Nós negros não morremos só de tiros. Eu tenho depressão, por Stephanie Ribeiro

12 de setembro, 2016

Como lidar com o racismo?

Eu faço essa pergunta a mim mesma diariamente e incansavelmente. E confesso que ainda não tenho a resposta para ela.

(HuffPost Brasil, 12/09/2016 – acesse no site de origem)

Optei por falar sobre racismo para compreender e enfrentar o que vivencio e testemunho diariamente. Entretanto, mesmo que não sejamos diretamente ativos no ativismo contra o preconceito, nós, negros estamos sempre resistindo para existir.

Me sinto fadigada, desamparada e com medo até de sair de casa e encarar o mundo. Parece que fora da minha zona de proteção não há um dia sem sufoco, perturbação e dor. Quanto mais consciente nos tornamos, percebemos o quão constante e devastadoras são as violências que presenciamos ou sofremos.

Temo até compartilhar com outros o que me causa tanta tristeza e ninguém ser capaz de compreender, afinal, muitos tratam depressão como “frescura” e racismo como algo que se você for “superior” nos estudos, no trabalho, etc, será vencedor, além de absurdo é um discurso meritocrático violento.

Vivemos numa sociedade que traz em si as marcas de quase 400 anos escravizando pessoas como eu. As consequências desse processo são enormes. Uma delas é a criação de esteriótipos que recaem sobre nós assim que somos entendidos como negros:

Negros são bandidos.
Negros são safados.
Negros não se esforçam.
Negras são boas de cama.
Negras são barraqueiras.
Negras são raivosas.

Esses são apenas alguns dos estigmas que nos são dados só por sermos negros, e um dos que mais consigo me identificar é o de que “negros precisam ser fortes”. E ser forte é não chorar, não ceder, não mostrar o que sente mesmo em situações adversas de impacto.

“A ilusão de força tem sido continua a ser de significado maior para mim como mulher negra. O mito que venho tendo de suportar toda minha vida é o do meu suposto direito inato à força, Supõe-se que as mulheres negras sejam fortes – amparadoras, nutridoras, que curam outras pessoas -. qualquer uma da infinidade de variações da mammy. Supõe-se que a dureza emocional seja construída na estrutura de nossas vidas, está ligada ao fato de eu ser ao mesmo tempo negra e mulher.”

Meri Danquah em Willow Weep for Me

Essa imposição do “seja forte” é extremamente danosa para nossa saúde mental. Pois ela impossibilita que acreditemos que estamos doentes quando estamos tristes constantemente. Segundo Meri Danquah, “a depressão clínica simplesmente não existia dentro da esfera de minhas possibilidades, ou na esfera das possibilidades de qualquer mulher negra no meu mundo”.

Corriqueiramente sinto me estafada, frequentemente me encontro chorando escondida; após uma crise de ansiedade sinto me culpada por estar cedendo as lágrimas e a tristeza quando, na verdade, eu queria chorar sem culpa.

Por diversas vezes sinto vontade de ser fraca, mas algo constante impede. É um sentimento de sufoco doloroso. O pior não é ter medo do que já aconteceu, mas sim saber que não podemos nem chorar por isso. Aprendi que devo guardar todas as mágoas e deixar elas crescerem e às vezes até dominar: o meu medo de falar e de me expor é enorme.

Ser forte não é bom para mim enquanto mulher negra. Ser forte é negar minha humanidade. Eu quero falar sobre isso, eu preciso falar sobre isso também.

A cobrança da mulher negra que aparentemente “não sente nada e lida bem com tudo”, é um resquício da ideia de que somos mais objeto do que gente. Existem dores na minha alma que me fazem querer chorar e ficar só.

Nós, negros, e a falta de amor

“O amor nos abandona de tempos em tempos, e nós abandonamos o amor. Na depressão, a falta de significado de cada empreendimento e de cada emoção, a falta de significado da própria vida se tornam evidentes. O único sentimento que resta nesse estado despido de amor é a insignificância.”

