Um projeto de lei quer alterar a Lei Maria da Penha, criada para combater violência de gênero contra mulheres, para ampliar seu alcance e incluir homens vítimas de violência doméstica e familiar.
O PL 4954/2025 foi proposto pela deputada federal Júlia Zanatta (PL-SC) em 3 de outubro. Na justificativa, a parlamentar catarinense alega que o projeto pretende “corrigir uma lacuna de proteção no ordenamento jurídico brasileiro”. Argumenta ainda que homens podem ser vítimas e que, em muitos casos, ficam “sem amparo legal específico para medidas protetivas de urgência”. Nas redes sociais, Zanatta afirmou que “foi eleita por homens e mulheres”, que não não fará “mais para um ou para outro” e que é contra “segmentar a sociedade”.
Além de ser considerado um retrocesso e abrir precedente de violação contra os direitos das mulheres, juristas contestam o argumento de que existe uma brecha jurídica a ser preenchida em favor dos homens. Embora não exista um mecanismo específico para proteger homens em caso de violência doméstica e familiar, isso não significa que eles não não estão sujeitos à proteção.
“Existe o Código Penal, que prevê o enfrentamento de outras formas de violência. Também existem políticas públicas de segurança que olham para essa questão. Então os homens podem recorrer a outros mecanismos jurídicos que não o da Lei Maria da Penha.”
– Letícia Ueda Vella, advogada
Existem instrumentos legais capazes de proteger qualquer pessoa, incluindo medidas protetivas urgentes. O Código Penal e o Código de Processo Penal, por exemplo, contêm dispositivos de tutela cautelar. É o caso do artigo 319 do Código de Processo Penal, que prevê medidas protetivas diversas da prisão, afastamento do lar, proibição de contato e fiança, entre outros.
O Juizado Especial Criminal (Lei 9.099/95) também pode conceder medidas protetivas urgentes e tutelas de urgência em casos de conflito familiar, independentemente de gênero. “Ou seja: não há vazio legal, há apenas má compreensão ou má-fé política. O que falta é vontade de aplicar corretamente o que já existe, não criar uma lei que destrói a finalidade de outra”, avalia a advogada criminalista e familiarista, Tatiana Inácio Porto Bucci.
Vale pontuar que, embora o ordenamento jurídico brasileiro tenha instrumentos para proteger qualquer pessoa, independentemente de gênero, existia uma lacuna para corrigir a desigualdade histórica contra mulheres, que estatisticamente sofrem mais violência doméstica: só entre janeiro e agosto deste ano, a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 recebeu 72,5 mil denúncias de violência contra mulheres praticadas por pessoas do sexo masculino. O número de denúncias de violência perpetrada por mulheres contra homens, no mesmo período, foi de apenas 31. Por isso, a Lei Maria da Penha é considerada também uma política pública de gênero, não apenas uma norma penal.
A Lupa entrou em contato com a assessoria de imprensa da deputada Júlia Zanatta, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem. A matéria será atualizada em caso de resposta.
PL pode abrir precedente de violação dos direitos das mulheres
Ao prever a ampliação da Lei Maria da Penha para homens, que foi criada especificamente para combater violência de gênero contra as mulheres, há risco de descaracterização e desvirtuamento da finalidade protetiva da norma. Segundo especialistas em direito e quem trabalha com acolhimento a vítimas de violência doméstica, o PL 4954/2025 pode gerar consequências graves, entre elas a perda do reconhecimento da vulnerabilidade específica da mulher.
“A Constituição Federal garante igualdade material, não apenas formal. Isso significa tratar desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades. Aplicar a Maria da Penha a homens seria ignorar essa desigualdade estrutural, fingindo que a violência de gênero atinge ambos os lados da mesma forma o que é falso sociologicamente e criminologicamente.”
– Tatiana Inácio Porto Bucci, advogada criminalista e familiarista
A Lei Maria da Penha foi sancionada em 2006 (Lei 11.340), após anos de luta de movimentos de mulheres e dos direitos humanos para combater a violência doméstica. Leva o nome da biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que foi vítima de violência doméstica e duas tentativas de feminicídio pelo marido. “Essa lei reconhece que a gente não tem mecanismos efetivos para proteger mulheres em situação de violência, entendendo que a violência de gênero parte do pressuposto de que há uma desigualdade de gênero colocada dentro da sociedade, ou seja, que submete mulheres a uma violência específica cometida em geral dentro do ambiente doméstico familiar”, analisa a advogada Letícia Ueda Vella, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.
Ainda na análise de Vella, a violência praticada contra um homem já é pautada pelo que está previsto no Código Penal e por políticas de segurança pública. “A gente pode pensar em formas de prevenção e de combater a violência contra homens, mas não desvirtuando uma lei de proteção contra violência baseada no gênero, ou seja, na desigualdade entre homens e mulheres”, pontua.
Na mesma linha, a criminalista Tatiana Inácio Porto Bucci enfatiza que o foco da Lei Maria da Penha é o gênero, não o simples fato biológico de ser mulher ou homem. “Estender a lei para homens descaracteriza sua natureza jurídica, deturpa sua finalidade e apaga o recorte de gênero que motivou sua criação. Seria o mesmo que querer aplicar o Estatuto da Criança e do Adolescente a adultos sob o argumento de que ‘adultos também sofrem violência’. É um absurdo técnico e político”, avalia.