Queridas pessoas brancas como eu, vamos bater um papo honesto sobre o porquê de dizermos que “All Lives Matter” (“Todas as Vidas Têm Importância”) quando falamos de racismo. Para começar, vale observar que ninguém dizia que “todas as vidas têm importância” até as pessoas começarem a dizer que “Black Lives Matter” (“Vidas Negras Têm Importância”). Portanto, “todas as vidas têm importância” é uma resposta a “vidas negras têm importância”. Parece que alguma coisa na afirmação de que “vidas negras têm importância” nos incomoda. Por que será?
(HuffPost Brasil, 26/09/2016 – acesse no site de origem)
Algumas pessoas brancas talvez considerem que focar sobre as vidas de negros, dizendo que têm importância, significa de alguma maneira que as vidas de brancos não têm. Isso é bobagem, é claro. Se você fosse a um evento de conscientização sobre o câncer de mama, não pensaria que os organizadores quisessem dizer que outros tipos de câncer não vêm ao caso. Então se espantaria se alguém comparecesse a um evento assim agitando um cartaz dizendo “o câncer de cólon tem importância” ou gritando “todos os pacientes com câncer têm importância”. Evidentemente, portanto, há alguma outra coisa que está levando as pessoas a reagir a “vidas negras têm importância” dizendo que “todas as vidas têm importância”.
Muitas das pessoas que andam dizendo que “todas as vidas têm importância” também gostam de declarar que “vidas azuis têm importância”. Se a frase “vidas negras têm importância” deixa você incomodado, mas “vidas azuis têm importância”, não, então a palavra importante aqui é “negro” (ou “negras”). Isso deve nos indicar alguma coisa. Há algo de profundamente perturbador na palavra “negro” para pessoas brancas. Acho que é porque ela nos recorda de nossa condição de brancos e contesta nossa ideia de que a raça não tem importância.
O problema de ser “daltônico”
Se você é como eu, quando era jovem a palavra “negro” só era mencionada aos cochichos em sua família. Era como se estivéssemos falando algo tabu. Por que? Porque era tabu. Ficávamos mais à vontade dizendo “afroamericano”, mas não “negro”. A razão disso é que fomos educados para pensar que o ideal para brancos era serem “daltônicos”. Fomos ensinados que não deveríamos “enxergar a cor das pessoas”. E proferir a palavra “negro” era reconhecer o fato de que enxergávamos a cor das pessoas, sim.
O problema de ser “daltônico” – tirando o fato de que não somos realmente indiferentes à raça das pessoas – é que poder ignorar a raça das pessoas é na verdade privilégio das pessoas brancas. As pessoas brancas, como eu, desfrutam o luxo de não prestar atenção à raça, branca ou negra. A razão disso é que ser branco é visto como o padrão na nossa sociedade. Ser branco não é um problema para as pessoas brancas, porque isso faz parte do nosso pano de fundo cultural.
Os negros, por outro lado, não têm o luxo de serem “daltônicos”. Eles vivem em uma sociedade que os recorda constantemente de sua condição de negros, que lhes informa em um milhão de maneiras pequenas e grandes de que não são tão importantes quanto os brancos, que suas vidas realmente não têm tanta importância quanto as vidas dos brancos. É por isso que é tão importante declarar que “vidas negras têm importância”.
“As vidas negras [não] têm importância”
“Todas as vidas têm importância” é um problema porque desvia o foco da questão do racismo sistêmico e das vidas negras. Essa afirmação desvia nossa atenção e enfraquece a mensagem de que a vida dos negros tem importância ou que as vidas negras deveriam ter mais importância do que têm. “Todas as vidas têm importância” é na realidade uma maneira indireta de afirmar que “as vidas brancas têm importância”, porque quando as pessoas brancas pensam em “todas as vidas”, pensam automaticamente só em “todas as vidas brancas”.
