(El País, 25/05/2015) Algo se rasgou em 12 de maio de 2015. Naquela noite, em vez de uma peça de teatro, A Mulher do Trem, oito atores sociais subiram ao palco do auditório do Itaú Cultural, em São Paulo, para discutir a representação do negro na arte e na sociedade. A decisão foi tomada depois que Stephanie Ribeiro, blogueira negra e estudante de arquitetura, protestou contra o uso de “blackface” na peça e o considerou racismo, iniciando uma série de manifestações nas redes sociais da internet. “O que me impressiona é que o debate sobre racismo e blackface é antigo, pessoas do teatro se dizem tão cultas e não pararam para pensar sobre isso? Reproduzir isso em 2015 é tão nojento quanto ignorante. Mas, né, esqueci que, quando o assunto é negro, não existe esforço nenhum em haver respeito”, escreveu no Facebook. E acrescentou: “Só lamento, não passarão”.
Não passaram. Diante de uma acusação tão perigosa para a imagem pública de um e de outro, a companhia de teatro Os Fofos Encenam e o Itaú Cultural decidiram suspender a peça e, no mesmo local e horário, acolher o debate. O espetáculo que se desenrolou no palco tem a potência de um corte.
O que aconteceu ali?
Temos vivido de espasmo em espasmo, como já escrevi aqui. Os dias têm sido tão acelerados que os anos já não começam nem terminam, mas se emendam. Enormidades se sucedem às vezes no espaço de minutos entre uma e outra. Torna-se cada vez mais difícil perceber o que é (ou será) histórico, no sentido daquilo que faz uma marca no tempo. Minha interpretação é que aquele debate, aquelas três horas numa noite da Avenida Paulista, pode virar uma citação no futuro. Pelo menos um sinalizador de um momento muito particular da sociedade brasileira, em que a tensão racial não pôde mais ser contida no Brasil e atravessou uma fronteira inédita. Como interpretação também é desejo, faço aqui a minha minúscula parte para que o debate tenha o lugar que lhe é devido. Como o historiador Nicolau Sevcenko afirmou uma vez, num outro contexto, há coisas que não devemos nos perguntar o que farão por nós, elas já fizeram. Acredito que este seja o caso aqui.
A atriz Roberta Estrela D’Alva, uma das debatedoras convidadas, iniciou sua apresentação falando sobre a percepção, ao entrar em contato com os protestos na internet, de que algo acontecia, algo que não teria acontecido mais de dez anos atrás, quando a peça foi montada pelo grupo Os Fofos Encenam. “Tem alguma coisa diferente nisso, porque tem manifestações sempre, mas que ganham essa projeção, e que foram ouvidas nesse sentido, de alguém que falou ‘não’ pra uma coisa e tomou essa dimensão que nós estamos vendo aqui agora… Eu acho que fazia tempo que a gente tava esperando, aguardando ou pedindo por isso. E não acho realmente que a peça é o foco. Eu acho que o que acontece na peça é sintoma de uma doença culturalmente transmissível, que é o racismo. E de uma relação muito espinhosa, que são os 400 anos de escravatura no Brasil”.
Só agora, depois das manifestações de 2013 e da reação virulenta de setores da sociedade à política das cotas raciais nas universidades e em outros espaços historicamente ocupados por brancos, parece ter se tornado possível um “não” que finalmente foi ouvido na Avenida Paulista. O ponto é que o racismo no Brasil é o debate sempre adiado e, desta vez, ele aconteceu, como muito bem colocou o mediador do evento, Eugênio Lima, DJ e ator: “A gente tem uma tarefa muito interessante nesse momento, que é conseguir dar forma a um debate que nunca se consegue dar forma por completo na história da sociedade brasileira. Toda vez que vai se tocar nesse assunto, se fala: não, não é exatamente o tempo bom. Não, vamos fazer um pouquinho mais pra frente. Não, agora não vai dar. Não, a gente tá muito próximo da escravidão. Não, a gente tá muito próximo dos anos 30, a gente precisa formar (primeiro) a nação. Não, a gente tá muito próximo do projeto da ditadura, a gente tá muito próximo da redemocratização, a gente tá muito próximo dos radicalismos. Então, o nosso desafio é proporcionar um debate que seja de fato um debate”.
