(Tribuna do Norte, 10/04/2016) Deixar o cabelo crespo crescer de forma natural vai além de uma questão estética. É um ato político. Principalmente para quem percebeu a opressão dos padrões estabelecidos há anos pela mídia e pelas grandes corporações de indústrias de cosméticos.
Daniele de Almeida, 36 anos, formada em Relações Internacionais, e Sílvia Alves, 26, produtora cultural e dançarina, integram o Coletivo Pixaim, grupo que se reúne para discutir questões de ancestralidade e negritude. E o cabelo crespo como fortalecimento de identidade sempre está entre os temas. Já Neymare Azevedo, 26 anos, formada em Gestão de Políticas Públicas, encontrou sua ancestralidade negra ao se consagrar ao candomblé. Saiba um pouco de suas experiências sobre deixar os cachos crescerem.
1) “A beleza negra sempre foi massacrada e negada. Mesmo eu tendo a pele clara, passei a reivindicar a questão da ancestralidade negra, porque eu tenho certeza que o meu cabelo não veio da Europa, né? Ele veio da África! Aí, parei de alisar o cabelo. Mas o que isso significa? O que esse cabelo fala sobre mim? Quais as histórias que ele pode contar?
Alisar cabelo é uma escravidão! É você negar você própria. Eu gastava muito dinheiro. Quando crescia a raiz eu já ficava desesperada. Você acaba se negando. Teve um momento que meu cabelo ficou muito desgastado de tanta química, e ele caiu mesmo, quebrou de fato, foi quando eu percebi e pensei: Por que eu estou fazendo isso? Qual a razão disso tudo? Por que estou negando o que é natural? O que sou eu? Eu nasci assim! Por que estou negando eu mesmo? Aí, você começa a pensar, a se questionar e começa a ver que o seu cabelo é lindo, que por mais que as pessoas e a sociedade falem que é feio, mas não é. Eu busquei essa história. Primeiro busquei saber quais são os significados meu cabelo tem, e percebi que a beleza negra é linda. E o legal é ensinar isso as pessoas. Então, eu acho que o que move mesmo é insatisfação em negar a si próprio.” Sílvia Alves, 26 anos, produtora cultural e dançarina.
2)“Eu sempre trago para minha história. Eu sou de uma família negra, mas dentro da minha própria casa eu conheci a padronização branca, porque com cinco anos eu fui apresentada ao alisamento; e aos 29 anos eu decido voltar a me reconhecer enquanto mulher negra e enquanto ao meu cabelo natural. E aí, muito baseada nessa carência que era minha, eu decidi criar um coletivo porque eu pensava que essa carência não era só minha. Existem algumas outras pessoas que têm a mesma necessidade que eu, que precisam se conhecer, se reconhecer e de fugir desse padrão branco, da coisa de que cabelo bonito é só cabelo liso. Aí, muito baseada na peça de Elisa Lucinda, quando eu fui assistir, ela fala: “Meu cabelo é ruim por quê? Ele te fez algum mal? Porque se ele fez, vou ter que me retratar.
Na minha infância eu nunca quis ser paquita. Mas não por que eu não queria ser paquita, mas por que eu, dentro de mim, já enxergava que não era o perfil da paquita, que era a mulher loira. Eu sou carioca, nasci no Rio de Janeiro, e aonde eu me enxergava era na mulata. Minha referência de beleza na infância era Piná. E hoje eu me preocupo ainda porque eu ainda não me vejo nas prateleiras, eu não vejo os meus filhos na prateleira, não vejo essa representatividade. E me preocupa também que a indústria cosmética tem enxergado que existe um público mas ainda é encarecido. Até que ponto vale a pena ter saído da ditadura branca e ficar presa a um padrão de cremes caros? Existem empresas que investiram muito caro, e são valores muito altos, não são acessíveis. Eu vejo como bom, lógico. Hoje eu consigo me enxergar em prateleiras de creme, mas ainda me preocupo com a questão de até quando nós, negros, seremos escravizados; porque agora nós saímos de um padrão e entramos em outro. E esse padrão é preocupante! A estética infantil ainda me preocupa.” Daniele Almeida, 36 anos, internacionalista, idealizadora do Coletivo Pixaim.
3) “É um processo longo até o dia em que você realmente resolve assumir e afirmar suas origens, sua raiz, sua ancestralidade em relação ao cabelo, porque dentro de uma sociedade branca onde os padrões são eurocêntricos e não tem espaço para o que é diferente, que o diferente é tratado como exotismo, é diferente você tomar uma atitude. É um ato de coragem você tomar uma atitude e deixar sua raiz crescer. Deixar por si só ela falar e mostrar, representar o que você é. Meu processo de afirmação e empoderamento do meu cabelo surgiu há três anos quando eu me reconectei com minha ancestralidade, que vem através do candomblé. Há três anos, quando fiz minha iniciação no candomblé — é até emocionante pra mim falar — que eu raspei o cabelo e deixei ele crescer por si só. A natureza… Então faz três anos que venho no processo diário de empoderamento diante a mim, como mulher negra, e o meu cabelo. Não é só estética, não é só moda. Eu não sou só o meu cabelo. Meu cabelo é natural, ele não é um estilo. Ele é quem eu sou. Eu quero que as pessoas olhem pra mim não pelo meu cabelo. Quero que elas me olhem, me aceitem dentro do convívio delas, diante a meu cabelo e quem eu sou. Eu sou muito mais que o meu cabelo.
Uma das questões que acho importante falar, ter um canal de mídia onde eu possa falar, é poder representar outras pessoas também. Por que esse processo aqui que nós mulheres negras estamos passando não é geral, é privilégio de algumas ainda que podem se assumir diante ao cabelo, diante à sua origem, diante à sua cor; porque existem outras meninas, principalmente as que vivem em condições de vulnerabilidade, em favelas, bairros periféricos, que é uma população pobre e negra do Brasil, elas ainda não estão dentro desse processo de afirmação, de fortalecimento, de reconhecimento de sua raça, sua cor. O processo ainda é pequeno.” Naymare Azevedo, 24 anos, formada em gestão de Políticas Públicas e produtora cultural
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