Precisamos falar “as vidas negras têm importância” porque não estamos vivendo isso. Ninguém questiona que as vidas brancas têm importância e que as vidas de policiais têm importância. Mas a questão de se vidas negras realmente têm importância é uma pergunta em aberto no mundo. Nossas instituições agem como se as vidas negras não tivessem importância. A polícia age como as vidas negras não tivessem importância quando policiais disparam contra pessoas negras desarmadas e com as mãos ao alto e quando atiram em negros com 2,5 vezes mais frequência que em brancos, mesmo que os brancos estejam armados. A justiça age como se vidas negras não tivessem importância quando negros recebem condenações maiores que brancos que cometem os mesmos crimes e quando negros são convertidos em bens num complexo carcerário-industrial para fins lucrativos.
E nós, pessoas brancas, agimos como se vidas negras não tivessem importância quando deixamos de manifestar o grau apropriado de repúdio pela matança injustificada de negros ou quando respondemos com chavões tipo “todas as vidas têm importância”.
No entanto, continuamos a dizer isso. Dizemos isso porque “todas as vidas têm importância” nos devolve a sensação de normalidade, de que tudo vai bem. “Vidas negras têm importância” nos deixa incomodados. Por que? Porque nos recorda que a questão racial existe. Nos faz lembrar que nossa experiência de vida, como pessoas brancas, difere em muito da experiência de vida dos negros neste país. Isso nos faz lembrar que o racismo está vivo e forte nos Estados Unidos da América.
A nova face do racismo
Acabei de falar “racismo”, um verdadeiro palavrão, então você deve estar se sentindo defensivo. É provável que esteja pensando instintivamente, em seu íntimo, que você não é racista. Talvez esteja pensando que você tem amigos negros, que você não xinga ninguém de crioulo e que nunca discriminaria conscientemente contra uma pessoa negra. Mas a maior parte do racismo, hoje em dia, é mais sutil que isso. Sim, ainda existe muito racismo declarado. O KKK continua ativo, e algumas pessoas brancas ainda chamam negros de “nigger” (crioulo). Mas o racismo declarado hoje é visto por brancos como sendo culturalmente inaceitável. O racismo que precisamos combater hoje é muito mais insidioso que os capuzes brancos do Ku Klux Klan e os xingamentos raciais. É o racismo de pessoas bem-intencionadas que não são conscientemente ou intencionalmente racistas.
O racismo que precisamos encarar de frente é o racismo de americanos brancos e medianos de classe média que não cogitariam em falar em “crioulo” e que condenariam fortemente o KKK, mas que, mesmo assim, participam do racismo institucionalizado, sem ter consciência de que o fazem. Geralmente participamos de racismo por omissão, não por atos que cometemos declaradamente. Participamos de racismo quando deixamos de enxergá-lo onde ele está presente. Participamos de racismo quando continuamos a agir como se a questão racial fosse um problema exclusivamente dos negros. Participamos de racismo quando buscamos respostas cômodas como “todas as vidas têm importância”.
O que podemos fazer: abraçar a sensação de incômodo. Nós, pessoas brancas, precisamos abraçar nosso desconforto. Veja algumas coisas que podemos fazer:
1. Reconhecer que não somos “daltônicos”.
Podemos começar por reconhecer que todos temos um “viés implícito” contra negros. Você pensa que não tem? Considere como nos parabenizamos mentalmente quando tratamos uma pessoa negra qualquer do mesmo jeito que tratamos pessoas brancas. Dica: se você se considera legal por tratar negros do mesmo jeito que trata brancos, não está realmente tratando negros como trata brancos.
Se você ainda não achar que tem um viés inconsciente contra negros, procure o site do teste de viés implícito da Universidade Harvard e faça os testes de raça e cor de pele. Mesmo os ativistas anti-racismo, como eu, têm esses vieses. E eles se manifestam de várias maneiras sutis, além de outras menos sutis.