Nada do que aconteceu naquele palco é simples. Ou fácil. É racismo? É censura? Estas eram as duas questões espinhosas que pairavam sobre o auditório enquanto as pessoas iam ocupando as cadeiras. Eram, talvez, mais um exemplo das falsas polarizações que têm assinalado o Brasil atual. Por seu potencial explosivo, muitos apostavam e até se preparavam para “um barraco” —e não um debate. Tanto que o mediador foi muito habilidoso ao reposicionar essas questões logo na abertura. Eugênio Lima colocou a necessidade de não escolher o caminho mais fácil, aquele que também poderia ser o caminho da oportunidade perdida, caso o debate se polarizasse entre censura, como o argumento dos brancos, e racismo, como o argumento dos negros: “A gente deve procurar não criar uma invisibilização da voz legítima do outro. Então, quando você chega num determinado momento e fala: é censura, ponto. É falta de liberdade de expressão, ponto. É racismo, ponto… Aí não tem como o outro conseguir dialogar. E a gente precisa dialogar. A gente precisa fazer um exercício de escuta”.
Eugênio Lima também apresentou-se de uma forma bastante interessante, deixando explícito o lugar de onde falava: “Eu não sou um mediador no sentido de que eu vou tentar atingir a média. Eu não estou equidistante entre as duas posições. Eu tenho uma história, uma história política, artística, que fala pelo meu posicionamento”.
Pego emprestada a explicação para este artigo —e para qualquer artigo, acredito eu. Não estou (ou sou) equidistante. Escrevo a partir da minha história e de como me descobri branca, e me redescubro a cada dia, nesse Brasil em que é “natural” pretos, pobres e periféricos morrerem. A própria escolha dos trechos que escolhi transcrever e reproduzir aqui, porque acho que ler é diferente de ouvir —e às vezes se escuta melhor lendo— fala de mim. O debate na íntegra pode – e deve – ser assistido aqui. O meu é um recorte próprio, com grifos próprios, no qual posso inclusive inverter a ordem e priorizar falas da plateia em detrimento da fala dos convidados. Até porque, de certo modo, não houve plateia. Os limites do palco foram ultrapassados e as manifestações do público foram tão ricas quanto a dos debatedores convidados. Apenas no final vou dizer o que o debate me provocou, as reflexões que me trouxe, para não atrapalhar o percurso de nenhum leitor atento, disposto a de fato escutar e, talvez, fazer o mais difícil: mover-se.
Um pequeno aviso, antes que as luzes do palco se acendam. Não se trata aqui de um jogo de “a favor” ou “contra”. Acho que vivemos numa época em que isso foi – ou deve ser – superado. Não são dois lados, são vários. É muito mais complicado. E o momento não está para simplificações. Precisamos avançar para o confronto real, complexo, que abarque as contradições de cada um. São contradições dialogando com contradições. A coerência de cada ator emerge da capacidade de acolher esse desafio.
Por fim, antes de pedir para desligar os celulares, devo dizer que várias pessoas me alertaram para não escrever sobre esse debate. Conto isso apenas para dar uma informação a mais sobre o quanto o protesto, a suspensão da peça e por fim o evento moveram placas tectônicas. Com variações, o aviso era: “O tema é espinhoso demais, os ânimos estão acirrados, você vai se queimar com todos os lados. Melhor ficar fora dessa”. Concluí que o risco de me “queimar” faz parte do privilégio e da responsabilidade de ter esse espaço.
Um pequeno contexto, antes que o espetáculo se inicie.
O evento ocorreu na véspera da comemoração da abolição da escravatura no Brasil, a lei Áurea assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888. Uma abolição jamais completada, 127 anos depois. Neste momento, um jovem negro no Brasil tem um risco 2,5 vezes maior do que um jovem branco de morrer assassinado. De 2003 a 2012, a sociedade brasileira testemunhou – sem escândalo – o assassinato por armas de fogo de 320 mil negros. Imagine, para ter noção do significado, uma cidade de porte médio povoada por cadáveres com furos de bala – e que todos esses corpos têm a mesma cor. E imagine que, neste mesmo país, isso é tão naturalizado – e naturalizar é tornar natural o que não é – que apenas os mesmos se espantam. Esta é a trama que se desenrola nas periferias de São Paulo, nas delegacias e nas prisões, enquanto na Avenida Paulista, no auditório do braço cultural de um dos dois maiores bancos privados do país, o foco e as luzes estão sobre oito pessoas, brancas e negras, que falam a partir de lugares e de posições diversas.
O drama é maior porque os episódios de racismo no Brasil são abundantes e atravessam o cotidiano de um e de todos, de forma explícita ou inconsciente. Mas justamente Os Fofos Encenam, a companhia teatral que montou A Mulher do Trem em 2003, peça que lhe rendeu o prêmio Shell de melhor figurino, além de outras oito premiações, nunca teve qualquer identificação com o racismo. A peça é descrita como “comédia de circo” e a tradição circense no Brasil foi invisível por décadas, até ser resgatada e reconhecida também pela academia. Ainda hoje essa vertente teatral é marginalizada e enfrenta problemas para conseguir recursos. Assim, se sofrer uma acusação de racismo é difícil para a maioria, esse lugar é especialmente penoso para “Os Fofos”, como se verá mais adiante.
