Pela pluralidade das passarelas, por Bruno Astuto

20 de abril, 2015

(Época, 20/04/2015) Há 40 anos, modelos negras protagonizaram um desfile histórico em Versalhes. Hoje, hducos negros nas semanas de moda. O Brasil deveria liderar a reação a esse retrocesso

Em 28 de novembro de 1973, o Castelo de Versalhes foi palco de um desfile que mudou o curso da história. Cinco grites francesas e cinco grifes americanas apresentaram suas criações para uma platéia abastada no intuito de arrecadar US$ 60 milhões para a restauração do monumento que, desde o século XIX, não sofria uma reforma. A noite, de natureza beneficente, acabou se tornando uma guerra entre o consagrado estilo elegante francês e a nascente indústria de moda americana.

Os estilistas “donos da casa”, Yves Saint Laurent, Hubert de Givenchy, Marc Bohan, Pierre Cardin e Emanuel

Ungaro, receberam os convidados com desdém e ares vitoriosos: com duas horas e meia de desfile, tinham o triplo de orçamento, cenários suntuosos, balés e orquestras. Os americanos, Oscar de la Renta, Bill Blass, Anne Klein, Halston e Stephen Burrows, fizeram uma apresentação de meia hora, num único cenário simples e com uma fita cassete servindo de trilha sonora.

Os franceses mostraram seu savoir-faire secular com modelos de alta-cos-tura; os americanos apresentaram vestidos de jérsei e looks esportivos. O desfile dos franceses deu sono na platéia. O dos americanos a levou a aplaudi-los de pé, aos gritos, jogando os libretos com o programa do evento para o alto. Esse é 0 tema central do livro The battle ofVersailles (A batalha de Versalhes), da crítica de moda americana Robin Givhan, que acaba de ser publicado nos Estados Unidos.

Terminei o livro recentemente, e uma questão passou a me perseguir obsessivamente: qual a razão do estrondoso sucesso dos americanos? Não foram certamente as roupas, pois os franceses dominavam muito mais as técnicas que seus concorrentes. Foi, sem dúvida, a maneira com que essas roupas foram apresentadas – e por quem foram presentadas. Das 36 modelos que desfilaram para eles, muitas das quais por um cachê bem abaixo da média, dez eram negras, quase um terço do casting. Nomes como Amina Warsuma, Char-lene Dash, Norma Jean Darden, Be-thann Hardison e Pat Cleveland representavam o impacto da cultura negra sobre a sociedade americana, o “black glamour”, naquele início dos anos 1970. A música negra deixava os rincões dos pubs do bairro do Harlem, em Nova York, para revirar o pop. Coreografias sensuais e ritmadas batizadas “voguing” inundavam as pistas de dança da cidade na cadência da disco music.

Com um caminhar militarmente assertivo e charmosos pivôs de bailarina, as modelos negras de Versalhes transformaram o jeito afetado e delicado de desfilar que há 20 anos dava os tons das passarelas parisienses. Elas imprimiram personalidade aos passos das manequins. “Nós passamos a existir como motores e protagonistas da indústria depois daquele desfile”, diz Pat Cleveland. “Quando a platéia começou a bater os pés no chão com força e jogar os programas para o alto, pensamos que tínhamos feito alguma coisa errada. Pelo contrário, havíamos feito tudo tão diferente que criamos um novo padrão do certo.” Detalhe: Stephen Burrows, um dos estilistas americanos que participaram do evento, era negro, o único entre seus pares. Foi tão ovacionado quanto as modelos.

Mais de 40 anos depois da batalha de Versalhes, o que restou dessa conquista? Um retrocesso. Na última temporada de moda de Nova York, Londres, Milão e Paris, que terminou em março, apenas 20% das modelos não tinham etnia caucasiana. Segundo o relatório semestral de diversidade do site The Fashion Spot, 1.908 modelos dos 9.358 recrutados para os 373 desfiles não eram brancos. Em Milão, somente 15,8% eram não caucasianos. Nova York foi a cidade que se saiu melhor no quesito da diversidade, com 24,4%, um percentual aquém da revolução que os americanos imprimiram naquela noite de Versalhes. “Por incrível que pareça, a diversidade ainda é um desafio, um sonho distante”, diz a autora Robin Givhan.

Na semana passada, a principal semana de moda do Brasil, a São Paulo Fashion Week, comemorou 20 anos. Nesse período, o evento conseguiu a façanha de estruturar o setor. As marcas brasileiras agora se organizam para seguir um calendário oficial de produção, distribuição e divulgação de seus produtos. Antes da São Paulo Fashion Week, a organização da moda local era caótica. Cada estilista despejava suas criações no mercado em momentos diferentes, dificultando a programação da cadeia têxtil e dos varejistas. Modelos, agências, fotógrafos, stylists e produtores se profissionalizaram, editores e compradores estrangeiros passaram a enxergar no Brasil possibilidades que iam muito além da moda praia. Como resultado, a semana de moda paulistana tornou-se a quinta em importância na escala mundial. O evento transformou para sempre a indústria nacional.

Mas onde estão as modelos negras da São Paulo Fashion Week? Num país majoritariamente autodeclarado pardo e negro – 96,7 milhões de pessoas, o equivalente a 50,7% da população, segundo o Censo 2010 do IBGE as passarelas continuam caucasianas. Às vésperas do evento, a grife Animale envolveu-se num caso de racismo. Uma vendedora de uma de suas lojas em São Paulo teria mandado um garoto de 8 anos sair da porta da butique, porque ali não seria local “para ele vender coisas”. A acusação foi relatada pelo pai da criança, o americano Jonathan Duran, editor financeiro de um banco de investimentos, e causou comoção nas redes sociais. Em nota distribuída à imprensa, a Animale disse que entrou em contato com Duran e “reitera que repudia qualquer ato de discriminação”. Na passarela, duas modelos negras, Natalie Alves e Mahany Pery, apresentaram alguns dos 29 looks da Animale.

O agente e “descobridor” da modelo Mahany Pery, o empresário Sérgio Mattos, dono da agência de modelos carioca 40 Graus, diz que a cor da pele não influi em suas escalações. “Quando um amigo meu me apresentou a Mahany, eu pirei”, afirma ele. “Não importa se a modelo é negra, branca ou azul. Ela tem de ser boa, ter personalidade e saber se portar. Isso a Mahany tem de sobra, não por acaso é minha grande aposta. Se a modelo é boa, trabalha. Se não é, não trabalha. Simples assim.” Mas a questão está longe de ser simples assim. Zeca de Abreu, diretor da Way Model, uma das maiores agências de modelos do país, tem em seu elenco a top negra Gracie Carvalho, uma de suas maiores estrelas. “Para esta edição, também trouxemos uma modelo negra lindíssima de Angola, a Maria Borges. Mas reconheço que são exceções”, diz ele. “É claro que temos de respeitar o que o designer quer falar com a coleção, mas me incomoda ver que, infelizmente, em um país como o Brasil, o mercado para negros é bastante pequeno.”

A empresa Luminosidade, organizadora das semanas de moda do Rio de Janeiro e de São Paulo, fez esforços em favor da diversidade. Em 2009, acertou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público, que obrigava que 10% das modelos de cada desfile deveríam ser negras ou de descendência indígena. Dois anos depois do fim do acordo, a Luminosidade diz que continua recomendando às marcas que ele seja cumprido. Mas afirma que “não pode interferir na decisão criativa dos estilistas”.

No ano passado, o estilista Alexandre Herchcovitch apresentou um desfile masculino só com modelos negros. Em 2011, o estilista Oskar Metsavaht, à frente da grife Osklen, mostrou na semana de moda paulistana a coleção Royal Black, em homenagem à herança afro-brasileira. Metsavaht contou ter tido dificuldades em montar um casting apenas com modelos negros. Dos 48 profissionais que desfilaram, apenas 12 eram negros. Depois de se ver no centro da questão, o estilista afirmou que passou a ser a favor da cota para negros também nas passarelas. “Não gosto de nada que seja uma imposição. Mas, depois de ver a questão de perto, passei a ser a favor das cotas, inclusive na moda, para me somar ao fim da discriminação e pela inclusão”, diz Metsavaht.

Na 39a edição da São Paulo Fashion Week, que teve 39 desfiles, além de uma apresentação no Museu Afro Brasil de designers africanos, o índice de participação de modelos negros ficou, segundo os organizadores, em cerca de 10%. É o índice acordado no TAC, mas metade da média das quatro mais importantes capitais internacionais da moda. Entre os estilistas, quantos eram negros? Apenas um, o mineiro Ronaldo Fraga, que, em 2013, colocou perucas de palha de aço nos cabelos das modelos para criticar o racismo.

Essa falta de diversidade num evento lançador de tendências seguidas à risca por um grande público formador de opinião é arcaica e retrógrada. Fora de moda, para utilizar um termo popular do mundo fashion. O velho discurso de que o mercado consumidor rejeita a publicidade feita por negros, idem. O estilista Yves Saint Laurent sempre usava modelos negras em seus desfiles. Ele dizia que, quando criou o smoking feminino, as mulheres não sabiam que desejavam a peça em seu guarda-roupa, porque ela simplesmente não existia. E esse também é o papel da moda, muito além do simples comércio de roupas: criar desejos que não existem ou que estejam represados, desbravar fronteiras, impor padrões, quebrar tabus. Avançamos na proibição de menores de 16 anos ou de modelos magras demais, flertando com a anorexia, nas passarelas. O que falta para agarrarmos a bandeira da pluralidade?

A moda brasileira, que ainda patina em sua projeção internacional por causa dos custos proibitivos de produção, mão de obra e sobretaxação, só encontrará seu lugar ao sol quando incorporar definitivamente nas passarelas a contribuição imensa de seus talentos negros, ainda escondidos nos bastidores das fábricas, dos ateliês e das ONGs. Assim como fizeram os americanos que desfilaram em Versalhes em 1973 e venceram a batalha contra os franceses, colocando sua indústria no mapa mundial da moda, precisamos ganhar nossa guerra. Temos de colocar nossa cara negra e mulata na vitrine. Por essas e outras, para o bem dos próximos 20 anos da moda nacional, cota já nas passarelas.

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