Argumentos como ‘foi uma piada’, ou ‘era só uma forma de diversão’ funcionam cada vez menos
(Nexo, 13/03/2018 – acesse no site de origem)
O que é ser racista? Somos ou não somos racistas? De que forma as organizações (de corporações transnacionais às pequenas empresas) e seus profissionais podem lidar com acusações não apenas de racismo, mas igualmente de sexismo, homofobia e outras formas de opressão de minorias sociais que ganham mais eco no mundo contemporâneo?
O ano de 2018 começou com algumas notícias sobre casos que envolvem racismo em organizações e empresas. Logo no dia 5 de janeiro, o jornal Folha de S.Paulo repercutiu um episódio de racismo que eclodiu na “festa da firma” da filial de uma corporação multinacional que opera no Brasil, a Salesforce. Poucas semanas depois, um debate envolvendo a marca sueca H&M e a divulgação de uma campanha de venda de moletom em que um garoto negro usava uma blusa com os dizeres “O macaco mais legal da selva” ocupou a cena midiática. Por fim, no dia 14 de janeiro, a mesma Folha publicou um texto do jornalista William Waack em que ele retoma a celeuma em torno do vazamento, no final do ano passado, de um vídeo em que aparece proferindo ofensas com teor racista, por ocasião de uma cobertura jornalística que realizava nos Estados Unidos. As palavras ficaram bem conhecidas: “É preto. É coisa de preto”.
Por ter um conteúdo bastante emblemático para se desconstruir discursos que, via de regra, tentam justificar (ainda que sob a alegação de não o fazer) práticas cotidianas de viés discriminatório, gostaríamos de focar nossa reflexão sobre o texto de Waack. Ele o inicia com um mea culpa, admitindo ter sido uma piada “idiota” e pedindo desculpas pela ofensa, ressaltando que não teve a intenção de ferir a ninguém. “Aqui estendo sinceramente minha mão”, afirmou. No entanto, a argumentação desenvolvida em seguida desdiz o seu perdão. Percebe-se nela um mecanismo retórico bastante comum, em que se procede a uma inversão do jogo discursivo: aquele que foi acusado de racismo passa a acusar os seus acusadores. E faz a sua acusação, inclusive, de maneira perigosamente generalizada.
Dentro dessa linha argumentativa, ainda que reconheça que existe racismo no Brasil, Waack passa a se apresentar como vítima de um “fenômeno mais abrangente”, envolvendo “todo o mundo, na era da revolução digital”. E qual seria este fenômeno? Um suposto desafio que “grupos organizados no interior das redes sociais” estariam lançando permanentemente contra a chamada “mídia tradicional”. De acordo com o jornalista, estes grupos se mobilizam para contestar o papel de guardiões dos fatos objetivos dos quais, até então, os grandes grupos de comunicação seriam detentores. Sendo assim, a credibilidade dessas empresas se encontraria sob crescente suspeita. É curioso notar que, na sua opinião, esse fenômeno está além da capacidade de entendimento dessas corporações. Do seu ponto de vista, por falta de visão estratégica, por covardia, ou por ambos fatores, estas companhias se tornam reféns dessas redes mobilizadas, cedendo à sua gritaria para proteger a própria imagem institucional.
Essa posição das empresas seria equivocada, uma vez que, para o jornalista, a imensa maioria dos brasileiros está cansada do “radicalismo obtuso e primitivo”, considerado por ele uma “característica inegável do ambiente virtual”. Porém, mesmo com toda essa defesa, as Organizações Globo, seu empregador, decidiram pela sua demissão. Se por acaso indivíduos no interior das organizações ainda não entenderam que brincadeiras ditas de “mau gosto” ou até mesmo “idiotas”, nas palavras do próprio jornalista, estão relacionadas com racismo, sexismo, homofobia, misoginia, etc., as corporações não podem se furtar a esse entendimento. Isso não quer dizer que as companhias estejam livres de todos os preconceitos, incorporando o papel de defensoras de uma sociedade igualitária e justa. Significa “apenas” que as questões relacionadas à diversidade começam a ser inegociáveis no mundo empresarial, seja por conta de dispositivos legais, de pressões sociais, ou mesmo dos seus próprios interesses econômicos. Afinal seus consumidores são diversos e ofendê-los pode resultar em arranhões em sua imagem com consequências nos resultados dos seus negócios.
O que é possível concluir com este episódio envolvendo Waack e sua resposta? Do nosso ponto de vista, assim como os casos supramencionados da Salesforce e da H&M, ele revela que alguns profissionais continuam sem entender, mesmo após as suas punições, que questões como racismo e sexismo não passam mais como “simples” brincadeira. Portanto, argumentos como: “foi uma piada”, ou “era só uma forma de diversão” funcionam cada vez menos. Até pela percepção que se consolida de que este tipo de recurso endossa ainda mais algumas formas de preconceito e discriminação. Ora, em praticamente toda “piada” envolvendo identidades (negros, portugueses, judeus, mulheres, gays etc.) existe uma relação de poder (explícita ou tácita) travestida de uma pretensa ironia. A ridicularização do outro só faz sentido para afirmar um suposto lugar hegemônico de quem a veicula.
Concordamos com o jornalista que este fenômeno tem contornos globais e envolve as redes sociais. Todavia, consideramos que ele é bem mais complexo do que uma oposição maniqueísta entre uma mídia tradicional, supostamente guardiã dos fatos objetivos, e grupos organizados no interior das redes sociais, supostamente portadores de uma postura marcada por radicalismo obtuso e primitivo e semeadores da intolerância.
As questões relacionadas à diversidade estão estreitamente articuladas ao que filósofos como Axel Honneth, Nancy Fraser e Charles Taylor definiram como lutas por reconhecimento encampadas por grupos historicamente subalternizados, seja em razão da sua orientação sexual, da sua identidade de gênero, da cor da sua pele, da sua origem étnico-religiosa ou de outros marcadores sociais da diferença. Essas lutas por reconhecimento são parte central da gramática dos conflitos sociais no mundo contemporâneo. São assuntos bastante complexos e sensíveis. Eclodem não apenas nas redes sociais, ainda que ganhem amplitude por meio delas, como quaisquer outros fatos da sociabilidade contemporânea. As empresas, e seus profissionais, não podem se furtar a refletir cuidadosamente sobre essa questão e a implementar práticas de gestão capazes de prevenir a ocorrência de ações consideradas preconceituosas / discriminatórias e/ou a mitigar seus efeitos. No que se refere ao racismo, por exemplo, não somos todos nós brasileiros, pretos, pardos, brancos, indígenas, asiáticos ou de outros matizes, que aceitamos mais ouvir certas “piadas idiotas”, especialmente quando expressas no espaço público e/ou midiático. E aqueles de nós que não aceitam ouvir palavras que ferem, ridicularizam, humilham, não podemos ser tachados de intolerantes ou promotores de uma “gritaria organizada” por efeito de uma inversão discursiva.
Pedro Jaime é doutor em antropologia social pela USP e em sociologia & antropologia pela Université Lumière Lyon 2, mestre em antropologia social pela Unicamp e professor do Núcleo de Humanidades da ESPM e do programa de mestrado e doutorado em administração do Centro Universitário FEI. É autor do livro “Executivos negros: racismo e diversidade no mundo empresarial” (Edusp, 2016), contemplado com o Prêmio Jabuti em 2017.
Fred Lúcio é pós-doutorando do Programa de Mestrado e Doutorado em Gestão Internacional da ESPM, doutor em ciências sociais e mestre em antropologia social pela Unicamp. É autor de “Ética Empresarial” (Ed. Alínea, 1996), professor do Núcleo de Humanidades da ESPM-SP, onde coordena a Agência Experimental de Incentivo ao Voluntariado Estudantil (ESPM Social). Ambos são autores do livro “Sociologia das Organizações: conceitos, relatos e casos” (Cengage, 2017).
Camila Aragon fez especialização em Gestão de Processos Comunicacionais na ECA-USP e mestrado profissional em Comunicação Humanitária na Université Lumière Lyon 2. Atualmente cursa o mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo na ESPM. É publicitária e sócia-fundadora da agência Alma Comunicação e Causas.