Se para o Itaú Cultural era crucial que o debate se realizasse em seu território, para alguns convidados e para parte do público soou arriscado aceitar subir ao palco ou ocupar a plateia do instituto. O Itaú Cultural tem uma atuação reconhecida por dar visibilidade a grupos e questões que sempre estiveram à margem, colaborando com a democratização da cultura, mas também é um fato que os bancos, no geral, têm tido sua imagem cada vez mais associada à desigualdade brasileira. Tanto é que, nos protestos, são os primeiros a serem apedrejados ou terem suas portas derrubadas ou os vidros quebrados por Black Blocs e outros grupos. A última eleição e a recessão em curso tornou essa relação ainda mais sensível. Assim, para muitos, foi difícil fazer justamente esse debate no espaço de um “representante do sistema financeiro”. Todas essas tensões estavam presentes e apareceram nas três horas de duração do evento.
Com tanto em jogo, o debate de fato aconteceu. Havia uma chance considerável de que virasse um bate-boca do tipo rede social, onde os ódios mútuos e as posições fechadas impedem a escuta e inviabilizam o diálogo e qualquer movimento de fato. Nos dias seguintes isso até aconteceu em alguns espaços da internet que repercutiram o evento, num triste rebaixamento. Mas não ali. E começo o debate pela bela aula dada por Mario Bolognesi, professor universitário e pesquisador do circo brasileiro, mostrando que a peça não usa blackface.
—Vou tentar falar um pouco do teatro praticado debaixo da lona, que tem neste país uma longuíssima história, que foi também escondida e não revelada. Só ultimamente, nos últimos 30 anos, é que pesquisadores têm se debruçado para desvendar a história deste teatro riquíssimo. (…) O circo brasileiro, na sua versão teatral, desde o início, acoplou a causa dos abolicionistas. (…) Também acolheu muitos escravos fugitivos, que foram encontrar no circo e no espetáculo uma possibilidade de realização. O circo brasileiro não sabe o que é esse negócio de blackface. Não sabe. Ele nunca trabalhou com esse referencial, nascido em meados do século 19 nos Estados Unidos. O circo brasileiro tem a sua vertente, a sua matriz europeia, que vem de uma tradição da comicidade popular que trabalha com personagens-tipos, o que é diferente de estereótipos. Personagens-tipos são condensações essenciais de características psíquicas, fundamentalmente psíquicas, mas também sociais. (…) E no circo brasileiro estes personagens-tipos se carregam como máscaras. (…) Essa máscara pode ser tanto algo que se acopla ao rosto como pode ser uma maquiagem. (….) E chega a nós por contrastes. Nós temos uma linhagem dos chamados “enfarinhados”. E temos uma outra linhagem de personagens que são os negros pintados de negro. Qual é o sentido disso para o teatro? O sentido é criar uma polaridade, inclusive visual, ou preferencialmente visual, porque, não nos esqueçamos, se praticava teatro ao ar livre pra muita gente. Portanto, o critério de visibilidade deve estar muito bem exposto, e as cores vermelha, preta e branca são as preferenciais deste universo, porque são visíveis à longa distância. No circo, essa polaridade (branca e negra) veio para realçar, trazer o cômico.
Fernando Neves, ator e diretor de Os Fofos Encenam, trouxe uma fala testemunhal nessa direção. Comédia francesa do século 19, A Mulher do Trem teria sido montada pela primeira vez no Brasil, em 1920, no Circo Colombo, mantido pelo seu avô:
—Eu demorei muito tempo pra entender o que era, o que minha família, como outras famílias de artistas, tinham feito aqui nesse país em relação à arte, ou seja, Teatro de Revista, o Circo-Teatro e o Teatro de Comédia. Eu venho de um ventre negro que já teve uma questão forte de entrar numa família de portugueses que chegaram aqui em 1890. Vindos com um circo. (…) Eu proibia a minha mãe, quando fosse alguém em casa, de falar que ela tinha sido vedete. (…) Foi aos 53 anos, em 2003, que eu falei: não, eu preciso falar sobre isso. Foi uma coisa impressionante essa questão de A Mulher do Trem, porque era a peça que levantava a praça, que meu tio escondeu de mim, que também foi duro arrumar material pra fazer pesquisa. E daí a gente fez, e quando a gente tentou dinheiro a gente não conseguiu nada. Então foi tudo na dificuldade eterna. (…) Eu comecei a entender o que era, pro ator brasileiro, a questão da composição e das máscaras. E que é uma questão muito difícil. (…) Porque envolve tipo psicológico, envolve temperamento. Então, é uma questão que infelizmente deveria ser matéria nas escolas. Pra, quando chegasse nessa discussão, eu não tivesse, ou ele não tivesse que falar: não tem nada com o blackface.
