Sônia Livre: como a escravidão moderna ainda aprisiona mulheres negras no Brasil

14 de maio, 2025 AzMina Por Naju Pereira

Mais de 5 mil casos de trabalho análogo à escravidão em 2023 mostram que pessoas negras seguem sendo exploradas e invisibilizadas no Brasil

Mais de 5 mil casos de violação relacionados a condições de trabalhos análogas à escravidão foram registrados pelo Ministério do Trabalho em 2023. A maioria dessas vítimas é negra e muitas mulheres trabalham sem carteira assinada, proteção legal ou fiscalização efetiva.

Essa reportagem mergulha na escravização de Sônia Maria de Jesus, que está ocorrendo hoje no nosso país. Mas não é só sobre ela. É sobre o Brasil de agora. Não o de 1500, mas o país de sua mãe, sua avó e também o meu. Ao investigar essa história, encontrei muitas outras — e nelas, reconheci mainha, minhas tias, e tantas mulheres pretas que sustentam este país e que seguem sendo tratadas como propriedade.

Com muita raiva, escrevo que o caso de Sônia segue sem solução até este dia 13 de maio de 2025, data da suposta abolição do Brasil, que, na verdade, para o Movimento Negro, é um dia de luta e resistência contra o racismo. Sônia não está livre. “Vive” na casa dos patrões “como se fosse da família”. A escravidão se atualiza.

A imagem de Sônia no Carnaval

Em 2025, em meio ao Carnaval de Florianópolis, foliões do Centro-Leste carregavam como adereço um leque de papel estampado com a foto de uma mulher preta, adulta, de sorriso tímido, sem mostrar os dentes.

A mensagem no leque era clara: “Sônia Livre! Basta de racismo na Justiça! Escravidão nunca mais!”. Foi assim, entre festa, calor e alegria, que vi a imagem de Sônia — mas a sua história eu conheci em junho de 2024, no meu primeiro ano morando em Florianópolis.

Quando recebi notícias sobre Sônia, eu estava num momento de revisitar as histórias das mulheres da minha família – especialmente de mainha, Damiana Maria Pereira. Empregada doméstica e babá desde os cinco anos em Fortaleza, capital do Ceará. Onde ela cuidou de crianças quando ainda era uma, sem acesso à educação ou à saúde pública, pulando de casa em casa. Perdeu a infância, a adolescência e o início da vida adulta.

Somente aos 22 anos teve sua carteira de trabalho assinada pela primeira vez, em Limeira, interior de São Paulo, no dia 1º de maio de 1999. Eu tinha a mesma idade dela quando me formei em jornalismo. Foi na data internacional do Trabalho que mainha se viu, finalmente, parte de uma família que a tratava como tal. Com o tempo, essa família se tornou minha também, sendo padrinhos meus e de Nana, minha irmã mais velha.

Mesmo em lugares e tempos diferentes, as histórias de mainha e Sônia se cruzam.

Fuga da violência doméstica

Deolina Ana de Jesus, mãe de Sônia, mulher negra, mãe de 7 filhos, encontrou na violência doméstica um ciclo sem saída. O marido, alcoólatra e agressivo, descarregava sobre ela sua brutalidade. Mas Sônia parecia ser o alvo preferencial. Dona Ana temia pelo pior. Quando conheceu Maria Leonor Gayotto, psicóloga e coordenadora do projeto Socialização em Creche de Periferia, da PUC-SP, encontrou uma saída. Em um ato de desespero, pediu que levassem Sônia dali, prometendo a si mesma que um dia teria a filha de volta.

Sônia foi levada por Maria Leonor, sob o pretexto de proteção. Sumiu do radar da mãe Ana. Primeiro, parou de frequentar a creche. Depois, desapareceram os rastros. O acordo nunca foi cumprido, e dona Ana entrou em uma aflição que a acompanhou por toda a vida.

