Criado a partir de uma campanha, o projeto #UmaPorUma, do Jornal do Commercio, tem como objetivo mensurar as mortes violentas de mulheres no estado e também contar suas histórias
(Agência Patrícia Galvão, 25/07/2018)
A Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104) foi aprovada em 2015 e, segundo o 11º Anuário de Segurança Pública, em 2016 haviam sido registradas 4.606 mortes violentas de mulheres no país – o que representa 1 mulher assassinada a cada 2 horas no Brasil; porém, somente 621 casos foram classificados como feminicídios (13,5% do total). Em Pernambuco, o número total foi de 280 homicídios de mulheres, com 75 feminicídios registrados nesse mesmo ano.
Contar as histórias dessas mulheres assassinadas, entender a motivação de cada homicídio e mensurar o problema no estado foram as razões que levaram Ciara Carvalho e Juliana de Melo a darem início à série especial de reportagens #UmaPorUma. Publicada no JC Online, versão web do Jornal do Commercio, o projeto contabiliza as mortes de mulheres em Pernambuco desde janeiro deste ano. Na última atualização feita em maio já contavam 110 mortes, sendo 27 delas feminicídios.
Em entrevista exclusiva para a Agência Patrícia Galvão, a jornalista Ciara Carvalho, coordenadora do #UmaPorUma, falou sobre a concepção do projeto, os desafios encontrados e também os próximos passos a serem desenvolvidos no âmbito desse trabalho.
Como surgiu a ideia do projeto?
Ciara Carvalho: A ideia surgiu depois que fizemos no final de 2017 uma pequena série de reportagens especiais chamada “A Culpa Não é Delas”, em que falávamos sobre as diversas violências sofridas pelas mulheres dentro e fora de relacionamentos e nos questionávamos sobre o quanto isso contribui para a cultura de violência. A série acabou se tornando uma campanha que ganhou espaço nas redes socais e teve um retorno muito bom do público.
A partir dessa experiência, que foi extremamente positiva, entendi que era preciso dar um passo mais adiante. A Juliana de Melo, que é a outra jornalista que coordena esse projeto, também estava sentindo essa necessidade e, então, pensamos em fazer um levantamento dos casos de feminicídio. Juntas elaboramos esse projeto e chegamos na formatação que temos hoje. Vamos monitorar os casos no estado por ano, porque assim entendemos que vamos conseguir uma radiografia de fato, muito realista e aprofundada.
Depois de formatado o projeto, criamos o Grupo Coletiva, que reúne outras mulheres jornalistas engajadas com o tema, para compor a equipe do projeto. Iniciamos esse projeto com um levantamento de 3 meses – janeiro, fevereiro e março. Fizemos um verdadeiro mutirão para resgatar esses três meses e poder colocar a primeira versão do site, que foi ao ar no dia 29 de abril de 2018.
Fora o desafio de atualização, de manter o site em dia, vocês encontraram outras dificuldades para mapear esses casos, entrar em contato com as famílias e saber mais sobre cada história?
Ciara Carvalho: São muitas as dificuldades. A questão do mapeamento, de fato, é uma delas, porque além de trazer os casos, levantamos as estatísticas e a situação processual desses casos. Então, esse é um esforço gigantesco do projeto, porque sabemos que não é fácil conseguir essas informações dos órgãos públicos. Apesar da grande receptividade, existem barreiras muito grandes, como a demora em receber os dados, por exemplo.
A outra ponta é exatamente essa parte de localizar a família. A maior parte dos casos acontece no interior e por isso existe uma dificuldade a mais para falar com esses familiares. Temos que ir atrás de telefones das UPAs, dos centros sociais, tentamos de todas as formas, porque muitas vezes a informação que a Polícia dá é muito pouca em relação ao que precisamos para o nosso trabalho.
Estamos comprometidas no esforço de tentar chegar o mais próximo possível dessas histórias e conseguir depoimentos de pessoas que conviveram com aquelas mulheres e que podem dar um relato mais fiel do que apenas o que consta no B.O.
O #UmaPorUma vai além de dar nomes e rostos aos números de mortes; vocês contextualizam, falam sobre a cultura da violência, sobre a família que fica.