Mario Bolognesi é um pesquisador sério e levou ao debate, com toda a honestidade, a complexidade de quem estuda o tema em profundidade. Fernando Neves trouxe a dor de ter dado duro para encenar algo da tradição circense que estava oculto, algo que restava envergonhado tanto nas margens da sociedade como nas margens de si mesmo. Do ponto de vista estritamente conceitual, a peça da discórdia não usa blackface. O sentido é outro, neste ponto de vista. E é importante que isso seja dito e seja entendido. Mas, avançando um pouco mais, é obrigatório fazer a pergunta: quem dá os sentidos? E o que torna o blackface de fato blackface, o que só se completa ao ser assistido (ou, neste caso, não assistido)? Colocado de outro modo: quem diz o que é blackface? Quem o faz ou quem o reconhece?
Aqui, destaco um trecho da fala de Stephanie Ribeiro, a blogueira negra que iniciou o protesto com um post no Facebook. Sua fala interrompe conclusões fáceis. Ela dá conta de uma pergunta subjacente: deveriam, portanto, aqueles que se sentem violados, entender que não é este o sentido, que a rigor isto não é blackface, e seguir em frente?
—A gente começa desconstruindo a ideia de a pele natural ser a branca. Porque eu sou negra, eu sou natural, eu sou normal. Eu não sou exótica. Eu passo a minha vida inteira escutando que eu sou exótica, que eu sou diferente, que o meu cabelo é diferente. Essa é a minha vivência. É isso o que eu levo quando eu vejo aquela foto e vejo que aquela é a representação da pessoa branca para comigo, para com a minha avó, para com a minha bisavó, que eram negras, que foram escravizadas, que foram estupradas, que foram marginalizadas. Essa é a minha história e essa é a história que eu levo sempre e vou levar pra toda a minha vida porque não tem como eu ser negra um dia e não ser no outro. E aí entra a questão da peça e de toda manifestação feita pelo Facebook de várias pessoas negras, e da forma como isso foi recebido por algumas pessoas, de um jeito até racista, de achar que o negro não entende de arte, o negro não entende de cultura, o negro não sabe isso, o negro não sabe aquilo. Sabe quantas vezes na minha vida eu não vejo uma pessoa perguntando: “Ah, mas você faz arquitetura?”. E por quê? Eu não posso fazer arquitetura? Tem curso pra branco e tem curso pra negro? Ah, parece viagem, mas não! É a nossa capacidade, sempre sendo ignorada pela elite cultural paulista na arte. (…) Qual a visão de um homem branco sobre a minha vivência? Sabe? A gente já parou pra pensar isso? Eu não sei o que é ser branco, eu nunca vou saber. Eu sei o que é ser negro. E pautado no que eu sei, é difícil. E eu ainda sou uma mulher negra privilegiada, sabe? Eu tenho sorte de estar numa universidade. Eu sou uma mulher negra ainda de pele clara. Imagina as outras mulheres negras que não podem estar aqui! Que estão limpando o chão, que estão lá, sei lá, cuidando de vários filhos. E isso me ofende porque, quando a gente coloca a imagem do branco para com nós, é uma imagem tão ofensiva, tão estereotipada, que não tem essa de ser máscara, de ser tipo. É a minha imagem toda vez que eu vejo na TV, toda vez que eu vou numa peça. É sempre a mesma coisa. É ou a mulher negra para sexo, ou a mulher negra Globeleza, ou a mulher negra é empregada. Ah, mas por que a mulher negra é empregada? Porque a gente vive num país que, pós-abolição, a mão de obra negra era abundante. Então o que que a gente faz com essa mão de obra abundante? Vai dar chances? Vai dar estudo? Não! Vamos colocar eles pra limpar, lavar e passar. É aí que entra o estereótipo. Não é só pintar a cara de preto. O estereótipo que a peça reforçava é esse estereótipo da mulher negra em vários sentidos: no cabelo, na forma de se portar. Porque estava escrito no próprio site dos Fofos, quando eu fui ler, que ela era intrometida. Então, o problema não é essa peça, mas o problema é a visão das pessoas brancas sobre nós. Essa visão a gente não vai aceitar mais, porque hoje a gente tem voz, hoje a gente pode falar. Que seja no Facebook, que seja com pichação, que seja da forma que for. Eu não aceito. Eu não vou me calar.
Mas, sendo ou não blackface, a arte não é o território da liberdade? A peça em questão não teve um papel crucial ao levar esse debate até esse ponto e, assim, realizar um corte na sociedade? O corte se deu pelo fato de a peça não ser encenada. Mas não seria mais correto que ela fosse encenada e o debate ocorresse logo depois, com o potencial de ser ainda mais rico? A questão então torna-se não mais o “racismo”, mas a “censura”?
Aimar Labaki, dramaturgo, diretor e ensaísta, apresentou um ponto de vista interessante sobre isso. E trouxe ao debate algo fundamental: a necessidade do confronto como parte do processo de construção da democracia.
—A questão do negro no Brasil é igual a duas outras questões pra mim: primeiro, a questão dos desaparecidos e dos torturadores, isto é, a nossa verdade histórica que ainda está, de alguma forma, enterrada, e a ideia de que uma justiça possa vir a realmente servir pra todo mundo. É igual à questão da liberdade sexual, isto é, que a questão do gênero, a questão das opções sexuais sejam normalizadas, pelo menos do ponto de vista legal, e a vida vai fazer com que o óbvio se estabeleça, que cada um viva como quer. Por que estas três questões são importantes? Porque são as três questões que nos impedem de, de verdade, nos sentirmos parte de uma nação e de nos sentirmos parte de um Estado que nos representa em alguma medida. E eu não estou falando só da questão da representação política, que é uma crise pela qual passa o mundo inteiro e que não é uma crise só brasileira. Aqui foi piorado pelo fato de a ditadura ter acabado com uma ou duas gerações de pessoas que poderiam ter o conhecimento de como se mover publicamente e fez com que a nossa educação, nesse sentido, fosse atrasada tanto. Faz 30 anos que acabou a ditadura, mas o (José) Sarney só se aposentou no ano passado e ainda está indicando gente. Ainda tem militar que não obedece ao chefe do comando que é o presidente da República, quando o presidente da República manda entregar documentos que são do Estado, não são do Exército. Então, nós estamos há 30 anos construindo pela primeira vez uma democracia formal, mas nós não temos um espírito democrático, nós não temos um espírito de República. Nós ainda estamos tentando construir isso, e construir um aprendizado de como discutir em público. Porque democracia não é paz. Democracia é luta cotidiana, é debate cotidiano entre os diferentes. E nós temos medo do debate, nós temos medo do confronto. E é preciso aprender a se confrontar. Nesse sentido, essas três questões – a questão do negro, a questão dos torturados e da punição aos torturadores, e a questão da liberdade sexual – é que nos impedem, como diz o poeta, de conseguirmos transformar essa vergonha numa nação. Isso posto, eu acho que pra todas as três questões vale a preocupação permanente de compreender que essa democracia está em construção. E, nesse sentido, não me parece o caminho mais adequado você pedir ou você lutar pela supressão de qualquer representação que te incomode (…) Nesse caso, a representação também é uma forma de manutenção de uma visão de mundo que perpetua o racismo. E eu concordo com isso. Eu acho que essa visão tem que ser apagada, mas ela não pode ser apagada pela força, ela não pode ser apagada pelo silêncio.
Stephanie Ribeiro dá uma resposta:
—Eu queria começar falando que talvez eu seja muito radical, porque, na minha concepção de mundo, pessoas brancas não dizem como pessoas negras devem lutar. Então, se eu quero fazer um boicote, eu vou fazer. Se a gente quer se unir contra uma peça, a gente vai se unir. Porque é isso o que a gente tá debatendo aqui. São anos e anos de pessoas negras não tendo voz. São anos e anos de pessoas negras sendo silenciadas, invisibilizadas. São anos e anos que a representatividade não vem. A representatividade, num país onde 54% da população é negra, não deveria nem ser discutida. Quando a gente se manifesta, a gente não tá censurando, a gente só tá pautando o que ninguém tinha pautado até então porque não tem a nossa vivência. (…) Tem que ter um esforço das pessoas pra entender o que é ser negro no país. Você nunca vai saber o que é viver na minha pele, mas pelo menos pode não reforçar ideias como essa de… “natural é a pele branca”, entendeu? Isso é desconstrução, isso é leitura de gente negra. Gente negra fala, gente negra escreve, e não é de hoje, entendeu? (…) Quando é que eu vou ter o privilégio de não saber o que eu sou? Agora, vocês têm o privilégio de não saber o que eu sou, me marginalizar, me oprimir, e ainda me chamar de censuradora. É ótimo esse privilégio! Essa ação foi muito importante, porque ela foi feita no Facebook, com várias pessoas, principalmente militantes jovens. E é essa força que vem vindo que não vai se calar, gente. Eu acho que é importante as pessoas se abrirem pra escutar essas vozes. Mas essa abertura tem que vir com o diálogo, principalmente, de que pessoas brancas não pautam a luta dos negros. Ninguém vai dizer como a gente deve agir, porque ninguém sabe o que é ser a gente e ninguém sabe tudo o que a gente já passou.
Ao final, Aimar Labaki faz uma espécie de tréplica:
—Eu realmente fiquei emocionado com o que a Stephanie falou, no sentido de que eu nunca vou saber o que é ser negro. Eu sou branco. E, apesar de ter nascido na extrema pobreza – não parece, mas é verdade –, eu tive uma série de sortes que, se eu fosse negro, eu não teria. Então, o meu ponto de vista é de classe média, branco, olhando para a minha realidade. E, desculpa, eu sou interlocutor também. Vocês vão ter que falar comigo também. Eu tenho que falar com vocês, vocês têm que falar comigo. Não acho que a gente seja tão diferente quanto parece. Do meu ponto de vista, a questão do racismo eu vejo de uma forma intelectual, eu não vejo de uma forma emocional. (…) Por isso é que eu entendo e concordo quando você diz: “Não importa se é blackface ou não, é racismo”. Da mesma forma, eu digo: não me importa se é racismo ou não, é censura. (…) Se você tira uma peça de cartaz, seja lá qual for, porque uma parte da população, por mais que seja a maior parte da população, não quer que ela aconteça, nós abrimos um precedente num país que é autoritário, num país onde não há tradição de liberdade de expressão. Você abre a Caixa de Pandora. Em seguida você vai ter os reacionários, você vai ter os militares, você vai ter o diabo a quatro querendo que as coisas não sejam apresentadas porque eles acham que não estão representados nela. Isso não significa que se deva calar a boca de ninguém, muito menos do Movimento Negro.
Um homem na plateia fará, muito mais tarde, um recorte aqui:
—Sou preto, pobre, pederasta e professor. Eu sou, nesta ordem, esses quatro “Ps”. E entendi que o preto vem antes de tudo isso no Brasil, e não só no Brasil. Acho que essa dimensão da cor, sempre que ela vem à tona, a gente recua. E esse recuo já não é mais possível. Eu acho que o que tá acontecendo aqui hoje é sinal de uma mudança estrutural no país que a gente não pode negligenciar e que diz respeito à sociedade, mas também ao teatro que nós fazemos, ao teatro de grupo. Isso é sinal de que alguma coisa muito complexa está acontecendo neste país. (…) Não é uma questão de representação. A cor não se representa. É isto que, de certo modo, oblackface denuncia. Porque o negro é uma outra coisa, além da sua cor. São relações que estão em jogo e que talvez o teatro tenha tido dificuldade de elaborar. Tá na hora de a gente se perguntar o que é que nós estamos conseguindo elaborar neste momento em que de fato uma mudança está acontecendo. Ela não aconteceu. Ela está acontecendo. E ela é perigosa. Ela é perigosa porque o outro existe. E eu também me defino pelo outro. E eu não posso, na minha lógica, reproduzir a lógica da supressão. Eu não estou com isso dizendo que nós vamos ouvir os brancos e eles vão nos pautar. Eu só tô querendo dizer que talvez a gente tenha, como negro, de ser capaz de elaborar uma imagem do branco. E nesse momento é que a sociedade muda.
Fernando Neves, de Os Fofos Encenam, faz um desabafo. E uma conclusão.
—A gente fez apresentações, em 2003, e a peça foi pro baú. Quando ela retoma, a gente leva um susto. O Eugênio fala assim: “Fernando, pensa o que é isso. É uma coisificação de uma ideia que traz muito sofrimento pra muita gente só de olhar. Não precisa ver a peça”. Eu falei: é um totem. É um totem. Então tá errado, a máscara de circo não foi feita pra isso. A minha família, todo o trabalho, tudo, quem fazia essa máscara era a minha mãe. Ela não foi feita pra isso. Ela foi feita pra divertir. No circo, drama é pra chorar e comédia é pra rir. Ela não foi feita pra ridicularizar ninguém. Tanto é que, se vocês olham os tipos de A Mulher do Trem, a mulher que faz a dona da casa, ela tem o nariz torto, a boca torta. Não é assim, que o negro tá pintado e todo mundo tá com cara e pele boa. Não é. Tá todo mundo ridicularizado. Porque era isso que o circo fazia. Então, quando o Eugênio me explicou o que era isso, eu falei: então essa máscara tem que sair de cena. Ela não pode ficar, ela não foi feita pra isso. Como várias vezes, durante a História, várias máscaras e vários tipos tiveram que sair de cena. Eles se ressignificam e voltam. O teatro é vivo. (…) Para tudo! (…) Essa máscara tá fora de cena. Ela tem que sair de cena. Porque ela não foi criada pra causar dor em ninguém. Porque é tudo o que a gente não quer na vida. E nossa arte, tudo o que a gente tá fazendo, não se baseia nisso. Eu não quero, e nenhum dos Fofos quer. (…) Então, o que eu queria dizer é que apoio essas falas que ouvi até agora, tão sábias. Eu apoio plenamente. E… estas máscaras estão fora. (…) A gente tem que trabalhar na alegoria que existe na arte popular pra trazer reflexão. Antes, ela era forma. Agora ela tem que ter um engajamento. Ela é posta pra gente discutir. Eu quero agradecer muito e pedir desculpa a todos que eu tenha ofendido (…) Foi uma coisa que me machucou demais. E me trucida, porque isso é tudo o que eu não queria na minha vida. Então, essa máscara tá fora de cena, como tá fora qualquer tipo de preconceito, qualquer tipo de racismo e qualquer tipo de violência.
Fernando Neves chora.
O espetáculo tornou-se o debate (ou o debate tornou-se um espetáculo?), que abarcou não apenas o palco, mas a plateia, e as reações nas redes sociais provocadas por ele. Parte do público apropriou-se de A Mulher do Trem e subverteu-a. Sem ser encenada, a peça teatral provocou uma outra cena, que também a contém. Arte e política como categorias indissociáveis, imunes a delírios de pureza e de significados em si e para si. Profanadas, sempre, pelo mundo e pelas circunstâncias. Teatro.
Aqui, talvez, seja o momento de eu dizer como me senti neste debate, de forma totalmente honesta e até difícil pra mim. Como Aimar Labaki, a ideia de um espetáculo não ser apresentado, ser censurado, seja por quais motivos forem, ainda que se diga que não é censura, mas decisão do grupo, o que seria autocensura, me arrepia. A ditadura, a censura e a repressão são bem vivas na minha memória, e eu temo exceções, porque elas botam o pé na porta e abrem espaço para que o pior vire regra. Afinal, quem vai dizer quais são os bons motivos para suspender um espetáculo? Quem será mais igual do que os outros, parodiando A Revolução dos Bichos, de George Orwell? Um boicote da peça teria me parecido mais democrático, mas não a suspensão da peça. Protestos na porta do Itaú Cultural, o que possivelmente aconteceria se ela fosse encenada – perspectiva, aliás, que deve ter assustado os envolvidos –, causariam comoção e discussão. E a peça lá, no palco, provocando e sendo provocada, para possivelmente nunca mais voltar do mesmo jeito.
Porém, uma outra percepção foi se tornando mais forte na medida em que eu escutava os negros. Talvez tenha sido preciso fazer esse corte dentro do corte. Porque talvez o fato de eu pensar sobre isso como uma censura, num momento de construção de uma democracia cheia de buracos, seja um privilégio meu, como branca, que não sei o que é ser negra neste país. Posso escrever sobre isso, como escrevo, posso tentar vestir a pele negra, como tento, mas ser é de outra ordem. E esta ordem eu preciso admitir que não alcanço. E talvez a ruptura seja a única forma para aqueles que não têm privilégios serem escutados pelos que têm privilégios. Talvez seja este o momento do Brasil. E talvez seja importante que assim seja, porque já se passou tempo demais para uma abolição não ter sido completada. Talvez a escravatura só acabe, de fato, a partir de rupturas como esta.
Para mim, a síntese veio por esta fala de um homem jovem e negro na plateia, que tinha grandes chances de estar morto, mas está vivo:
—Meu nome é Max. Eu sou ator… Eu era ator, mas eu me tornei produtor cultural por ausência, por necessidade de produções culturais em que eu me sentisse um pouco mais digno. Digno. Acho que é a palavra perfeita pra ocasião. Eu vou falar a partir da minha pele preta natural e do meu cabelo normal, embora alguém em 1930 tenha dito que existiam cabelos normais e outros sei lá o quê. Né? Decidiram o que era normal e o que era natural. (…) É interessante como o branco treme quando vai perder o privilégio. Então, de repente, quando você toca no privilégio daquele que sempre pôde falar como quiser, de quem quiser, na altura que quiser, alguém fala: “Eu não gostei”, e chamam essa pessoa de Estado. Né? (…) Os negros, que nunca tiveram sequer grandes papéis no Estado, são censuradores. Não houve Ministério Público, não houve DOPS, não houve Conselho da Comunidade Negra, não houve SEPIR (Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial) mandando, enviando. E ninguém nem foi perguntar aos Fofos se era censura ou não. (…) As pessoas assim… com um treme-treme de perder esse espaço. Eu acho que é aí que o copo tem que esvaziar. A gente, enquanto homem, vai ter que perder privilégios para dar espaço às mulheres, aos homossexuais. A gente, enquanto sudestinos, vai ter que abrir espaço nos editais pra que o Norte seja contemplado também. E talvez os brancos ainda não conseguiram dar um milímetro de passo pra perder seus privilégios. Ou pra compartilhar os privilégios nas universidades. Compartilhar o privilégio desse diálogo. Eu fiquei com medo de ter que fazer barraco aqui, (…) achando que ia ter uma palestra de pessoas justificando o blackface. Eu tava preparado pro barraco. Sério mesmo. Nunca vi o mercado financeiro abrir espaço pra um debate desse. Nem o Estado, nem o mercado financeiro. (…) Eu quero colocar essa questão pras pessoas pensarem o que é esse privilégio. Uns amigos falam: “Mas eu não tenho privilégio de ser branco!”. Eu falo: você tem avô, avó? “Tenho”. Então você já é branco, porque a maioria dos negros não conhece os avós. Você pode andar na rua sem o carro da polícia pelo menos parar um pouquinho pra dar uma olhada em você? Ele nem sabe o que é isso. Você para um táxi e ele para? Ele nem sabe o que é isso. Então, você tem um monte de privilégio de ser branco. Só que você tem o privilégio do privilégio de nem pensar nos seus privilégios.
Fiquei pensando sobre a enormidade desse privilégio, que é o de não ter que pensar nos meus privilégios. E fiquei pensando a partir de um grupo no qual tenho a pretensão de me incluir: o dos brancos não racistas, o dos brancos que denunciam o racismo e lutam contra ele. Percebo que, por mais profundo que seja o discurso do branco, por mais articulado, ele fala a partir de um lugar do qual teme ser deslocado, consciente ou inconscientemente. E, assim, sempre que possível, adere, aliviado, ao discurso mais intelectualizado, aparentemente limpinho, que no caso das cotas era o de que raça é algo que não existe ou que o problema do Brasil é social e não racial etc etc. E aqui, talvez, o discurso de adesão capaz de manter as boas aparências seja o da censura ou da liberdade de expressão. De certo modo, o discurso do melhor branco é sempre contemporizador.
Esses brancos bacanas, cool, esperam que os negros fiquem satisfeitos com a “abertura lenta, gradual e segura”. O ponto de vista é sempre o da concessão. E concessão é a palavra escolhida por aquele que tem o privilégio de conceder. Talvez o problema no Brasil, com relação à questão racial, seja semelhante ao da redistribuição da renda. Mesmo os brancos bacanas querem avançar na igualdade sem perder nada. Os negros ascendem sem que os brancos percam um centímetro do seu privilégio, o que começa pelas empregadas domésticas. Porque privilégio de branco é cláusula pétrea na sociedade brasileira. E aqui aproveito para sugerir que assistam à Casa Grande, filme no qual a Senzala é a presença – ou onipresença – não nomeada.
Os negros não podem se impacientar, ao contrário, precisam agradecer a benevolência. E, quando questionam, e em especial quando questionam gente bacana, aqueles que têm certeza de fazer o certo, a conversa muda de tom. É fácil se unir contra os trogloditas, e no Brasil há sobra deles. E contra os bacanas, os cool, como é que fica? E escrevo sem ironia, porque me incluo nesta conta. Escrevo com dor, porque a incompletude da abolição colocou gente de fato digna, brancos dignos, numa situação com poucas saídas a não ser um confronto que começa dentro, com a dureza dessa realidade que, enquanto não mudar, impede qualquer branco de ser de fato digno. É essa a tragédia que precisamos encarar: a impossibilidade de um branco ser digno neste país enquanto a realidade dos negros não mudar. A verdade brutal é que, no Brasil, o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho.
Não quero ter a última palavra. Quero acrescentar duas falas que representam minhas melhores esperanças, ainda que eu saiba que esperança também é um privilégio de poucos.
A primeira é do mesmo homem da plateia que se apresentou como “4 Ps”:
— A pergunta talvez seja: neste contexto, que é novo, como é que nós inventamos uma outra sociedade? Porque, como professor de História do Teatro Brasileiro, eu não estou interessado em revisar a história do teatro brasileiro, eu estou interessado em inventar uma outra História. Acho que este é o ponto.
E termino com Roberta Estrela D’Alva, juntando duas falas que ela fez em momentos diferentes do debate. Na primeira, ela se referia a uma questão colocada pelo professor Achille Mbembe, com quem viajou pela África:
— O que nós vamos ter que deixar morrer em nós, brancos e negros, para que haja a transcendência, para que haja o encontro? Porque os copos estão cheios. O que a gente vai ter que derramar para que comece a penetrar? (…) Para a gente transcender vai ter que ser junto. Não tem nós e eles. O racismo não é um problema do negro, é um problema da sociedade. E nós todos somos a sociedade.
No meu teatro, Estrela D’Alva tem a última palavra:
— Se a paz não for para todos, ela não será para ninguém.
Acesse no site de origem: No Brasil, o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho, por Eliane Brum (El País, 25/05/2015)