O STF e o combate à violência contra a mulher, por Ana Beatriz Robalinho, Nathália Mariel F. de S. Pereira e Manuellita Hermes

12 de setembro, 2025 Jota Por Ana Beatriz Robalinho, Nathália Mariel F. de S. Pereira e Manuellita Hermes

O (re)despertar de um Tribunal Constitucional

A violência contra a mulher é endêmica e mostra poucos sinais de arrefecimento. O direito luta para acompanhar a realidade: a proteção robusta prometida na Constituição depende, na prática, da aplicação sistemática de leis e atos normativos complexos que, ao entrarem em conflito, geram lacunas capazes de deixar as vítimas da violência de gênero desamparadas.

De quantas maneiras uma mulher pode sofrer violência? A violência física, talvez a mais palpável e fácil de identificar, deixa marcas invisíveis e gera consequências inesperadas. Uma mulher agredida pode ter que se afastar do trabalho – nesse caso, ela terá direito a um salário custeado pelo INSS, como em caso de doença?

Uma mulher vítima de violência doméstica, em outro país, pode precisar fugir com seus filhos, para escapar das agressões e para protegê-los de um ambiente profundamente nocivo – ela pode ser acusada de sequestro internacional, e seus filhos devolvidos ao agressor?

E se o agressor não for um marido ou companheiro, ou um pai ou tio ou um irmão? E se a violência fugir do ambiente familiar e afetivo? Nesse caso, poderá a vítima gozar do mesmo arcabouço de proteções da mulher que é vítima no contexto de um relacionamento familiar ou afetivo? E se a violência não for física, mas patrimonial? Está uma mulher sujeita a ver seu agressor protegido da persecução penal?

Todas essas perguntas têm – ou tiveram – respostas positivas, que ilustram as lacunas na proteção da mulher contra os diversos tipos de violência. A Lei Maria da Penha, resiliente aos 19 anos recém-completos, oferece proteções robustas, mas encontra limites na natureza da relação entre vítima e agressor, e no conceito de violência de gênero.

O Código Penal, com sua redação de 1940, ainda prevê isenção de pena para o cônjuge que pratique crimes patrimoniais na constância do casamento. A lei prevê proteção previdenciária em situações em que há incapacidade para o trabalho provocada por alguma lesão, mas é silente sobre o afastamento causado por violência doméstica. E a Convenção de Haia determina repatriação imediata dos filhos subtraídos do país de residência por um dos pais, sem autorização do outro.

Mas o Supremo Tribunal Federal tem se mostrado disposto a mudar essa realidade, numa sequência notável de precedentes recentes. Em fevereiro, o Tribunal estendeu a aplicação das proteções da Lei Maria da Penha a relações entre casais homoafetivos compostos por homens e a mulheres travestis ou transexuais.

A decisão foi tomada no MI 7452, de autoria da Associação Brasileira de Famílias HomoTransAfetivas (Abrafh), que questionava a demora do Legislativo em aprovar uma lei específica contra a violência doméstica ou familiar que proteja homens gays e mulheres travestis e transexuais.

No voto condutor do ministro Alexandre de Moraes, o Supremo reconheceu que a ausência de norma que estenda a proteção da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos masculinos e às mulheres transexuais e travestis inviabiliza o gozo de direito fundamental por tais minorias e, com base na a proibição de proteção deficiente oriunda do princípio da proporcionalidade, entendeu pela necessidade de suprir a omissão.

Em agosto, duas outras pautas avançaram. No julgamento do Recurso Extraordinário 1520468 (Tema 1370 da Repercussão Geral), o tribunal já formou maioria para reconhecer que o INSS deve arcar com os salários de mulheres vítimas de violência, em gozo do afastamento de que trata a Lei Maria da Penha.

No voto do relator, ministro Flávio Dino, restou determinado que a expressão constante da Lei Maria da Penha (“vínculo trabalhista”) deve abranger a proteção da mulher visando à manutenção de sua fonte de renda, qualquer que seja ela, da qual tenha que se afastar em face da violência sofrida”, além de definir que “a prestação pecuniária decorrente da efetivação da medida protetiva prevista no art. 9º, § 2º, II, da Lei nº 11.340/2006 possui natureza previdenciária ou assistencial”. O julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Nunes Marques.

Na semana seguinte, o tribunal finalizou o julgamento de duas ADIs, 4245 e 7686, para afastar a possibilidade de repatriação imediata de menores em caso de violência doméstica. A tese formulada no voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, determinou que a aplicação da Convenção da Haia sobre os aspectos civis da subtração internacional de crianças, à luz do princípio do melhor interesse da criança (art. 227, CF), e que a exceção de risco grave à criança, prevista no art. 13 (1) (b) da Convenção, deve ser interpretada de forma compatível com o princípio do melhor interesse da criança (art. 227, CF) e com perspectiva de gênero, de modo a admitir sua aplicação quando houver indícios objetivos e concretos de violência doméstica, ainda que a criança não seja vítima direta.

Há, ainda, temas igualmente fundamentais aguardando o julgamento do STF. Também em agosto, o tribunal reconheceu a Repercussão Geral do Tema 1412, oriundo do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1537713, e cujo objeto é determinar se a Lei Maria da Penha pode ser estendida para proteger mulheres fora de relações domésticas e afetivas.

O caso chegou ao STF após decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que negou a aplicação de medidas protetivas a uma mulher ameaçada por razões de gênero em um contexto comunitário alegando que a aplicação da Lei Maria da Penha se restringiria a situações de violência contra a mulher ocorridas no âmbito de relações familiares, domésticas ou de natureza afetiva.

Para defender o reconhecimento da Repercussão Geral o relator, ministro Edson Fachin, alegou que as mulheres enfrentam obstáculos históricos e culturais no acesso à justiça, e que tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário demandam proteção e prevenção integrais das mulheres contra toda forma de violência.

Esse cuidado integral, fruto dos incontáveis esforços pela aplicação da perspectiva de gênero no sistema de justiça, é resultado da constatação de que a violência contra a mulher nos espaços público e doméstico constitui, conforme teorizado pela antropóloga Rita Segato, manifestações interconectadas de um mesmo sistema estrutural de dominação. Para Segato, não existe uma separação real entre a violência doméstica e aquela exercida no âmbito público, pois ambas operam dentro de um ciclo que se retroalimenta de violência de gênero, atravessando todos os espaços sociais.

Também chegou ao Supremo em julho uma segunda ADPF contra a previsão do Código Penal de isenção de pena em casos de violência patrimonial doméstica. A ADPF 1241 foi distribuída por dependência à ADPF 1185, de relatoria do ministro Dias Toffoli, que já propunha a mesma revisão dos incisos I e II do art. 181 do Código Penal, que preveem as escusas absolutórias em casos de crimes patrimoniais.

Em ambas as ações, os autores relembram que a Lei Maria da Penha protege a mulher contra a violência patrimonial, e que a falta de autonomia financeira dificulta que a vítima de violência se afaste do seu agressor. Na ADPF 1185, AGU e PGR já se manifestaram em favor do pleito.

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