Ciara Carvalho: Exatamente , tentamos ao máximo, e dentro do possível, chegar perto da história dessa mulher. A maioria das vezes encontramos uma família fragilizadas, às vezes constrangida e com medo e, claro, recebemos a resposta de que eles não querem falar sobre o assunto. Mas em geral a receptividade é muito boa, a família se identifica com o projeto e vê ali uma maneira de manter viva a memória daquela mulher, de acompanhar e ajudar no processo judicial.
Aí então conseguimos contextualizar aquela morte, porque a ideia é que esse número seja apenas o primeiro passo. O que mais importa para nós são os contextos, tanto que sempre falamos em ‘contar’ no duplo sentido. Contar numericamente mas, principalmente, contar as histórias dessas mulheres, porque é nesse mergulho individual sobre cada uma delas e sobretudo sobre os casos de feminicídio, que começamos a identificar as semelhanças, os padrões de comportamento, as negligências. É por onde conseguimos traçar o cenário dessa violência tão cruel a que a mulher é submetida.
Como vocês enxergam o papel do jornalismo ao abordar assuntos como esse? Vocês acham que isso ajuda a sensibilizar e conscientizar a população sobre o tema?
Ciara Carvalho: Defendo muito que o jornalismo se posicione. Em determinados temas em que a subjetividade não dá conta, precisamos ir além, no sentido de fazer questionamentos mais direcionados e derrubar preconceitos e certos entendimentos que só alimentam o ciclo da violência.
Observamos que às vezes o próprio jornalista reproduz o discurso com uma fala totalmente ultrapassada, como por exemplo dizer que a vítima foi morta por ciúmes ou ‘crime passional’, e precisamos evoluir na forma como contamos essas histórias, pois elas dizem muito. Chamar um feminicídio de ‘crime passional’ é amenizar uma situação muito grave.
Vejo também um paralelo muito grande com a forma como tratávamos há muito tempo atrás a questão do ‘menor infrator’, por exemplo, e como evoluímos nessa questão. O próprio tratamento da imprensa ajudava a marginalizar esse jovem e vejo um processo muito semelhante em relação à questão de gênero. Estamos aprendendo a lidar com esse tema e defendo que a forma de contar é muito importante, na realidade ela é decisiva.
Como a proposta foi recebida na redação entre os colegas? Houve resistência, demonstrações de preconceito?
Ciara Carvalho: De uma forma geral, principalmente entre as mulheres, a proposta foi abraçada por todos, inclusive pela direção do jornal. É claro que como essas questões envolvem feminicídio, as próprias questões de gênero e feminismo, sempre encontramos algumas pessoas mais resistentes no debate e dentro da redação não seria diferente. Acham que é exagero, que tudo agora é feminicídio. Ainda escutamos algumas coisas desse tipo, mas o movimento é muito mais positivo e receptivo do que refratário, inclusive temos um grupo de homens que estão bastante engajados no projeto. Desde o início nosso diretor de redação também apoiou bastante. Quisemos que o coletivo de apuradoras fosse composto por mulheres, pela identificação absoluta e pelo lugar de fala, mas o trabalho reúne e abraça outros profissionais, inclusive homens que têm colaborado de forma muito preciosa.
Existem planos de expandir esse trabalho para fora do JC?
Ciara Carvalho: Um dos propósitos do projeto #UmaPorUma é criar um manual de redação interno sobre como tratar o tema do feminicídio e da violência doméstica. A parceria com o Instituto Maria da Penha tem nos permitido uma conversa sobre isso em paralelo, porque queremos sensibilizar a redação para que os jornalistas não reproduzam esses equívocos que escutamos durante a apuração.
Pensamos também em fazer um seminário interno, trazendo algumas pessoas para falar com os jornalistas da redação para que essas reflexões surjam na hora de escrever, principalmente porque estamos em um sistema de comunicação, temos rádio, TV e online. Então, a quantidade de profissionais é muito grande e nos preocupamos que essa sensibilização chegue a todos esses veículos.
Tainah Fernandes