(Folha de S. Paulo, 21/09/2014) Para Wagner Xavier de Camargo, 40, pesquisador na área de sexualidades dissonantes no esporte na Universidade Federal de São Carlos, a diferenciação feita por alguns entre ofensas racistas e homofóbicas em estádios não passa de senso comum.
Por trás do argumento de que os gritos de “bicha” são brincadeiras, diferentes dos gritos de “macaco” dirigidos a atletas negros, há o temor da ameaça que as identidades LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros/as) põem à “masculinidade hegemônica” no futebol, segundo ele.
“Colocar a homofobia como cômica é jogar a homossexualidade no registro da ficção. Negando que há atletas gays, tenta-se ignorar as possibilidades alternativas de existência que eles colocam ao universo segregador de gênero que é o esporte”, diz o pesquisador, que é pós-doutorando da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
Em entrevista, ele discute a homofobia no esporte, a importância do manifesto contra o grito de “bicha” divulgado pelo Corinthians, as possibilidades de subverter a estrutura (“masculinista”) do esporte e a atuação das torcidas gays nas redes sociais hoje.
Folha – Como você avalia a homofobia no esporte hoje?
Wagner Xavier de Camargo – A sua questão é bem ampla. Vou decompô-la em algumas partes, para começar. A homofobia é uma nova expressão de um problema antigo. Enquanto instituição, o esporte é segregador: divide corpos a partir de múltiplos critérios, como idade, gênero, entre outros, e deposita principalmente sobre o gênero masculino todas as suas expectativas. Essa expressão monoliticamente masculina do esporte massacrou desde sempre outras possibilidades não-institucionalizadas ou não-legitimadas socialmente, que são várias. As mulheres, por exemplo, foram segregadas desde sempre no esporte, e continuam sendo até hoje.
Já a homofobia enquanto aversão à relação entre iguais é algo relativamente novo. Isso porque a homossexualidade ganhou espaço nos últimos tempos, e se no passado “ficar no armário” era regra, estamos hoje numa fase de transição para a “visibilidade”, em que atletas gays têm sido reconhecidos publicamente por parcelas da sociedade.
Quando emerge, a homofobia tenta fazer frente a isso. Ela é uma espécie de antídoto para algo dissonante em relação ao que é aceito e legitimado. É uma forma de manutenção das estruturas, sempre.
Por que o preconceito no esporte continua com força?
O esporte é uma instituição que segrega gêneros. Para funcionar, ele separa provas binariamente. Já no século 19, o esporte moderno é majoritariamente masculino. Mulheres não podiam praticar competições oficiais. E essas separações estão calcadas em preconceitos que vigoram até hoje. Dividir homens e mulheres segundo suas capacidades fisiológicas, argumentando que homens aguentam mais peso do que mulheres em provas como arremesso de disco, por exemplo, é algo que parte mais do senso comum preconceituoso do que de pesquisas científicas.
Por outro lado, os próprios atletas gostam de competir com pessoas de seu gênero. O corpo que coloca em questão o gênero (o transsexual homem ou mulher, por exemplo), que põe dúvidas à norma, apresenta uma ameaça à estabilidade, ao já conhecido. Dessa forma, os sujeitos reproduzem os preconceitos e perpetuam essa estrutura de segregação.
Os preconceitos estão incrustados em corpos, instituições e procedimentos, e assim eles se perpetuam em todas as esferas, inclusive no esporte.
Na semana passada, o Corinthians publicou um manifesto contra o grito de “bicha” nos tiros de meta adversários. Depois disso, o presidente do STJD, Caio Rocha, disse que não vê discriminação quando um jogador heterossexual é chamado de “bicha”. Houve quem defendesse que esse tipo de xingamento é uma brincadeira e, portanto, menos grave que gritos racistas. O que você acha?
Xingamentos racistas e homofóbicos são de mesma natureza, seguem a mesma lógica, e as pessoas têm que responder da mesma forma por eles. As pessoas falam que é brincadeira porque a sexualidade não pode ser colocada em um patamar sério sem trazer graves consequências.
A visão do presidente do STJD, que deveria ser munido de olhares ponderativos sobre o assunto e não dizer besteiras, é “boleira”, de senso comum. Colocar a homofobia como cômica é jogar a homossexualidade no registro da ficção, para não precisar lidar com sua existência. Negando que há atletas gays, tenta-se ignorar as possibilidades alternativas de existência que eles colocam ao universo segregador de gênero que é o esporte, onde o masculino está no topo da hierarquia
Esse manifesto aponta um cenário mais otimista para as identidades LGBT no futebol brasileiro?
Não necessariamente. Mas esse manifesto é bastante inédito: é claro, inteligível e vai direto ao ponto. E pode ser um primeiro movimento de um “efeito dominó”, que pode tocar todos os clubes do futebol brasileiro.
A problemática da homofobia no esporte chegou para ficar e deve se agudizar logo. No ano passado, quando o Emerson beijou o amigo dele e gerou toda a polêmica, muitos achavam que logo a questão dissiparia. Hoje, parece que a discussão vai estilhaçar para todos os cantos: começa na discussão do xingamento de “bicha”, e então pode alcançar a discussão séria sobre a sexualidade dos jogadores, sobre os ambientes homoeróticos no esporte.
O que seria a “masculinidade hegemônica” no esporte, conceito que você utiliza em seus trabalhos?
Trata-se de um conceito já utilizado por outros autores. O sociólogo americano Eric Anderson faz uma distinção entre “capital masculino” e “masculinidade hegemônica”. O “capital masculino” não é necessariamente hegemônico. Por exemplo, um atleta negro, musculoso, “testosteronado”, tem bastante capital masculino, mas não participa da hegemonia, porque não é branco. Ele está fora dos padrões de beleza estabelecidos socialmente.
A masculinidade hegemônica é o valor dominante de maneira mais ampla, na sociedade, e também no esporte. Ter masculinidade hegemônica é ser branco, musculoso, parecer heterossexual, ser cristão e bem educado. O gordinho e o negro estão fora desses padrões hegemônicos de beleza masculina, por exemplo.
Essa masculinidade hegemônica hierarquiza sujeitos: quem não faz parte da hegemonia é tratado como abjeto. Nessa classificação, as identidades femininas e LGBT são negativadas.
De modo mais amplo, a homofobia tem diminuído, aumentado ou permanece igual?
A homofobia tem aumentado. Isso porque os sujeitos dissonantes, ou seja, que não se encaixam nos padrões da heteronormatividade, como os gays, e que mostram que existe algo para além da norma, têm conseguido mais visibilidade recentemente. Há mais gays e lésbicas andando de mãos dadas nas ruas; as travestis têm nome social, o que significa que partes da sociedade têm respeitado suas identidades. E toda ação gera uma reação. A homofobia aumenta porque a presença social dos homossexuais tem aumentado.
E a homofobia é mais intensa no universo esportivo?
Não. É equivalente em outras esferas, como a religiosa e a militar. A intensidade é a mesma, mas a visibilidade é maior. Em instituições como o exército israelense, não se fica sabendo de expressões sexuais dissidentes, por exemplo. Salvo exceções, nas igrejas isso também é oculto. A homofobia no esporte pode parecer recrudescida porque é um espaço de trânsito comum – todos nós temos relações com o esporte. A lógica de discriminação é a mesma em todas as esferas, mas a visibilidade é maior no esporte.
E como subverter essas lógicas da discriminação no esporte?
Não tem receita de bolo nem acordo entre os pesquisadores do tema. Para mim, não se trata de ocupar os espaços, mas de tentar se colocar de maneira diferenciada neles. Minha crítica aos atletas gays que entrevistei em minhas pesquisas é a de que não adianta eles mostrarem ao mundo heterossexual que conseguem organizar competições e disputar em alto nível. Para o mundo heterossexual, isso não importa nada, eles desconsideram a existência desses atletas e competições. O que tem que ser feito é subverter a própria prática esportiva, mudar as categorias binárias de gênero das atividades esportivas. Diminuir a distância de 100 m para 70 m no atletismo? Correr vestido de “drag queen”? Medir os níveis de estrogênio e dividir os atletas em categorias a partir disso? Não sei, é algo a se pensar, mas são possibilidades. A ideia de criar esportes alternativos é igualmente interessante.
O que falta é que esses atletas exerçam sua agência, subvertendo as atividades esportivas. Há o exemplo de um grupo de tailandesas voleibolistas que viajam o mundo em competição. São homens fisiologicamente e optaram por uma identidade de gênero feminina, ou seja, são mulheres. E extremamente femininas: cabelos longos, unhas longas, maquiadas, têm muito estrogênio. E apropriando-se da técnica do vôlei, competem contra homens e mulheres e ganham de qualquer um. E não se trata somente da vitória, mas também da performance: elas jogam dando um show. E assim subvertem a estrutura absolutamente masculinista do vôlei.
Atualmente, entre outras coisas, você está estudando torcidas gays de futebol. Poderia explicar um pouco da sua pesquisa?
Desde o ano passado, tenho estudado a proliferação de páginas de torcidas alternativas na internet, como a Galo Queer, Cruzeiro Maria, Bambi Tricolor, entre outras. São torcidas mais virtuais do que reais. Muitos dos que as apoiam curtem as páginas virtuais dessas torcidas no Facebook, mas não vão aos estádios com as camisas de seus clubes e com uma bandeira do arco-íris. É uma nova forma de torcer sem a ocupação do espaço físico.
As torcidas gays do passado seguiam uma outra lógica. Nos anos 1970, havia a Coligay, torcida organizada do Grêmio composta por homossexuais, que ia aos estádios, sofreu preconceito no começo e depois acabou até virando uma espécie de xodó na época, um “pé de coelho” do time. Naquela época, ir ao estádio e ocupar os espaços era importante para a visibilidade da causa. Nesse sentido, essas torcidas seguiam a mesma lógica dos movimentos estudantis da época, que saíam em massa às ruas para lutar por suas causas.
As torcidas gays de hoje ocupam os espaços possíveis. Com a violência e a homofobia generalizadas atualmente, ir ao estádio, além de uma experiência hostil, implica em riscos grandes para um torcedor organizado homossexual. Na internet, eles encontraram um novo meio de expressão e ocupam os espaços virtuais. E não são menos torcedores por isso, nem mais: eles torcem de maneira diferente.
Guilherme Seto
Acesse o PDF: Racismo e homofobia possuem a mesma natureza, diz pesquisador (Folha de S. Paulo, 21/09/2014)