(O Tempo, 03/08/2016) Belo-horizontina e médica, Júlia Rocha tem sido alvo de xingamentos e ofensas racistas em uma rede social. As agressões começaram na última sexta-feira após ela publicar uma mensagem se posicionando contra a postagem de um médico de São Paulo, que zombou de um paciente que falava “peleumonia”. Grávida, Júlia diz que está arrasada.
“O crime de racismo deixa marcas na alma de quem sofre”. Assim a médica e cantora Júlia Rocha, 33, belo-horizontina, resume seus dias depois de ser vítima de preconceito na internet. Grávida, ela emagreceu 2 kg nos últimos dias e diz que a família também está sofrendo. Nessa terça-feira (2), Júlia recebeu o apoio da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, que publicou um texto em repúdio aos ataques sofridos.
Os atritos começaram na última sexta-feira, quando o médico Guilherme Capel Pasqua, de Serra Negra (SP), publicou a foto de um receituário com a frase: “não existe peleumonia nem raôxis”, após atender o mecânico José Mauro, 42, que tinha dificuldades para falar o nome da doença e do exame. Dias depois, ele se desculpou publicamente com o paciente.
Na rede social, onde é seguida por cerca de 72 mil pessoas, Júlia publicou, sem citar o nome do colega, um post no qual defende o modo de falar simples de alguns pacientes. Além de dizer que “existe peleumonia”, ela completou: “Quem sabe o que tem é quem sente. E eu quero ouvir ocê desse jeitinho. Por que, pra mim, foi dada a chance de conhecê as letra e os livro. Pra você, só deram chance de dizê.”
Depois de muitos compartilhamentos, o post recebeu comentários como “com vergonha da cor, essa tribufu oxigena a juba para parecer menos negra” e “tem cara de bandida mesmo”.
Como você se sentiu após os ataques racistas que recebeu depois do comentário sobre a “brincadeira” feita pelo outro médico?
Depois do ataque racista, eu me senti devastada. Emagreci, não consegui comer, tive insônia. Estou trabalhando por honra da firma. Em dois dias, perdi 2 kg. Agora estou me recuperando e tentando me desligar de tudo isso. Estou grávida. Preciso me cuidar. Meus pais estão chocados e amedrontados. Me ligam de hora em hora para saber como estou. Meu marido está tendo sintomas de ansiedade e palpitações.
Você está grávida há quantos meses e como será criar um filho neste mundo?
Sobre a gestação, eu prefiro não entrar em detalhes. Quero me preservar e preservar minha família. Meu papel é ser médica e ser artista. Faço isso da melhor maneira que posso. Nunca tive a intenção de me meter em confusão. O crime de racismo deixa marcas na alma de quem sofre. Eu desejo um mundo melhor, e é por isso que luto para que coisas desse tipo sejam punidas e fascistas, racistas, machistas se sintam com vergonha de espalhar esse ódio por aí.
Seu post sobre “peleumonia” defende que não existe um único português que possa ser chamado de correto. Você considera fundamental que o médico se atente para a linguagem usada pelo paciente?
É importantíssimo! Inclusive, na faculdade, temos contato com alguns termos populares. Vez ou outra, ainda me surpreendo. Outro dia, um paciente se referiu a “dor no grão”. Na hora, perguntei a alguns colegas, que fizeram a tradução pra mim. Era dor testicular!
Você é médica há cinco anos e especialista em medicina de família e comunidade há um ano e meio. O que significa para você essa especialidade?
Para mim, ser médico de família e comunidade significa servir. Todos os dias, chego em casa e estudo casos complexos de alguns pacientes, converso com colegas, discuto com especialistas. Temos um vínculo com nossos pacientes que nos traz responsabilidades imensas, mas também uma grande satisfação em poder contribuir.
Qual a atuação do médico de família e comunidade?
É o médico que deveria ser a porta de entrada para qualquer sistema de saúde. Ele é capaz de resolver ou manejar cerca de 85% dos problemas que chegam até ele. É habilitado para atender desde pacientes recém-nascidos a idosos em fase final de vida. Homens, mulheres, não importando o tipo de queixa que esse paciente traga para a consulta.
Você pretende continuar atendendo no Sistema Único de Saúde (SUS)?
Eu atendo exclusivamente no SUS. Fazer parte da construção de um sistema público e universal de saúde, capaz de atender todos os brasileiros, é um ideal de vida pra mim. Em momento algum cogitei mudar isso. Pelo contrário. Essas coisas só me fazem ter mais força para continuar lutando.
Você consegue eleger a interação com um paciente que mais te emocionou?
Certa vez, durante uma viagem, presenciei um acidente na estrada e fui uma das primeiras pessoas a chegar a cena. Foi uma experiência muito intensa atender quatro vítimas com pouquíssimos recursos até que o resgate chegasse. Tive a ajuda de enfermeiros que também passaram pelo local.
É comum que as consultas médicas sejam rápidas e que os profissionais não ouçam o paciente com atenção. Como conciliar o tempo curto com o bom trabalho? Quantas horas você trabalha por dia?
Não é usual. Pelo menos, não com os médicos de família com os quais eu convivo. É claro que em um dia de muita demanda, quando um paciente chega com uma queixa pontual e aguda, a gente consegue atender, às vezes, até em menos de cinco minutos. Uma criança com dor de garganta, um adulto com resfriado… Vamos adequando e gerindo nosso tempo para atender sempre com qualidade e agilidade. O tempo para o médico de família é um recurso precioso! Trabalho na clínica, 40 horas por semana.
Como consegue conciliar a medicina e o samba?
A música é meu espaço de conexão comigo e com os outros. A arte tem esse poder de trazer leveza e poesia. O samba ameniza a dureza do dia a dia. É um presente poder cantar!
Você tem mais de 72 mil seguidores no Facebook. É possível responder a todos?
Infelizmente eu não consigo responder a todas as pessoas. É difícil acompanhar, porque minha rotina é muito pesada, mas eu tento. Leio tudo que consigo e respondo alguns.
Aline Diniz
Acesse no site de origem: ‘O racismo deixa marcas na alma’, diz médica vítima de racismo (O Tempo, 03/08/2016)