(Agência Patrícia Galvão, 26/05/2016) A notícia de que uma jovem de 16 anos foi estuprada por 33 homens, que tiveram ainda coragem para exibir sua ignomínia em um vídeo na internet (um dos agressores chegando a exibir o rosto), é daquelas que dilacera todas as mulheres. Porque cada uma de nós sabe que não está 100% segura ao sair de casa, em qualquer horário e com qualquer que seja a roupa, para qualquer lugar. Cada uma de nós já sentiu medo ao sair de casa. E também já sentimos medo ao ficar em casa e receber uma encomenda ou um prestador de serviço.
Muitas mulheres convivem com a marca do abuso dentro de casa, por pais, tios, primos, irmãos, enfim, homens nos quais devíamos poder confiar – em milhares de casos ainda na infância, em outros milhares pelos parceiros. Todas que usam transporte coletivo já tiveram medo de denunciar o cara que abusou de nós no ônibus, no metrô ou no trem, e depois descer sozinha, quem sabe com o agressor em seu encalço. Todas já tivemos medo de pegar um táxi à noite sozinha. A dor coletiva exposta desde ontem na internet, que levou o caso à mídia nacional e internacional, é tão profunda porque cada uma de nós sabe que “poderia ter sido eu”.
C.P. já havia sido estuprada antes. É mãe de uma criança de três anos de idade. O que significa que foi abusada aos 12, 13 anos. Sabe-se lá por quanto tempo.
Os veículos de mídia estão contribuindo em dar visibilidade ao caso. O que pode ajudar a que efetivamente o Estado aja para prender os que violentaram a menina no último fim de semana. Mas é preciso que cada jornalista, chefe de reportagem e editor reflitam sobre como estão atuando na divulgação do crime. Veículos reproduziram vídeos da tragédia. Outros reportaram o caso como “suposto estupro”, afirmaram que a jovem “diz ter sido estuprada”, que a avó da menina “diz que” ela sofreu um apagão enquanto era seviciada por 30 homens. Houve ainda os que relataram que o crime teria sido, como afirmaram os estupradores, uma “vingança” porque ela “teria traído o ex-namorado”, que se juntou a outros 30 amigos para praticar o estupro. E ainda houve veículos que reportaram que a menina é usuária de drogas há cerca de quatro anos e que, ainda de acordo com a avó da menina, “nunca teria sofrido abusos antes”.
Nenhuma linha sobre o fato de a menina ter sido mãe aos 13 ser a comprovação de que ela já havia sido estuprada antes – todo jornalista que se propõe a escrever sobre um caso de violência sexual deveria se informar sobre a lei que tipifica como crime de estupro de vulnerável qualquer relação sexual com menor de 14 anos, um crime hediondo e qualificado.
Na mídia também não vimos ou lemos nenhum questionamento sobre a hipótese do suposto uso de drogas pela vítima há exatamente o mesmo tempo em que ela é mãe ter alguma relação com o abuso sofrido anteriormente e que a levou à maternidade. As informações, assim jogadas, servem quase de “explicação” para ela ter sido brutalizada daquela forma, física e moralmente, pois o vídeo e fotos de seu corpo ensanguentado permanecerão para sempre na internet. Não, não era necessário reproduzir as imagens para ilustrar o relatado em textos. Esta é mais uma violação sofrida por C.P.
Poucos foram os veículos que pautaram o martírio desta menina como resultado de uma cultura de estupro da qual ela é unicamente vítima e da qual não tem NENHUMA responsabilidade.
À exceção de artigos de opinião, apesar dos protestos na web gritarem isso, nenhuma associação ao fato de que, no mesmo dia em que o caso veio a público, um ex-ator decadente que em 2014 disse em um programa televisivo transmitido em rede nacional ter estuprado uma mulher negra candomblecista foi recebido como especialista em educação pelo novo ministro da pasta.
Nenhum debate fora das páginas de opinião sobre como os projetos em tramitação nos legislativos nacionais que criminalizam o debate sobre as desigualdades de gênero nas escolas contribuem para que os jovens não sejam reeducados a aprender que mulheres não são um pedaço de carne à disposição da superioridade masculina. Aliás, também não se debateu que estupro não é sexo, é expressão de poder patriarcal, não à toa comumente usado como arma de guerra.
Poucos foram os veículos que lembraram que o presidente afastado da Câmara dos Deputados colocou em tramitação naquela Casa em 2013 um projeto que dificulta o atendimento a mulheres vítimas de estupro e o acesso ao abortamento previsto em lei. E se a jovem C.P. engravidar novamente depois desta tragédia? Se decidir por um aborto será condenada mais uma vez pela mesma sociedade que autoriza homens a se sentirem empoderados o suficiente para divulgar o crime de estupro recém-praticado na web (o segundo crime daquela noite de horror) e outros centenas a compartilharem o vídeo, rirem da vítima sem nenhuma compaixão e culpabilizarem o seu corpo ensanguentado pela violência sofrida.
Também não foi pauta da mídia até agora como a prevalência de dogmas religiosos sobre o Estado laico e a redução dos já parcos recursos destinados às políticas de enfrentamento à violência contra a mulher, assim como o rebaixamento do Ministério de Políticas para as Mulheres, contribuem para que outras jovens sejam vítimas da mesma barbárie que C.P. Como foi a jovem que na semana passada também sofreu estupro praticado em grupo na cidade de Bom Jesus do Piauí – município vizinho de Castelo do Piauí, onde no ano passado outra jovem morreu e outras três foram barbarizadas em episódio similar. Como a menina Araceli, cujos estupradores nunca foram punidos 43 anos depois do crime contra uma criança de 8 anos.
A C.P., sua família e seu filho somos obrigados a pedir desculpas por sermos essa sociedade que massacrou sua dolorida vivência nesta realidade. Mas, além disso, a sociedade brasileira, o Estado e a mídia em particular têm a obrigação de colocar essas discussões verdadeiramente no centro do debate midiático e de políticas públicas. É preciso dar um basta à cultura do estupro, que vitima uma mulher a cada 11 minutos no Brasil, segundo os registros divulgados pelo 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, sendo que se estima que apenas 35% dos casos sejam registrados.
Luciana Araújo é jornalista na Agência Patrícia Galvão.