Em 1992, a vida dos Gayotto tomava novos rumos. Maria Leonor e Luiz Carlos Gayotto estavam ocupados com suas carreiras prestigiadas, então Sônia, com 18 anos, foi transferida para outro núcleo familiar. Passou a morar com Ana Cristina Gayotto, filha de Maria Leonor, e seu marido, Jorge Luiz de Borba. Primeiro em Blumenau, depois em Florianópolis, quando Jorge Luiz, então advogado trabalhista, se tornou desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC). Sônia chegou a ser matriculada em uma escola para deficientes, mas não se sabe por quanto tempo. Sônia nunca voltou para casa.

Promessa de futuro melhor oculta a escravidão

Assim como Sônia, outras mulheres negras brasileiras, estão à mercê da escravidão doméstica em pleno século XXI. Sua história se junta à de tantas crianças negras arrancadas de suas famílias sob a ilusão de “um futuro melhor”.

No interior do Ceará, minha avó Maria Pereira amamentava seus 12 filhos e outras crianças — essas, ricas — em Abaiara. Fez isso até o nascimento do último, meu tio Val, que hoje tem cerca de 40 anos. Quando ganhavam idade, as filhas eram enviadas para casas de famílias da cidade ou da capital. Os meninos, para a roça com meu avô, ou para as fazendas.

“Eu tinha uns cinco anos. Dormia com os animais e usava roupa feita de saco de arroz. Um dia, peguei sarna. Minha irmã mais velha descobriu e foi me buscar. Minha mãe, sua avó, ia me deixar morrer lá. Na casa daquelas pessoas que me viam como um animal“, mainha me contou. Voinha perdeu o direito de ser mulher antes mesmo do direito de ser mãe. Suas escolhas foram movidas pela fome, pela miséria, pela escassez. Pela falta de possibilidades.

A naturalização da escravidão moderna no Brasil

Sônia Maria de Jesus viveu mais de 40 anos em condições de trabalho análogas à escravidão, sem salário, sem acesso à educação e sem a liberdade de decidir sobre sua própria vida. A denúncia anônima que chegou ao Ministério Público do Trabalho de Florianópolis, em setembro de 2022, abriu uma investigação que revelou a realidade de exploração de Sônia.

Um dos depoimentos que embasaram as investigações afirmava “que, há mais de vinte anos, é mantida na casa a pessoa que atende pelo nome de Soninha, que é surda e muda e faz todo o tipo de trabalho doméstico para a patroa, de segunda a segunda, sem salário e sem registro”.

Outro relato aponta “que dizem que ela é ‘como se fosse da família’, mas se veste como empregada e não se senta à mesa para comer com a família, além de morar em uma casinha fora da casa principal.”

Os depoimentos de ex-funcionárias confirmaram essa realidade. Maria Lídia do Nascimento, que trabalhou para a família entre 2015 e 2016, declarou ao Ministério Público que Soninha realizava funções típicas de empregada doméstica, sempre isolada e em condições precárias. “Soninha é uma espécie de mucama para a Ana“, afirmou Lídia em depoimento.

Os outros testemunhos coletados pelos procuradores descreveram a mesma rotina exaustiva e desumana.Soninha realizava tarefas domésticas, sem acesso a cuidados médicos ou dignidade, mesmo quando estava visivelmente doente.

“Justiça mandou Sônia de volta ao cativeiro”

Quando foi finalmente resgatada, uma decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina determinou que Sônia retornasse ao local onde viveu décadas de exploração.

“A permanência de Sônia na casa do desembargador expõe as falhas do sistema judicial, que ao invés de libertá-la, a devolve à violência que ela sofreu por décadas”, afirma Vanda Pinedo, representante do Movimento Negro Unificado (MNU) e do Movimento Sônia Livre. “Levar uma mulher que sofreu violência de volta ao seu agressor põe em jogo a liberdade da mulher negra e expõe a continuidade do racismo estrutural no Brasil”, complementou Vanda.

