Tolerância zero contra o assédio sexual

07 de abril, 2017

Caso de abuso sexual praticado pelo ator José Mayer contra uma subordinada mostra como as celebridades se sentem intocáveis e imunes a qualquer tipo de punição. Até que a vítima conseguiu reagir e a solidariedade feminina mostrou a sua força

Ele vivia no olimpo, trabalhando há 37 anos na maior emissora de tevê da América Latina, com 25 novelas no currículo, a maioria delas atuando como protagonista. Era o galã viril, o pegador, o garanhão. Por anos a fio, os brasileiros se acostumaram a ouvir comentários sobre como o ator José Mayer contracenava com as mais belas atrizes do elenco. A cada trama, formava par romântico com duas, três intérpretes. A fama era tanta que ele virou até motivo de piada nos humorísticos da casa. Confortável no seu status de estrela global, considerado um dos artistas mais queridos do País, José Mayer pairava acima do bem e do mal, onde costumam ficar a maioria das super celebridades. Até que, na sexta-feira 31 de março o depoimento da figurinista Susllem Tonani, 28 anos, mostrou a face de assediador contumaz do ator de 67 anos, deflagrou uma onda de indignação feminina e culminou com a decisão da Rede Globo de suspender um de seus principais atores por tempo indeterminado. Um caso chavão e muito didático: o artista poderoso e intocável, acostumado a ter seus desejos prontamente satisfeitos, persegue violentamente a subalterna, que, intimidada, tem dificuldade de emitir qualquer tipo de reação e sofre quieta por meses, até não aguentar mais. “Também chama a atenção a presunção de impunidade, pois ele ofendeu a figurinista na frente de testemunhas, sem preocupação com uma possível punição”, afirma Daniela Marques Grelin, gerente do Instituto Avon.

(IstoÉ, 07/04/2017 – acesse no site de origem)

Mobilização

Ainda não se sabe há quantos anos, nem quantas mulheres o artista mineiro assediou. Mas com certeza ele não é o único. Na semana passada, a atriz e roteirista da Globo Alessandra Colasanti lançou um manifesto no Facebook sobre a perseguição que as mulheres sofrem nos bastidores. “Imagina se rolasse a campanha #meu primeiroassedionotrabalho. Ou algo semelhante. Não ia sobrar pedra sobre pedra. Eu já fui assediada por diretores tanto no teatro quanto na Rede Globo. Quem nunca?”, disse Alessandra no post que até a manhã de sexta-feira 7 já tinha 378 curtidas e 65 comentários, vários deles com relatos de abusos. A reação ao caso José Mayer se deu também por causa da mobilização de funcionárias da Rede Globo, que inundaram as redes sociais com a hashtag “mexeu com uma, mexeu com todas”. Mas nem a suspensão, nem o pedido de desculpas do ator, que inicialmente havia negado o abuso, e depois divulgou uma carta assumindo que “havia errado”, são suficientes. “Tocar uma pessoa com fins libidinosos é crime de estupro desde 2009 (ele colocou a mão na vagina da figurinista)”, diz a advogada Marina Ganzarolli, da Rede Feminista de Juristas. “A prisão está cheia de gente arrependida. Pedir desculpas é da esfera pessoal dele. Não é porque é um ator global que tem de ser tratado diferente: José Mayer cometeu um crime.”

Leia mais:
Caso Zé Mayer: “não foi brincadeira. Foi violência de gênero”, afirma defensora (Estilo/UOL, 05/04/2017)
Caso Zé Mayer: “Criação machista” pode ser justificativa para assédio? (Estilo UOL, 07/04/2017)
Assédio não afeta só a vítima, mas todos no trabalho, diz especialista dos EUA sobre caso José Mayer (BBC Brasil, 06/04/2017)
O feminismo da Veja? “Precisamos falar dos feminismos em absolutamente todos os lugares” (#AGORAÉQUESÃOELAS/Folha de S.Paulo, 10/04/2017)
Leandra Leal escreve sobre a Primavera das Mulheres: ‘O machismo é uma tragédia que mata’, por Ancelmo Góis (O Globo, 09/04/2017)

Na mesma semana em que explodiu o caso na emissora, outro episódio de machismo e violência envolvendo celebridades teve mais um capítulo. A polícia de Minas Gerais indiciou o cantor Victor Chaves, da dupla Victor e Leo, por agredir a sua mulher, Poliana Bagatini Chaves, que está grávida. O ato de selvageria foi flagrado por câmeras de segurança do edifício onde mora o casal, em Belo Horizonte, após a vítima voltar atrás na denúncia. Assim como José Mayer, Chaves tentou se justificar , por meio de sua rede social. Disse que não machucou ninguém, mas que praticou um ato de desespero, para conter uma pessoa que estava completamente fora de si para pegar uma criança de um ano (o casal já tem uma filha). E completou afirmando que, pela filha, faria tudo de novo. Poliana, que foi à delegacia denunciar o marido, mas voltou atrás logo em seguida, segue calada. E isso, infelizmente, é comum nos casos de violência doméstica. “Não há acolhimento, nem segurança para as vítimas denunciarem . Para se ter uma ideia, até as delegacias de mulheres fecham nos finais de semana”, afirma Juliana de Faria, fundadora da ONG Think Olga e uma das propulsoras do movimento #meuprimeiroassedio, que sacudiu as redes sociais e o País em 2015.

“Chama atenção a presunção de impunidade, pois ele ofendeu a figurinista na frente de testemunhas, sem se preocupar com uma possível punição” Daniela Grelin, Instituto Avon

Juliana cita outros casos de assédio envolvendo pessoas famosas, como os atores americanos Bill Cosby e Ben Affleck e o presidente dos Estados Unidos Donald Trump, e lembra que estamos falando de homens muito poderosos, em situação de extremo conforto. “Eles pensam que podem fazer tudo, porque passarão incólumes.” Mas a força da internet está mudando o curso dessa história, acredita a criadora do Think Olga. Se o abuso sexual chega a culpabilizar a vítima, a ponto de a violência se transformar num relato de extrema solidão e dor, as redes sociais tiram o crime debaixo do tapete e o fazem ressoar. “A solidariedade é um dos mais poderosos vetores da transformação para uma cultura que valoriza e respeita as mulheres”, afirma Daniela, do Instituto Avon. Segundo ela, a solidariedade das atrizes e funcionárias da Globo foi um dos catalizadores da mudança de atitude por parte da empresa. “Lembre-se que a figurinista relatou que já havia denunciado o assédio internamente ao longo de oito meses, sem que a emissora respondesse com a punição agora aplicada. Isso aponta para uma tremenda janela de oportunidade para as mulheres.”

Não foram só as funcionárias da Globo que se manifestaram em favor de Susllem Tonani. A hashtag “mexeu com uma, mexeu com todas” inundou as redes sociais e as rodas de conversa de todo o País, num movimento crescente e constante. A divulgação e o repúdio a um ato de violência são fundamentais na caminhada para uma sociedade menos machista e mais igualitária. Porém o Brasil está muito longe disso. Pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, realizada pelo Datafolha, a pedido do Fórum de Segurança Pública, detectou que 6,9 milhões de brasileiras já foram assediadas no local de trabalho. No mundo não é diferente. Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostraram que duas em cada cinco mulheres já foram molestadas em seu ambiente profissional. Esse abuso é muito comum exatamente porque implica em uma assimetria de poder. O assediador, com base em sua posição, acha possível desrespeitar os direitos da mulher e esta, por sua vez, se sente impotente e desamparada, sob a ameaça de retaliação que normalmente acompanha esse tipo de abordagem, implícita ou explicitamente. E essas situações acontecem em todos os locais de trabalho, em todas as profissões, em maior ou menor grau.

“Em fevereiro de 2017, dentro do camarim da empresa, na presença de outras duas mulheres, esse ator, branco, rico, de 67 anos, que fez fama como garanhão, colocou a mão esquerda na minha genitália” Susllem Tonani, 28 anos, figurinista

O agressor também pode ser qualquer um. O colega que senta ao lado, o jovem simpático e sorridente, o chefe condescendente. Os números de estupro no Brasil mostram que esse crime pavoroso não tem classe social, etnia, escolaridade. Acontecem 527 mil por ano, segundo dados oficiais. Estatísticas também oficiais apontam que ocorre 1 a cada 11 minutos no País. Mas, se levarmos em conta que apenas 10% dos crimes sexuais são reportados, esse índice cresce assustadoramente. E, como aponta a advogada Marina Ganzaroli, a violência sexual é a pontinha do iceberg. “Duas mulheres apanham a cada 5 minutos no Brasil, somos o quinto no mundo em crimes de feminicídio, nos bombardeiam com imagens de mulheres hipersexualizadas e convivemos com diferenças gritantes no mercado de trabalho.”

