Após mãe ‘morrer de tristeza’, médicos cobram apoio para ‘sobreviventes’

12 de julho, 2016

(O Globo, 12/07/2016) Psiquiatras criticam assistência oferecida a parentes de vítimas da violência

A pequena empresária Joselita de Souza, de 44 anos, faleceu num posto de saúde em São João de Meriti, na semana passada, vítima de um quadro de pneumonia e anemia. Antes saudável e alegre, a mãe do adolescente Roberto, morto a tiros por policiais militares em Costa Barros, na Zona Norte do Rio, começou a definhar após a perda do filho. Até que, segundo familiares, “morreu de tristeza”. Estas palavras, que podem parecer força de expressão, têm respaldo na medicina. Psiquiatras ouvidos pelo GLOBO explicam que a depressão pode, sim, ser fatal e que, negligenciada pelo poder público e mesmo por médicos, seus efeitos são cada vez mais visíveis na sociedade. Os especialistas defendem políticas públicas mais efetivas em relação à doença.

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— Infelizmente, é possível morrer de tristeza. Quando a tristeza é tamanha, chamamos de luto complicado. A pessoa perde todo o ânimo e corre o risco de sucumbir. Pode passar a não comer, deixar-se abater pelo sentimento e ter o sistema imunológico prejudicado, abrindo espaço para quadros de pneumonia e outras infecções. Ela se consome pela dor. Se não recebe apoio e estrutura pode ser o fim — explica a psiquiatra Alexandrina Meleiro, coordenadora da Comissão de Estudos e Prevenção de Suicídio da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). — Os sobreviventes de tragédias como essa precisam receber mais auxílio.

A agonia de Joselita começou em novembro de 2015, quando policiais alvejaram com 111 tiros o carro que seu filho mais novo, o Betinho, ocupava com outros quatro amigos (o caso ainda está em julgamento). Após a tragédia, a alegria deu lugar a tristeza e reclusão. De acordo com o filho mais velho, Vinicius de Souza Penha, de 22 anos, a mãe só aceitava receber visitas suas e da nora, e praticamente não se alimentava.

— Quando o Betinho faleceu, minha mãe foi até forte, mas a gente sabia que ela ia cair depois. De uns dois meses para cá, ela desanimou da vida mesmo. Não fazia mais o cabelo, não se maquiava, só queria ficar deitada. Ela estava sofrendo muito— conta Vinicius.

Dados da Pesquisa Nacional de Saúde 2013, divulgada no fim de junho, revelam que 7,6% dos brasileiros acima de 18 anos relatam sintomas de depressão. No mundo, quase 10% da população é afetada pela doença. O índice aumentou quase 50% de 1990 a 2013, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

— O caso de Joselita não é incomum. A depressão grave, o desamparo total e a violência geram um colapso das funções orgânicas, prejudicam o sistema imunológico e levam a infecções graves e desregulação do ritmo cardíaco. A depressão é uma doença tão séria que daqui a uns dez anos vai começar a afetar a economia dos países. Não pode ser negligenciada — argumenta o psiquiatra Fernando Portela, que também é membro da ABP.

Portela e Alexandrina acham que o poder público tem que fazer mais para apoiar psicologicamente pessoas como Joselita, que perdem parentes de forma trágica. De acordo com a Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos, foi oferecido tratamento a todas as famílias de vítimas dos disparos em Costa Barros, mas apenas uma compareceu a algumas sessões antes de desistir da ajuda. Segundo Vinícius, a mãe dele e de Betinho foi a algumas sessões, mas saiu do programa, entre outros motivos, por não ter dinheiro para a passagem para ir de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, onde morava, até o Centro do Rio.

— Ela me disse que toda vez era a mesma coisa e que não iria mais. Também deixou de ir por falta de dinheiro. Ela pagava aluguel, a situação estava difícil. Tinha que gastar muito com passagem para ir ao psicólogo— relata Vinicius.

DEFENSOR CRITICA SERVIÇO PÚBLICO

O defensor público Daniel Lozoya, que representa as famílias dos meninos mortos em Costa Barros, afirma que a dificuldade para fazer o tratamento é real. Ele diz que a situação é comum em casos de violação de direitos humanos.

— Infelizmente, o Estado não oferece uma assistência médica e psicossocial adequada às vítimas e aos familiares em situações traumáticas de violações de direitos humanos. Os familiares têm dificuldade em arcar com custo de transporte para se deslocar aos locais de atendimento. Deveria haver postos espalhados pela cidade. Estas situações são tão rotineiras que deveriam receber uma atenção maior, mas o Estado não dá essa assistência — critica.

De acordo com um relatório divulgado em 2014 pela OMS, cerca de 804 mil pessoas cometeram suicídio em 2012. A grande maioria dessas mortes aconteceu em países pobres, onde não há apoio do poder público para combater a depressão. A taxa mundial de suicídios chega a 11,4 por 100 mil habitantes.

No Brasil, o número é mais baixo, de 5,8 suicídios por 100 mil pessoas. Mas a precarização dos serviços é conhecida por especialistas da área que corroboram que a falta de profissionais e de um sistema estruturado deixam pessoas com quadro depressivo sem cuidados.

— O atendimento no Brasil é heterogêneo. Pessoas com quadros leves procuram mais o serviço de saúde. E pessoas com quadro muito grave não têm acesso a tratamento. Muitas vezes é tão grave o quadro que a pessoa não tem força para procurar ajuda, ou é muito pobre, mora numa região distante. É necessária uma política bem estruturada — comenta o professor de psicopatologia da Unicamp, Paulo Dalgalarrondo.

A maneira como assistência aos pacientes depressivos é organizada constitui um dos problemas da rede. A falta de unidades destinadas ao serviço faz com que as estruturas que existem sejam desviadas de sua função.

— Basta chegar em qualquer hospital que tenha uma emergência psiquiátrica que faltará pessoal, leito e medicamento. Às vezes um pronto-socorro psiquiátrico não tem nem médico. Hoje, os Centros de Atenção Psicossocial substituem o ambulatório, a emergência. E ele não foi feito para isso. Foi feito para reintegrar o paciente — diz o psiquiatra e professor Romildo Bueno, da UFRJ.

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