As mulheres negras são um dos grupos em situação de maior vulnerabilidades pelo acúmulo de discriminações decorrentes do racismo, do sexismo e de outras formas de opressão, que incidem na trajetória de suas vidas e de suas famílias. Essa é a teia de narrativas que podem ser tecidas em torno de três datas: Dia Internacional das Famílias, celebrado nesta segunda-feira (15/5); Dia das Mães, ocorrido no domingo (14/5); e Dia Nacional de Luta contra o Racismo – contraponto do movimento negro ao Dia da Abolição e à Lei Áurea pela ausência de políticas e medidas de inclusão após o fim da escravização, há 129 anos, completados no último sábado (13/5).
(ONU Mulheres, 15/05/2017 – Acesse o site de origem)
Em seguimento à estratégia Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030, desenvolvida pela ONU Mulheres em parceria com organizações de mulheres negras, duas entrevistadas reconstituem suas histórias de vida e de familiares, as quais evidenciam como o racismo e o sexismo repercurtem no dia a dia das afro-brasileiras. São entrevistadas da ONU Mulheres: Débora Maria da Silva, fundadora e coordenadora do movimento Mães de Maio; e Mônica Cunha, fundadora e coordenadora do movimento Moleque.
Débora Maria da Silva, fundadora e coordenadora do movimento Mães de Maio, mobilizou Assembleia Legislativa de São Paulo para criação da Semana Estadual das Pessoas Vítimas da Violência no Estado de SP
Foto: Reprodução internet
Elas travam seus dias em busca de justiça ao assassinato de seus filhos – dois dos jovens que compõem o contingente de 27 mil jovens negros assassinados num conjunto de 30 mil mortes violentas a cada ano. Estes são dados do estudo Mapa da Violência 2014: Os Jovens do Brasil, no ano de 2002, o índice de vitimização negra foi de 73: morreram proporcionalmente 73% mais negros que brancos. Em 2012, esse índice subiu para 146,5. A vitimização negra, no período de 2002 a 2012, cresceu significativamente: 100,7%, mais que duplicou. Conforme o Atlas da Violência 2016, 21 anos é a idade-chave em que um homem negro jovem pode ser vítima de homicídio. Em 2014, enquanto Alagoas liderou o ranking com uma taxa de 82,5 por 100 mil habitantes negros, no Rio Grande do Norte a taxa de vitimização de negros aumentou 388,8%.
Mães de Maio – “Meu filho foi assassinado em 15 de maio de 2006. Ele se chamava Rogério. Tinha 29 anos e era gari. As últimas palavras do meu filho para mim foram: ‘parabéns a você’. Eu faço aniversário no dia 10 de maio. Mesmo com atestado médico por conta de uma cirurgia de extração de siso, meu filho trabalhou no dia da sua morte. Após a morte dele, eu me debilitei. Fiquei 40 dias e 40 noites hospitalizada”, conta Débora Maria da Silva, fundadora e coordenadora do movimento Mães de Maio. Rogério foi uma das vítimas fatais da onda de violência, ocorrida em São Paulo, em maio de 2006, que teve 564 assassinatos – 505 civis e 59 agentes policiais.
Os Crimes de Maio motivaram criação da Semana Estadual das Pessoas Vítimas de Violência no Estado de São Paulo, entre 12 a 19 de maio, instituída no ano de 2014 pela Lei nº 15.501/2014, por iniciativa do movimento Mães de Maio. No ano de 2013, a Assembleia Legislativa de São Paulo deliberou 12 de maio como Dia das Mães de Maio pela Lei nº 14.981/2013, e o movimento foi reconhecido na categoria Enfrentamento à Violência pelo 19º Prêmio de Direitos Humanos, concedido pela Secretaria de Direitos Humanos do governo brasileiro.
Débora é daquelas mulheres que faz verbo do substantivo luto. A ação de Débora diante da violência fatal contra o seu filho foi se juntar com outras mulheres. Com sua voz forte, ela informa: “Hoje está fazendo 11 anos da morte dos meninos. Dia 10 de julho, completa 11 anos da articulação que nós fizemos. Essa é a missão que Rogério me deu e eu levarei até o túmulo. Eu sinto dor, mas não consigo ficar na cama. Se não fosse ele, eu teria morrido, várias vezes, por conta da impunidade. Fui atrás de outras mulheres. Elas vieram para a resistência. O movimento tem vários núcleos e está fazendo formação em outros países, a exemplo do Peru. Para os Estados Unidos, eu já fui duas vezes. Fizemos o julho negro. Nós não temos mais fronteira. O que nós temos é uma luta pela desmilitarização das Américas”, diz Débora Maria da Silva.
A ativista é implacável ao reconhecer o racismo no assassinato de seu filho e a ação da discriminação racial em diferentes etapas da sua própria vida. “Criamos nossos filhos. Demos educação. Não aceitamos que matem nossos filhos e as suas mães. Foi o racismo que matou eles. Mata. Encarcera. Não tem legado de escravatura. O Brasil é um país que não teve reparação. É um país que diz fazer reparação aos negros e aos indígenas matando. Não podemos aceitar. O racismo é estrutural sim”, assinala.
Na sua história e de seu filho, Débora resgata, ainda, a violência obstétrica de que foi alvo. “Quando pari Rogério, os médicos brancos mutilaram o meu corpo. Eu nunca mais pude usar biquini. Vejo o meu corpo mutilado pela saúde, pela educação e pelo que matou o meu filho. Estamos formando o movimento Mães de Maio no Nordeste. Já denunciamos para a OEA [Organização dos Estados Americanos] e vamos reforçar a nossa ação internacional”, adianta Débora Maria da Silva.
Adoecimento de mulheres negras – A articulação política que se inicia pela dor também é a história de Mônica Cunha, fundadora e coordenadora do movimento Moleque, criado no ano de 2003, no Rio de Janeiro. Mãe de três filhos, naquele ano, Mônica foi alçada à esfera de familiares que acompanham o cumprimento de medidas socioeducativas devido a ato infracional de seus filhos e, três anos depois, ao conjunto de mães de filhos assassinados.
“A maior parte dos adolescentes é criminalizada pelos atos infracionais, vivendo situações de aprisionamento. As mães, em geral, mulheres negras ficam improdutivas. Elas não têm condição de trabalhar. Algumas desenvolvem síndrome do pânico, depressão, câncer”, explica. Da necessidade de fazer valer a lei, Mônica buscou outras mulheres e familiares para enfrentar a prática de violação de direitos. “É preciso que entendam que seus filhos não nascem segurando uma arma. O que a gente faz é fazer a formação para que a família, mesmo que tenha seu filho cumprindo medida socioeducativa, entenda que eles têm direitos e consiga ajudar. A gente só consegue mudar esse histórico com informação”.
Quatorze anos após a criação do movimento Moleque, Mônica Cunha expandiu a sua capacidade de incidência política. Uma delas foi o processo da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver, ocorrida em 2015, e as interlocuções com a ONU Mulheres, a exemplo de reunião com a subsecretária-geral da ONU e diretora executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, durante a Rio 2016. “O meu foco na Marcha das Mulheres Negras foi colocar o adoecimento das mulheres negras, porque estamos nos matando por nossos homens e filhos. É uma sequência dos dois gêneros afetivos indo embora. Essa é uma violação muito grande. Esse foi o meu ponto dentro da Marcha. Entendi que o movimento negro tinha que pegar essa causa. Essa causa é nossa. Foi uma aceitação de entendimento. É uma pauta do movimento negro. É o genocídio do povo negro”, ressalta ao citar algumas entidades como parceiras políticas, tais como a Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras, Criola, Geledés e Odara.
Atualmente, Mônica é assessora da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. “Estar nesse lugar é bom para entender melhor, abrir outras portas e para mostrar para outros movimentos que nós existimos. O ponto é meu filho entrar [para o sistema de medidas socioeducativas] e [este sistema] me devolver um monstro ou morto. Meu filho entrou de um jeito e me devolveram uma outra pessoa. Meu filho foi assassinado, em 5 de dezembro de 2006, aos 20 anos. Há lugares muito distintos dentro das unidades. Eu conheço a dor. Maio é mês das mães. É muito difícil passar a data com filho morto ou encarcerado. No domingo, Dia das Mães, você não está com ele. O sofrimento dessa mulherada negra tem sido muito grande”, desabafa Mônica Cunha.
Tal qual Débora Maria da Silva, Mônica atribui ao racismo o assassinato da juventude negra e a impunidade dos crimes. “Essa história de bala perdida não existe. É bala achada. Quando o braço armado vai para dentro de uma favela, que tem escola, que tem comércio, não tem bala perdida. Agora, é fazer com que a sociedade entenda isso. Essa divisão é tão grande que a maioria do nosso povo se sente culpada. Há mães que falam e concordam com a redução da maioridade penal, porque não sabem o que está por detrás disso. Muitas se perguntam o que não fizeram para evitar que isso ocorresse com os seus filhos. A gente sabe que ela fez na medida do que pode fazer. Você tem que encorajar. Dizer que ela é potência. Não é mole. É muita luta. As histórias são fatais”, salienta Mônica.
O enfrentamento à impunidade é outra questão comum aos casos de prisões e assassinatos de pessoas negras. “O caso Rafael Braga é um exemplo de quando o Estado entra e nos desestrutura. A mãe dele se tornou alcoólatra. Ele não morreu, mas a situação dele é dificil. Isso com todas as provas e articulações de movimentos sociais, a gente não consegue tirar Rafael da prisão. Aqui, no Rio, tem dois casos: o de Rafael e de José, pai de Acari. Ele teve o filho de 2 anos e 9 meses assassinado, há 21 anos, o qual foi enquadrado como auto de resistência policial. Imagine, auto de resistência contra uma criança de dois anos de idade”, aponta.