(El País, 02/09/2014) Quem afirma que o Brasil não é um lugar violento é porque, de certa maneira, compactua com um “regime de invisibilidade” que vigora há muito no país, principalmente para os negros e os pobres. A conclusão é de um grupo de especialistas que debateu o tema durante a 23ª Bienal do Livro de São Paulo, encerrada no último domingo: Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP, Jaime Ginzburg, professor de literatura brasileira da USP e Luiz Eduardo Soares, escritor, dramaturgo e ex-secretário nacional de segurança pública.
A ideia do encontro – que aconteceu na quinta-feira, 28, mediado pelo jornalista Paulo Markun – era discutir “A violência como herança no Brasil contemporâneo”, buscando rastros dela na política, na sociedade, na cultura e nas artes brasileiras. Não faltaram indícios de sua presença, mas a violência do Estado, encarnada na atuação da polícia, concentrou grande parte das atenções.
O grupo partiu de um retrato desanimador, levantado por Luiz Eduardo Soares: o Brasil contabiliza cerca de 150.000 homicídios dolosos ao ano, dos quais apenas 8% são investigados; tem a terceira população carcerária e a que mais cresce no mundo, com cerca de 600.000 presos, a maioria negros, e uma polícia que, só no Rio de Janeiro, matou 1.067 pessoas entre 2003 e 2013, segundo os dados oficiais. “É preciso enfrentar o racismo e a brutalidade do Estado contra os negros e os pobres”, alertou o antropólogo e cientista político que é um dos principais especialistas em segurança pública do país.
Para Vladimir Safatle, “a polícia é um problema a mais. É difícil distinguir o comportamento dela do comportamento do bandido”. Segundo ele, a isso se deve que mais de 60% da população do país não confie na própria polícia e, da mesma maneira, que estudos realizados pela ONU há dois anos tenham sugerido a extinção da polícia militar brasileira. “Operamos de um acordo com um regime de invisibilidade. É a lógica do apartheid social, que vive uma reprodução contínua”, afirmou o filósofo.
Jaime Ginzburg chamou a atenção para a legitimação da violência nos processos educacionais que, ao contrário de formar pessoas não violentas, chega a ser incentivar um comportamento agressivo através de um elevado conservadorismo e na conformação do que ele denomina “cultura sacrificial”. “É muito fácil circular no Brasil uma fala de ódio, no sentido concreto de matar e machucar as pessoas, sobretudo negros, pobres e prisioneiros, e de que isso levaria ao bem comum”, disse. É o famoso “tem que morrer mesmo, tem que matar”, que termina legitimando o “direito do Estado à violência”. “Faltaria ao próprio Estado reconhecer que isso é um problema”, concluiu.
A origem do problema
Muitos países têm em seu passado histórias que favoreceram a exacerbação da violência. No caso do Brasil, mais do que acontecimentos do passado que justifiquem o rótulo de país violento, o problema parece ser “um lado sombrio” resultante de processos como a escravidão e a implementação da República que, segundo Soares, insistem em aparecer por jamais terem sido encarados de frente.
O ex-secretário cita a atual política pública de drogas para exemplificar que “não há aplicação da lei” e sim do “filtro seletivo da mídia”. “O menino negro que vende maconha vai para o inferno, enquanto o branco que consome é ‘viciado, coitado’. Os suspeitos são previamente concebidos. Por isso, só encontramos nas cadeias essa população negra, pobre etc. É isso que se está procurando. Onde vamos encontrar na rua o chefe do crime organizado?”, resume.
A suposta passividade do brasileiro, já um lugar-comum, é traduzida num processo contínuo de “desculpabilização perpétua”, nas palavras de Safatle. “A maioria não se sente responsável, pensa ‘eu mesmo nunca fiz isso’, e assim continuamos vivendo num regime de esquecimento.” Essa postura, segundo Ginzburg, é reforçada pela falta de credibilidade do pacifismo: “O pacifista é tomado por ingênuo. No Brasil, isso é hoje muito ostensivo”.
O papel da cultura
No desfecho da conversa, a cultura foi apontada como o terreno em que as pessoas e os traumas do país deixam de ser invisíveis. “As expressões culturais são importantes, porque criam um sentido de pertencimento”, disse Luiz Eduardo Soares. Para Vladimir Safatle, “só a cultura tem a força de tirar a violência do circuito imaginário de uma sociedade”.
Apesar do cenário desanimador, os três especialistas concordaram que, assim como na Bienal, o tema começa a entrar de outra maneira na agenda social. No entanto, um dos notáveis campos a resistir ao problema parece ser o da campanha para as eleições presidenciais de outubro. “Essas questões estão sendo ignoradas no processo eleitoral, com raras exceções”, concluiu Jaime Ginzburg.
Camila Moraes
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