(HuffPost Brasil, 30/06/2016) ATENÇÃO: Este texto contém spoilers da quarta temporada de Orange Is The New Black, série da Netflix
O que é ser negro ainda é algo que também é definido por pessoas brancas. Um exemplo são as narrativas Hollywoodianas de sucesso que até contam histórias de pessoas negras, desde que não sejam contadas por pessoas negras. Foi assim que se fez e é assim que as produções se mantém.
O filme Histórias Cruzadas sempre me é indicado por pessoas “não negras” em uma discussão sobre a vivências das empregadas domésticas no Brasil: “Você tem que ver Histórias Cruzadas, querida, vai adorar!”.
Depois que eu assisti ao filme, fiquei me perguntando: por que eu adoraria a história da maioria das mulheres negras sendo contada e protagonizada por uma mulher branca? Porquê?
Ser empregada doméstica é um fardo de mulheres negras, profissão esta que é uma imposição e não uma escolha de quem ainda sente as marcas das escravidão sobre sua narrativa. Entretanto, quando falamos sobre isso, contamos por meio de filmes a história da moça branca e inocente que questiona esse sistema e salva negros. Pois negros não se salvam e se rebelam sozinhos.
Lembrou de novelas e filmes sobre escravidão? Então. Sim, é a mesma ideia: vários negros que sofrem, mas não sabem (mesmo?) e precisam que alguém indique para eles a saída desse sistema opressor. Esse alguém deve ser branco, pois mesmo que o vilão seja uma pessoa branca, as narrativas insistem em evidenciar que “nem todo branco é assim”.
“Piper Chapman não sofre nem metade do que as outras sofrem, pois é branca, de classe alta e “enganada” por uma lésbica”
Seria cômico se realmente não fosse trágico. Não crítico essas histórias em si, não julgo se Histórias Cruzadas é um bom filme ou não, mas o meu ponto é em como o negro só é relevante como coadjuvante das narrativas, mesmo quando a narrativa tem foco em histórias vivenciadas e que têm importância ao movimento negro.
Pois bem, isso me incomoda. Então, quando disseram para eu assistir Orange is the New Black, eu acompanhei todo o frisson em cima da série, e não esperava a repetição desse padrão.
A personagem Piper Chapman não sofre nem metade do que as outras sofrem pois é branca, de classe alta e “enganada” por uma lésbica. Pobre Piper que nunca sabe o que está fazendo (contém ironia neste comentário).
A todo momento ela é “protegida” por homens brancos que têm poder naquele espaço. Ela usa esses privilégios e mesmo assim se sente no direito de comparar sua dor com a das demais. Um dos comentários absurdos logo no início da série é ela lamentando que está presa há duas semanas, para uma senhora negra com quem divide cela, ou pressupondo que sofre algum tipo de preconceito na prisão por ser branca.
Vamos falar sobre privilégio branco
Em Orange, Piper Chapman não consegue entender o quão ridícula ela é, quando a maioria só está presa por querer metade do que ela têm. Afinal, ela foi presa por estar atrás de uma vida fora do “padrão perfeito” familiar dela, enquanto muitas estão presas por não terem um padrão perfeito familiar. É isso o que a narrativa das negras e latinas mostra em sua maioria.
E quando os contextos começam a se tornar cada vez mais trágicos, Piper vai se distanciando e vivenciando um conto de fadas romântico numa prisão, mesmo que fora da bolha dela mulheres estejam brigando, grupos estejam pregando a supremacia branca, mulheres estejam sendo estupradas por guardas e assassinadas. Comecei, então, a ter raiva. E estou muito raivosa, cansada e querendo gritar:
O fato da Chapman não ser “mais protagonista” aos olhos de muitos, não é verdade. Ainda é sobre a história dela. O problema é que Piper nunca esteve incluída. O sistema não foi feito para punir pessoas como ela, mas para manter o racismo vigente. Os privilégios criaram uma cerca que ela não ultrapassou e nunca irá ultrapassar.
Esse é o ponto. Ela nunca será como as outras, pois o sistema, no máximo, pune os “white trash” e mesmo assim não é da mesma forma que os negros, latinos e etc. são punidos. Inclusive, falando sobre essas “minorias” eu sempre escuto:
“Nossa, Stephanie, mas tem tantas negras, latinas e até uma trans na série. Isso não conta?”