Andrew Solomon em Demônio do meio-dia – Uma anatomia da depressão

Os desprivilégios que nós, negros, compartilhamos, independente do gênero, é o de não saber amar. Somos em geral frutos de lares destruídos pelo racismo, de famílias que contam apenas com uma mãe sobrecarregada, ou que convivem com agressões físicas sendo naturalizadas. Quando pensamos em uma família perfeita e repleta de amor, a imagem que nos vem à cabeça, imediatamente, é aquela imposta pela mídia: pessoas brancas felizes com dois filhos e um cachorro.

Parece que para pessoas negras o amor é algo distante demais. Se fôssemos enumerar quais as barreiras que o racismo nos coloca, citaríamos educação, salários, representatividade, entre outros campos. Mas nunca lembraríamos o campo afetivo. E é nessa categoria que muitas vitórias racistas se acumulam, afetando nossa saúde psicológica por nos fazer carregar repetidas frustrações e aceitar reproduções de relacionamentos abusivos. Tudo isso em silêncio, como se não existisse um problema estrutural. Já que amor é “bobagem” e não se discute, ainda mais entre negros educados para serem “autosilenciados” com medo de não serem tão “fortes” assim.

Em Vivendo de Amor, Bell Hooks (2006:188), afirma que “muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor”. E esse é um reflexo de um desprivilégio da mulher negra, o da não escolha sobre si mesma, que somado com as imposições das visões criadas sobre nós pelo imaginário racista: somos os símbolos sexuais quentes, estereótipo criado para justificar historicamente os estupros sobre nossos corpos. Ou pior, apenas servimos para nutrir, como amas-de-leite.

Já entre os homens negros é comum na construção da masculinidade o silêncio. Homens que não falam entre si, não falam sobre o que sentem, homens que realmente não podem chorar.

“Não há muitos lugares para mulheres negras deprimidas, mas não há lugar algum para um homem negro deprimido.”

Meri Danquah em Willow Weep for Me

Homens e mulheres que resistem, mas que não estão bem.

Enquanto houver racismo, seremos sempre deprimidos?

Descobri a depressão no terceiro ano da faculdade. Eu chorava sem parar desde o segundo ano, rotineiramente me sentia triste e não entendia a necessidade de respeitar meus limites. Logo no primeiro ano eu fui para o hospital depois de ficar 48 horas sem dormir e urinar sangue.

Sem conhecer os limites do meu corpo eu achava que deveria estar sempre bem, para poder competir em pé de igualdade com meus colegas e que tinha a obrigação de me esforçar mais (o que não era mentira, pois eu não podia dar motivos para uma pessoa branca que estava ali ao meu lado dizer que não era apta a ocupar aquele lugar, que meu posto não era meritocrático).

Eu apenas não tinha parado para pensar que minha saúde física e psicológica deveria estar bem para competir em pé de igualdade dentro de um sistema opressor que sempre está “bem e saudável”.

O segundo ano foi um dos mais difíceis. Passei noites sem dormir. E enquanto eu deveria aproveitar o fim de semana, eu só dormia. Eu não tinha momentos com minha família. Eu estava ou sempre muito cansada, ou sempre me sentindo muito culpada por estar muito cansada e não conseguir fazer tudo como queria. No terceiro ano eu tive uma crise de ansiedade após perder um passeio da faculdade. Fiquei nervosa e me sentindo estafada, me machuquei.

As coisas pareciam muito nebulosas e minha vontade de sair da cama era cada vez menor. Foi quando precisei ir para um hospital. Além de toda a opressão que passamos, quando buscamos ajuda medica e precisamos que algum medicamento como anti-depressivo, por exemplo, ainda existe muito preconceito. As pessoas e até alguns médicos pré-estabelecem o que é depressão e não entendem que ela tem graus, causas e processos de melhora distintos.

No começo de 2016 eu estava bem abalada. E, sim: algumas vezes eu tive vontade de me matar. Não me culpo. Entendi que, no fundo, muita gente não quer morrer. Mas quer algo mais da vida e têm medo de dizer isso, até mesmo para quem é preparado para ajudar, como é no meu caso.

Eu cansei. Percebi que que isso é comum entre muitas mulheres negras, por isso é preciso compartilhar. Me senti na obrigação de dividir, pois nada que é comum é individual. Temos problemas parecidos, pois nossas vivências são semelhantes. E, por isso, a culpa não é nossa.