Imersos num país extremamente atrasado e machista, eclode o grito das mulheres, que deve bradar cada vez mais alto. O exemplo de Susllem Tonani mostra isso. Diz um trecho de sua carta: “Sinto no peito uma culpa imensa por não ter tomado medidas sérias e árduas antes, sinto um arrependimento violento por ter me calado, me odeio por todas as vezes em que, constrangida, lidei com o assédio com um sorriso amarelo. E, principalmente, me sinto oprimida por não ter gritado só porque estava em meu local de trabalho. Dá medo, sabia? Porque a gente acha que o ator renomado, 30 e tantos papéis, garanhão da ficção com contrato assinado, vai seguir impassível, porque assim lhe permitem, produto de ouro, prata da casa. E eu, engrenagem, mulher, paga por obra, sou quem leva a fama de oportunista. E se acharem que eu dei mole? Será que vão me contratar outra vez?Tenho de repetir o mantra: a culpa não foi minha. A culpa nunca é da vítima. E me sentiria eternamente culpada se não falasse. Precisamos falar. Precisamos mudar a engrenagem.”

Feminista há décadas, a socióloga Jacqueline Pitanguy, coordenadora da ONG CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação) elogia a coragem da figurinista. “Ela conseguiu romper, após meses de sofrimento, com ele testando todos os seus limites.” Para Jacqueline, o gesto da jovem, e a solidariedade feminina que se seguiu, é motivo de celebração. Que a força de Su Tonani e a resposta feminina não parem de incomodar. Como disse a própria figurinista: “Meu assédio não vai ser embrulho de peixe. Vai é embrulhar o estômago de todos vocês por muito, muito tempo.”

Não passarão
Casos envolvendo famosos e atos de machismo e violência

Protegidos sob o status de estrelas, muitos famosos se sentem no direito de agir e falar como bem entendem, sem se preocupar com possíveis punições legais. Mas a opinião pública pode ser mais implacável até que a própria Justiça. Que o diga o apresentador do programa vespertino global Video Show, Otaviano Costa. Ao ver uma cena do reality show BBB em que uma participante questiona um rapaz, perguntando se ele precisa colocar o dedo na cara das mulheres, Costa comentou: “‘Precisa sim, a gente gosta, ué. É bom agitar.” As redes sociais foram à loucura e ele teve de pedir desculpas pelo comentário machista no mesmo programa, que é transmitido ao vivo. O caso Victor Chaves, que já provocou o indiciamento do cantor e causou o afastamento dele da segunda edição do The Voice Kids, ainda está sob investigação. Mas a imagem do artista já está maculada. Que o diga o ator Dado Dolabella. Conhecido por namorar belas atrizes em série, ele foi denunciado por Luana Piovani em 2008 após agredi-la em uma boate, a ponto dela ter que imobilizar os braços. E hoje em dia é mais conhecido por suas confusões do que por seus antigos trabalhos.

49% das mulheres afirmaram que já presenciaram ou ficaram sabendo de alguma colega que foi vítima de ato sexual indesejado em relação não consentida

28% das mulheres afirmam que já sofreram algum ato sexual indesejado em relação não consentida

26% das mulheres já foram vítimas de abordagem ameaçadora com conotação sexual

42% dos homens acreditam que a violência sexual acontece porque a mulher provoca

15% foram seguidas por um homem em locais por interesse sexual

69% das mulheres atribuem a violência sexual ao machismo

73% da violência sexual é praticada por alguém que a vítima conhece

18% ouviram comentários ou cantadas que as deixaram com medo

78% das mulheres consideram violência sexual ter relação sem preservativo porque o parceiro não aceita

17% foram encoxadas ou tiveram seu corpo tocado

17% foram beijadas à força

Débora Crivellaro

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