Conta elas terem um emprego, garantia de um salário e visibilidade. Mas me chama atenção ver um texto como, “Orange is the New Black: Como são as 26 atrizes longe da prisão”, e perceber que muitas negras e latinas participaram da série Law & Order: Special Victims Unit e Law & Order. Duas séries de investigação policial, o que me faz pensar que negras e latinas tem chances nessas narrativas políciais/investigativas. Eu queria mesmo é ver mulheres negras protagonizando, desde Gossip Girl até House Of Cards.
“Mas é preciso ser coerente com a realidade negra de vocês”. Realidade que a gente escolheu ou que nos foi imposta? Discurso meritocráticos ou que transformam excessões em regras não me servem. Sei muito bem que as chances são traçadas conforme a cor, conta bancária, construção familiar. E para negros e latinos nos EUA (não que no Brasil seja muito diferente para negros) isso é sempre uma escassez de acessos. A realidade é mantida e perpetuada quando só contam a nossa história por um olhar, e esse é branco.
Esses são alguns dos principais Oscars ganhos por mulheres negras e os papeis que elas tiveram nas produções: Hattie McDaniel e Octavia Spencer ganharam como empregadas domésticas, a segunda do já citado Histórias Cruzadas. Nenhum desses filmes realmente questiona o racismo e a ligação que ele tem com o trabalho doméstico. São raras as produções que evidenciam que no fundo estamos falando na manutenção do olhar escravocrata cobre mulheres negras.
Nós negros somos muitos e diferentes. Mas até quando só a nossa dor será vendável?
Histórias Cruzadas teria sucesso em fazer isso se possibilitasse que as mulheres negras falassem por si. Mas qual sistema racista e machista será mudado enquanto o oprimido não puder ter voz?
Halle Berry e Mo’Nique ganharam Oscars como mães ausentes e opressoras. Halle em um filme em que ela, a mãe solo negra que sofre racismo e oprime o filho negro gordo, transa com o homem que é racista com ela (esse filme é super gatilho para mim e para qualquer pessoa negra que sabe como racistas violentos, como esse do filme, não são pessoas que queremos transar. É pura objetificação da mulher negra).
E Mo’Nique por Preciosa (não preciso nem comentar sobre, é a história de mais dor e sofrimento que já vi no cinema. Me dói a alma o fetiche em cima dessa história terrível. Além do mais, me dói entender que a mãe de Preciosa é opressora e vítima de toda aquela história também). E, por fim, Lupita Nyong’o que ganhou sua estatueta como mulher escrava, violentada física e sexualmente em 12 anos de escravidão.
Nós negros somos muitos e somos diferentes. Mas quando se trata dos personagens que negros fazem em novelas, filmes, séries, até quando só a nossa dor será vendável?
A história de Orange Is The New Black é baseada na história real de uma mulher que foi presa e que por um ano recebeu visitas do seu namorado todas as semanas – esse que já era um escritor conhecido e que a ajudou a escrever o livro sobre sua experiência na prisão.
Piper não foi obrigada a conviver com sua ex, que nem era uma mulher magra, de olhos claros e longos cabelos pretos. Era uma mulher gorda, fora do padrão e que só passou algumas poucas semanas novamente em contato com Piper, e não teve nenhum tipo de relação sexual com ela. Ou seja, a narrativa da série da Netflix é uma invenção que se baseia em algoritmos e faz o que o público quer ver.
Não dá para fingir que não existe um fetiche. Além disso, Orange Is The New Blacknão mostra nenhuma relação afetiva que envolva negras com negras. E usa personagens em relações inter raciais para dizer que existe alguma forma de racismo reverso.
Tudo isso é visto com ares de liberação sexual e empoderamento feminino. Mas para quem? A romatização e a leveza da primeira temporada me causaram desconforto. Parecia um conto de fadas sobre um presídio e essa não é a realidade.
“Estamos falando de racismo só por essa história existir e ter sido escrita sob o olhar e protagonismo de uma mulher branca”
A personagem de Uzo Aduba “Crazy Eyes” sendo colocada como uma tarada sexual que assediou a pobre Piper me deu raiva novamente. Até porque os roteiristas tinham escrito essa personagem para pouco mais de duas aparições, só que o talento de Uzo fez ela ser mantida. Me causa repulsa saber que a negra “louca” iria ser usada só para mostrar que a pobre branca presa sofreu assédio lésbico.
As mulheres negras só servem de objetos para a narrativa de alguém branco. O que me lembra que a única “vilã” causou raiva da narrativa, reforçando o estereótipo de mães negras abusivas serem “vilãs”, manipuladoras e negligentes. Estou falando da “Vee”. Na terceira e na quarta temporada a série fica mais dramática, a estética inclusive muda e os temas ficam mais realistas…
Só queria lembrar que a série mudou de status com o tempo. Ela não me soa tanto de humor quanto era no começo e passou a intensificar o drama. Nessa mudança, as narrativas negras e latinas ficaram mais evidentes. Isso seria perfeito se não fosse tudo baseado no fetiche em cima da dor negra/latina.
Então, não acredito que isso seja à toa, não acredito que isso não seja comercial, e pior, não acredito que estão usando as narrativas negras e latinas em um lugar diferente do construído há anos pelo cinema e produções midiáticas, ou seja, mais do mesmo. Aparentemente, as pessoas brancas que escrevem e assistem série tem certo prazer na dor negra, latina e indígena, mas só se ela for realmente muito evidente.
O racismo não aconteceu só na quarta temporada. A forma como o tema, ao longo da série, vem sendo tratado, me incomoda. Não existe uma narrativa opressora só agora. Estamos falando de racismo desde o primeiro episódio. Estamos falando de racismo só por essa história existir e ter sido escrita sob o olhar e protagonismo de uma mulher branca, em um sistema carcerário que pune, em sua maioria, mulheres negras.
É desse sistema carcerário norte-americano, que é o maior do mundo, que estamos falando. O sistema carcerário do país mais rico do mundo, que é mantido na base da exploração da mão de obra negra e latina, pois os presos valem dinheiro.
Sempre foi sobre racismo
E vai continuar sendo enquanto não questionarmos porque as narrativas negras não geram séries, protagonistas, histórias felizes, voltas por cima, livros, empatia. Estamos falando de racismo desde o começo da série. No entanto, muita gente que não percebeu ou achou que essa poderia ser uma narrativa de humor, sendo ela baseada numa vivência trágica motivada pelo capitalismo e ódio a negros/latinos.
Eis que a quarta temporada chegou e matou uma personagem negra. É claro que eu nem precisava dizer que a pessoa que morreu é negra, pois sempre as pessoas negras morrem em filmes para dar ênfase no drama. Tanto que nós, negros, estamos acostumados com a morte de personagens negros.
Com Poussey não seria diferente, ela morre nas mãos de um policial que nem é “tão ruim assim”, que é fofo, que tem uma boa história. E sabe qual foi a desculpa da escritora? Queríamos evidenciar o movimento “Black Lives Matter”.
Ok! Depois dizem que é a Beyonce, mulher, negra e vítima de racismo, que usa o movimento negro para gerar comoção, vendas e dinheiro. Sabe, negros norte americanos estão se mobilizando ativamente. Não é só Beyoncé, Lamar, ou grandes discursos como de Viola Davis e Jesse Williams.
São muitas pessoas falando de racismo e agindo, em um país rico, poderoso, chefiado por um presidente negro, contudo que tem números sobre violência, morte e encarceramento da sua população negra cada vez maiores. Então podemos falar sobre isso sem usar clichês hollywoodianos.
Existe um grupo de supremacia branca na série e precisaram matar uma negra para enfatizar que racismo existe e mata? Black Lives Matter não é só sobre morrer, é sobre racismo e um sistema carcerário do país onde os negros são 13% da população total, só que 40% dos encarcerados. Não é preciso matar negros, está evidente (ou deveria estar se a questão racial fosse bem escrita e abordada) que tudo ali é sobre Black Lives Matter. Afinal, o racismo precisa matar para a gente se comover?
Brancos precisam identificar o racismo, sem que precisemos morrer, sem que precisemos passar fome e morar nas ruas, sem que precisemos ser agredidas por racistas, sem que precisemos desenhar o que é racismo a todo momento. Brancos precisam entender que se o grupo de supremacia branco é chocante, o silêncio dos demais brancos para a existência dele também é.
Piper gozou dos privilégios e ainda goza quando em um sistema que prende, mata e destrói vidas negras e latinas, ela dá a volta por cima e vive a autora de um livro, e a protagonista de uma série sendo a exceção da exceção de histórias que geralmente tem cor.
Isso também é sobre racismo. E vocês precisavam ter entendido antes de negros terem dito.
Acesse no site de origem: Orange is The New Black: Quando nem tudo será sobre pessoas brancas?, por Stephanie Ribeiro (HuffPost Brasil, 30/06/2016)