2. Combata esse viés inconsciente
O próximo passo: faça questão de passar tempo com pessoas negras em ambientes comunitários negros. Muitos de nós vivemos vidas segregadas em que temos pouca ou nenhuma interação com pessoas negras. Vamos encarar a verdade: as pessoas negras incomodam a nós, pessoas brancas. Isso é porque fomos socializados por um sistema racista para temer as pessoas negras.
Mesmo que você se sinta à vontade com pessoas negras individuais, é provável que não se sinta à vontade em um ambiente cheio de negros. Você pode ter amigos negros, mas provavelmente interage com eles em espaços brancos. Alguma vez você já foi a um espaço negro e se sentiu desconfortável? Talvez tenha sentido que ninguém o queria ali. Bem-vindo à experiência de todos os dias das pessoas negras na sociedade branca.
E, quando você vai a um espaço negro, vá para ouvir, e não para liderar. Aprenda a seguir. Liderar é o privilégio dos brancos. Abra mão dele um pouco e aprenda com pessoas cuja experiência de vida você jamais terá. Escute o que dizem as pessoas negras, e, se o que estão dizendo e como o estão dizendo o deixa incomodado, tanto melhor.
3. Converse com pessoas brancas sobre o racismo institucional
Não adianta nada ficar sentado sem nada fazer, sentindo-se culpado por causa do privilégio dos brancos. Precisamos fazer alguma coisa a esse respeito. Uma coisa que podemos fazer é usar nosso privilégio de brancos para desmontar esse privilégio.
Um privilégio que temos, como brancos, é que outras pessoas brancas nos dão ouvidos. Podemos ir a espaços brancos e conversar com pessoas brancas sobre viés implícito e racismo institucional. Podemos declarar inequivocamente que “vidas negras têm importância”.
Depois do massacre numa boate gay em Orlando, fui a uma vigília religiosa ecumênica em minha cidade, que é pequena e conservadora. Entre os oradores, praticamente ninguém pronunciou as palavras “gay” ou “lésbica”. Deve ter sido inconsciente, mas revelou um desconforto profundo sentido pelos heterossexuais com as pessoas gays, um desconforto que o uso popular da sigla “LGBT” obscurece. Do mesmo modo, nós brancos nos sentimos desconfortáveis com a negritude. Nem sequer gostamos de proferir essa palavra. Ela soa errada em nossas bocas. Nós a ocultamos empregando termos codificados como “urbano” ou “pobres urbanos”, com os quais podemos nos esconder de nosso racismo inconsciente. Precisamos pronunciar as palavras “vidas negras têm importância” porque precisamos superar o desconforto que sentimos com os negros e encarar nosso viés inconsciente.
4. Entre para o movimento de defesa dos direitos civis
Caras pessoas brancas como eu, estamos no meio de um segundo movimento de defesa dos direitos civis. Muitos de nós, brancos, idealizamos Martin Luther King Jr. e gostamos de pensar que, se tivéssemos vivido a era dos Direitos Civis, teríamos estado do lado dele. Mas o fato é que a maior parte do público americano não apoiou o movimento de defesa dos Direitos Civis enquanto estava acontecendo e só passou a enxergar Martin Luther King como herói depois de ele ser morto.
O movimento dos Direitos Civis foi impopular entre a maioria dos brancos enquanto estava acontecendo. Foi impopular porque provocava sentimentos de profundo incômodo entre os brancos. Hoje, o movimento Black Lives Matter também nos provoca incômodo. Dentro de 40 anos, vamos olhar para trás, para o segundo movimento dos Direitos Civis que estamos vivendo hoje, e vamos ter que nos perguntar se estivemos do lado certo da história. Se quisermos estar do lado certo da história desta vez, vamos ter que nos sujeitar ao desconforto. Não existe maneira confortável de operar uma transformação. E a transformação pode começar com a repetição desta frase simples, mas poderosa: as vidas negras têm importância.
John Halstead