Solomon em seu livro, O demônio do meio-dia, uma anatomia da depressão, diz que por muito tempo as doenças mentais foram definidas por homens. Eu diria que, por muito tempo e ainda hoje as doenças mentais são definidas por homens e brancos.

Um estudo norte-americano divulgado em agosto de 2014 na revista científica Addictive Behaviors, indica que dos 4,5 mil negros estudados no país, 83% afirmaram já ter passado por alguma forma de discriminação. Contudo, 50% disseram sofrer todas as formas de racismo analisadas e nos 14,7% afirmaram sempre passar por discriminação.

Se fosse feito um estudo mais aprofundado no Brasil, focado apenas no recorte racial, seria nítido que muitos negros sofrem do mesmo mal devido às situações racistas que passam ao longo de suas vidas.

As consequências do racismo para a população negra são ainda pouco debatidas. Geralmente, quem age nesse meio são psicólogos e psiquiatras negros, que deveriam ter um olhar delicado para a questão. Mas nem todo negro nesse campo tem plena noção do que é racismo. Já tive experiências com especialistas negros que negaram que eu passava tinha relação com o racismo. O problema, então, estava só comigo, e não passava por um contexto social.

Não nascemos negros, mas nos tornamos negros

Infelizmente, ao contrário do que dizem, a frase acima é extremamente devastadora para a maioria da população negra ao passo que é possível identificar de onde vem a dor.

Um exemplo é a perda da escritora Neusa Santos, a autora de Torna-se Negro. Ela suicidou-se, deixando apenas um pedido de desculpas em um bilhete.

Neusa não é a única. Como Solomon pontua, o desejo suicida coexiste com a depressão. Porém, quando nós, negros, falamos da ausência de afetividade, precisamos dar um passo que chegue até às doenças psicológicas, na culpa constante e no suicídio. Afinal o que leva uma jovem negra, ativista, de 23 anos se matar e apenas deixar:

“Meus demônios ganharam hoje. Me desculpe?”.

Isso dói muito. Eu entendo ambos. Nós negros não morremos só de tiros. Morremos quando nossa voz é tão silenciada, que aprendemos que não falar sobre o que dói não nos expõe evita novos machucados, mas sofremos ao perceber que ao guardar os sentimentos nos autoflagelamos silenciosamente, a melhor opção e dividir para se fortificar entre si.

A dor está em tudo isso e mais um pouco. Eu me sinto sozinha. Mas não quero deixar um bilhete pedindo desculpas por não ter aguentado. As pessoas próximas que me amam geralmente não entendem, sempre acham que é questão de tempo. Me dizem: “você é maravilhosa, melhora essa autoestima”, como se fosse algo simples.

Eu fico horas sem dormir, choro sem motivo e tenho muita dificuldade de me alimentar. E sempre que alguém pergunta como estou, digo: cansada. Uma coisinha dá errado eu me fecho e choro, uma pessoa diz algo ríspido e eu me sinto um lixo e choro, um trabalho que não executo como queria e me sinto a pior profissional do mundo, me acho uma fraude, um erro, um problema. E sofro por ser o que sou.

Eu queria que as coisas fossem mais leves para mim e para pessoas como eu. Em determinados dias eu praticamente sobrevivo e em outros eu realmente consigo viver. Mas precisamos nos curar, a ajuda dos semelhantes e, principalmente, o auxilio e apoio de profissionais que entendam o quão devastador é o racismo para a população negra no campo psicológico.

Não estamos falando só de depressão. É para além disso. A ansiedade, a angustia, a falta de confiança em si, o auto-boicote. Estamos falando de dores do passado, do presente e da dificuldade em saber lidar com o que virá. Estamos falando de uma população marginalizada, perseguida e cansada.

Depressão e doenças psicológicas são desenvolvidas também em decorrência dos abusos constantes. Precisamos nos curar, precisamos nos permitir a ser fracos para que juntos possamos ser fortes, pois somos a resistência. Eu tenho aprendido a lidar diariamente com a depressão, mas é sem dúvidas a relação mais abusiva que vivo.

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