A decisão judicial, que contraria os direitos de liberdade e dignidade de Sônia, gerou revolta entre movimentos sociais e ativistas pelos direitos das trabalhadoras domésticas. Além de impedir que ela volte para seus familiares após décadas de exploração, o desembargador passou a afirmar que iria adotá-la como “filha”, um movimento que, para muitos, representa o tratamento de Sônia como propriedade.

“Sônia é uma pessoa com deficiência e sem alfabetização. Como a justiça não consegue perceber que essa mulher está sendo violada em todos os seus direitos?”, questiona Vanda. Para ela, o Brasil não deixou de ser escravista, “um país que só olha para as mulheres pretas como trabalhadoras domésticas”.

“É como se fosse da família”

Mainha começou a juntar uma grana para fazer curso de manicure e pedicure, abrir um salão em casa e sair da casa dos patrões. Por um tempo ela escondeu o sonho até do meu pai, que depois passou a apoiar e pediu que ela não contasse para ninguém da família Balloni — os patrões da minha mãe, nossos “padrinhos”.

Aos sábados de manhã, ela entrelaçava sua mão na minha e íamos até onde eram feitas as aulas de manicure, na praça mais movimentada da cidade. Mainha andava como se estivesse sendo perseguida. No final do curso, corria até a banca de revista e painho me dava um gibi da Turma da Mônica de presente: Antes mesmo de chegar em casa, eu já tinha devorado o gibi e esquecido o segredo.

Desde pequena, Mainha sempre me fala: “Não pegue o que não é seu”. Tenho a memória dela chegando em casa chorando, e painho bravo, dizendo que tinham dito que ela havia roubado um óculos (e dado pro meu pai) – o patrão dela tinha visto meu pai usando um óculos enquanto trabalhava e disse que aquele era dele. Mainha negou. Explicou que os patrões estavam se mudando para uma casa maior e tinham colocado várias coisas para doar. Ela pegou algumas para nós, para nossa casa – mas não roubou nada.

A acusação veio no mesmo momento em que Mainha não queria mais limpar tudo sozinha. Ali, ela lavava, cuidava das crianças e cozinhava por um valor de um trabalho só. Estava tentando entrar em um acordo: pedia mais uma pessoa para ajudar. Mainha foi mandada embora e, junto, levou o nome de ladra.

E eu perdi o que, para mim, era um irmão — o filho mais novo dos Balloni. Porque eu também era “quase da família”.

Trabalhadoras unidas em luta por direitos

Antes de ser representante da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), Creuza Maria Oliveira também foi uma criança cuidando de outra criança. Passou anos sem estudar, longe da família, submetida a abusos e violências constantes. Somente aos 21 anos teve sua carteira assinada pela primeira vez. Aos 28, ao ouvir no rádio sobre um grupo de trabalhadoras domésticas que se reunia em um colégio duas vezes por mês, decidiu procurar por elas.

“O segundo e o quarto domingo do mês, pra mim, passou a ser sagrado. Saía escondido da patroa, ia aos encontros e depois a noite voltava”, conta Creuza. Essas reuniões foram pontos de pertencimento, onde ela percebeu que não estava sozinha. Que aquela raiva, tantas vezes calada, podia ser também coletiva. Em 1986, junto de outras companheiras ajudou a fundar a Associação de Profissionais Empregadas Domésticas da Bahia, num momento em que a categoria não podia sindicalizar.

A associação se articulava com outras do país e a mobilização nacional da categoria, em 1985, levou à formulação de uma proposta de emenda constitucional. A deputada Benedita da Silva se tornou a porta-voz dessa luta no Congresso Nacional, buscando incluir os direitos das domésticas na Constituição de 1988.

O movimento garantiu alguns avanços — carteira assinada, férias de 30 dias, 13º salário — mas ainda há muito a conquistar. Como disse a própria Creuza, “os três poderes nos empregam”, o que torna difícil romper com a estrutura de exploração secular. Ainda hoje, a categoria luta pela equiparação no seguro-desemprego, no FGTS, por creches, moradia e combate ao trabalho escravo contemporâneo.

Acesse a reportagem no site de origem.

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas