na saúde mental. Homens negros cogitam frequentemente a possibilidade de suicídio. Esse é um sintoma assustador ”.
Jé Oliveira é ator e diretor da peça “Farinha com açúcar ou sobre a sustança de meninos homens”, que aborda as vivências dos homens negros de periferia, com trilha sonora composta por singles dos Racionais MC’s. A cultura hip hop, como um todo, foi uma referência na construção de identidade de homens negros ao longo das últimas décadas: “ali a gente encontra uma ética da rua, uma ética de masculinidade que é, sim, machista, mas também é uma ética de respeito ao acordo, de respeito às amizades, às mães, às avós”, observa o diretor.
A condição socioeconômica é um agravante que dificulta a desconstrução dos estereótipos e limita as vivências dos homens negros. “As pessoas da periferia não conhecem muito além do próprio bairro, porque não têm a possibilidade, não se sentem bem circulando por outros lugares, se sentem observadas, julgadas”, observa Oliveira.
Muito além do “negão de tirar o chapéu”
“Aos 16 anos, uma amiga disse que eu tinha cara de quem fazia sexo bem. A julgar pelas opiniões que ela já tinha emitido em outros momentos, aquele bom sexo era um sexo violento”, relata Caio César, morador do Rio de Janeiro. “É importante frisar que a amiga em questão nunca havia se relacionado comigo. Sua opinião foi baseada em estereótipos sexuais ligados a corpos negros”, complementa.
No artigo “Na cama com o super negão: masculinidades, estéticas, mitos e estereótipos sexuais do homem negro”, do historiador Daniel dos Santos, é abordada a relação entre a objetificação do corpo negro e o passado escravocrata do país. O negro escravizado era avaliado “a partir de seus dotes físicos e sua robustez anatômica”, que seriam seriam úteis nos serviços agrícolas e de mineração. Ainda que seja difícil encontrar documentos oficiais, há histórias de homens que tinham como função gerar filhos com escravas. Eram conhecidos como reprodutores, escolhidos pelo porte físico.
“O homem negro quando reduzido a um pênis é objeto de uma reificação grosseira, de um ato de desumanização. E quando ele acolhe essa objetificação caminha para uma solidão inevitável, porque, em algum momento, não será mais objeto de interesse do outro”, pontua Alessandro de Oliveira Campos.
Não é pessoal
No campo dos afetos, a discussão sobre relacionamentos inter-raciais adquire cada vez mais relevância. Em 2015, Helen Lobanov, feminista negra, fez um vídeo que ainda causa comoção nas redes sociais. Na ocasião, ela expôs sua revolta ao perceber que muitos homens negros recriminavam publicamente mulheres negras que mantinham relações com brancos, ao mesmo tempo em que elas são preteridas nas relações afetivas, como comprovado no Censo do IBGE de 2010.
“É difícil para o homem negro se desconstruir porque o machismo é o único poder que ele tem dentro dessa sociedade”, sintetiza Lobanov, que hoje mora nos Estados Unidos. “Eu nunca culpei o homem negro, em específico, pela solidão da mulher negra, o branco também pretere. A responsabilidade do homem negro é admitir que isso acontece e ouvir o que as mulheres negras têm a dizer. A crítica não é pessoal”, completa.
Cena da peça “Farinha com açúcar ou sobre a sustança de meninos homens” (Foto: Evandro Macedo)
Campos explica que é preciso pensar nos modos de sedução e conquista além das preferências individuais, mas também “no reconhecimento histórico de um corpo que foi tratado como mercadoria por séculos e permanece quase exclusivamente como fetiche”. Custódio concorda que “mesmo o desejo e o afeto são construídos socialmente”.
Além de negro é bixa?
A homossexualidade é outro tabu: “a gente vê homens negros não podendo ter uma sexualidade mais ampla”, observa Jé Oliveira. Ele acredita que os estereótipos vão formando cascas que dificultam que o homem exerça suas potencialidades e desejos.
“São dois preconceitos que sofremos, por sermos negros e bixas”. Essa frase é do cineasta Bruno Victor que roteirizou e dirigiu o curta-metragem Afronte, junto com Marcus Mesquita. A produção conta a história de um personagem negro e gay que mora na periferia do Distrito Federal. O curta foi viabilizado graças a grande adesão que tiveram na campanha de financiamento coletivo pela internet e agora circula em festivais e premiações. “Queríamos de falar sobre nossa realidade, nossas vivências. Nessa mesma época tivemos contato com o coletivo Afrobixas. Eles foram uma grande motivação para o filme”, complementa Bruno.
“O machismo está enraizado na construção do imaginário do homem gay, que só é minimamente útil quando se apropria das características viris do padrão heteronormativo. Ser um negro, gay e afeminado, muitas vezes, é sinônimo de solidão. A não aceitação dos nossos corpos e do nosso comportamento é incisiva”, explica Marcus.
O filme Moonlight, vencedor do Oscar 2017, traz essa discussão através do personagem principal. “Ele foi muito representativo em relação às opressões vividas pelos negros gays, a sensibilidade do filme é algo que nos toca profundamente”, comenta Bruno. Ele indica outros filmes sobre o assunto: Línguas Desatadas, de Marlon Riggs, Paris is burning, de Jennie Livingston, Favela Gay, de Rodrigo Felha e Madame Satã, de Karim Ainouz.
Questionar os padrões de masculinidade da perspectiva racial implica em “entender que homens negros são mais do que corpos, mais do que performance sexual, mas sim, homens com multiplicidades, diferenças, receios e vontades próprias”, sintetiza Caio César. Para Campos é preciso pensar no plural: “não há masculinidade, mas masculinidades”.
Carolina Ito