Racismo, subtexto da intolerância religiosa, por Gisele Pereira

31 de janeiro, 2018

Não há uma perseguição generalizada a religiões no Brasil. Basicamente os intolerantes miram os praticantes do candomblé e da umbanda

(CartaCapital, 31/01/2018 – acesse no site de origem)

Antes de mais nada, lembremos que a tolerância outrora tão enaltecida e reivindicada é altamente questionável por seu caráter limitado no que se refere a uma ética necessária ao convívio humano.

Ser tolerante não é o mesmo que respeitar e reconhecer a legitimidade alheia tal qual a sua própria. Quem apenas tolera carrega ainda os vestígios de superioridade. De toda forma, estamos muito longe de sequer experimentar relações básicas baseadas neste princípio diminuto.

Um caso emblemático se deu em 21 de janeiro de 2000. Nesta data, Mãe Gilda, uma ialorixá do terreiro Axé Abassá, morreu vítima de um infarto decorrente da violência física e psicológica ocasionada por religiosos cristãos fundamentalistas.

Mãe Gilda teve sua casa invadida, foi golpeada na cabeça com uma bíblia e chamada de charlatã, e seus objetos de culto foram destruídos… Depois de muito sofrer, seu coração não resistiu. Muitas outras atrocidades foram cometidas contra sua casa e sua família, e são cometidas ainda hoje contra o povo de axé.

O exemplo do que aconteceu com mãe Gilda demonstra o quanto o que chamamos de intolerância tem se expressado de maneira perversa e violenta onde, em tese, deveriam ser espaço de seu contrário: as religiões.

Há um certo pudor quando se fala em religião, mais precisamente quando se critica determinadas religiões. Um ditado diz, inclusive, que este é um dos assunto que não se deve discutir.

Assim, preconceitos, discriminações e desrespeitos de toda ordem abrigam-se facilmente sob a égide religiosa, com a vã argumentação de que é a “minha fé” ou “é assim que eu penso”… A ignorância em relação a práticas distintas da sua ganha uma roupagem de afirmação da própria crença, confundindo-se a liberdade de expressão religiosa com o “direito” a oprimir e destruir simbólica ou fisicamente outrem.

Esta relação de afirmação e proselitismo de sua crença e rechaço, e muitas vezes combate a outras, não se aplica igualmente aos mais diferentes grupos que compõe o campo religioso brasileiro.

Não se trata, portanto, de “apenas” não tolerar a todas as outras religiões diferentes da sua. Não quero diminuir com isso o peso da intolerância a outros grupos, mas evidenciar que no Brasil, por trás do que chamamos de intolerância religiosa, escondem-se outros fatores ainda mais perversos relacionados à história política e econômica do País.

Aqui, em Terras Brasilis, o que observamos não são crenças conflitantes que se colocam da mesma maneira no campo de disputa por espaços, números e cifras. Mas o fato de grupos religiosos sem caráter proselitista serem perseguidos de maneira sistemática, violenta e absolutamente desproporcional. Estes grupos são, não coincidentemente, aqueles que praticam religiões de matriz africana.

Não observamos a mesma violência e ataque sistemático ser cometido contra nenhuma outra manifestação religiosa. Portanto, quando estamos falando de intolerância religiosa no Brasil, estamos falando de uma manifestação do racismo.

A outra ponta dessa história localiza-se na formação brasileira. O racismo da maneira como o conhecemos foi engendrado pela colonização política, econômica e religiosa. A Igreja Católica participou da empreitada colonizadora fornecendo os substratos ideológicos para sua legitimação e agindo ela própria na colonização religiosa.

Sua contribuição na formação de um imaginário eugênico e racista, atribuindo a tudo que vinha da África um caráter inferior, não humano, sustentou ideologicamente o sistema econômico escravista. O catolicismo se estabeleceu nestas terras (citando apenas nosso caso específico) com muito sangue derramado, escravização e jugo das culturas nativas e africanas. Portanto, as implicações econômicas e políticas do racismo até a atualidade tem, dentre outros, vínculos religiosos

Não é possível ocultar a responsabilidade do cristianismo no estabelecimento e na manutenção do racismo. Ainda que tenha sido uma versão institucional e exclusiva de cristianismo localizado em um tempo a partícipe direta nesta formação e ainda que não comunguemos de visões e práticas de racismo religioso na atualidade, é nosso dever como cristãos encarar e combater o privilégio de que gozamos por esta história perniciosa.

Por outro lado, também não podemos negar que a diversidade cultural que acompanhou as diferentes etnias em sua diáspora forçada para o além-mar sobreviveram às aflições, crueldades e infortúnios e contribuíram para nossa formação cultural, arraigadas no cotidiano e mesmo nas crenças populares, rompendo as fronteiras institucionais. Esta é uma expressão de resistência negra e da riqueza cultural proveniente do imenso continente. Fato que contrasta com o imaginário racista que rechaça nossas raízes africanas.

Assim como o samba e a capoeira foram criminalizados, entendidos como práticas de vadiagem. Ainda hoje o candomblé e a umbanda, as mais conhecidas, sofrem com o estigma racista que as associa ao mal. Esse é um exemplo de ignorância alimentada pelo racismo.

Em 2007, nasceu o “Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa”, 21 de janeiro. A data passou, mas tenho certeza de que sempre é tempo de denunciar e combater o racismo, esteja onde estiver, inclusive em nós mesmos e dissimulado nos privilégios que gozamos.

Prestamos ainda nossa homenagem e sentimentos à memória de Mãe Gilda e a seus filhos, como a todo povo do axé que luta por seu direito de existir, resistir e crer.

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