Primeira ação de dano existencial por violência doméstica teve recurso julgado pelo tribunal de justiça de São Paulo, Artenira da Silva e Silva, Flávio de Leão Bastos Pereira, Edith Maria Barbosa Ramos e Lígia de Souza Cerqueira

09 de agosto, 2024 Diplomatique Por Artenira da Silva e Silva, Flávio de Leão Bastos Pereira, Edith Maria Barbosa Ramos e Lígia de Souza Cerqueira

O julgamento ocorreu no último 31 de julho, no Palácio da Justiça, Centro Histórico de São Paulo. A ação pode apontar para uma possibilidade alternativa para dar mais efetividade à Lei Maria da Penha em todo o território nacional

A Lei Maria da Penha chegou à maior idade. Diante deste marco histórico, havemos de refletir sobre a real efetividade das ações processadas e julgadas nas varas especializadas da mulher e da violência doméstica. Para tanto, consideramos fundamental mesclar a reflexão que se segue à voz de oitocentos entrevistadas, jurisdicionadas, que possuíram ou possuem medidas protetivas ou ações penais que tramitaram ou tramitam em oito cidades brasileiras localizadas nas cinco regiões do país.

Em tese, consideramos a violência doméstica contra mulheres a segunda maior pandemia do século XXI. A promulgação da Lei Maria da Penha, que está completando dezoito anos, retirou o referido tipo de crime da categorização de “crime de menor potencial ofensivo”, antes julgado nos juizados especiais criminais e definiu para a violência doméstica contra mulheres, em tese, o status de violação de direitos humanos. As afirmações anteriores precisam ser apresentadas com o termo “em tese” porque, na prática, apenas a título de exemplo, o país conta com menos de 300 varas especializadas e menos de 300 centros de referência de atendimentos à mulher. A reflexão inicial a ser feita pode até ser percebida como simplista: se o país possui mais de 5000 municípios, todos suficientemente importantes para terem o Poder Executivo e o Poder Legislativo neles implementados, constata-se que menos de um por cento deles possuem atendimentos especializados que possam socorrer as centenas de milhares de mulheres que diariamente precisariam demandar os serviços em tela. Nosso discurso está coerente com a prática de importância dada à violência doméstica contra a mulher, considerando-se as diferentes instituições no país que se ocupam do tema? Ao ampliarmos nossa reflexão para outros dados quantitativos e ao aprofundá-los com dados qualitativos, nós somos capazes de assumir o quanto esses dados preliminares nem chegam à ponta do iceberg do problema posto para reflexão?

As medidas protetivas de urgência são as ações mais acessadas pelas brasileiras vitimadas por violência doméstica e possuem alguns claros desafios que dificultam por demais sua efetividade. Não há perspectiva fática de fiscalização possível das medidas deferidas, em que pese o intenso afinco dos integrantes das patrulhas Maria da Penha, em diferentes cidades brasileiras, para tangenciar essa empreitada. A esmagadora maioria das medidas deferidas ficam limitadas ao rol meramente exemplificativo da lei, sem que, na prática, haja a possibilidade de se adequar a medida mais eficaz para o caso concreto, uma vez que a formação jurídica brasileira não prepara os integrantes do nosso sistema de justiça para pensar de modo inter ou transdisciplinar. As revogações ou extinções das medidas protetivas seguem ocorrendo sem que haja audiência de justificação, sem demanda de apuração técnica de risco e sem se oportunizar defesa ao agressor, o que, por sua vez, inviabiliza qualquer sentença de mérito das referidas ações. Ou seja, as referidas revogações e extinções podem seguir definindo risco de continuidade da violência, conforme observado no caso da magistrada carioca, a juíza Viviane, morta na frente de suas filhas em dezembro de 2019, após ela mesma ter demandado a revogação da medida deferida em seu favor. Ela foi atendida em sua demanda sem aferição do risco junto a seu agressor e sem audiência de justificação, tendo caminhado para a morte literal.

As ações penais integram o segundo tipo de ação ajuizado nas varas especializadas em todas as regiões brasileiras, constituindo minoria absoluta das ações em processamentos nas varas em questão. Os desafios que concorrem para sua ineficácia são muitos. Preliminarmente, precisamos destacar que as ações penais só permitem que se leve a juízo apenas um mero fragmento isolado de todo um ciclo de violência que, em geral, dura anos, antes que a mulher experimente um episódio agudo, capaz de levá-la a uma delegacia. Levar a juízo um fato isolado que aconteceu em um determinado dia e lugar não permite que os operadores do direito consigam avaliar, em cada caso concreto, a complexidade, a gravidade e o real poder de dano da violência doméstica contra mulheres. A experiência de vivenciar uma instrução de ação penal em âmbito de violência doméstica levou mais de 90% das mulheres entrevistadas a se sentirem “muito insatisfeitas”. Os principais sentimentos vivenciados pelas entrevistadas foram, na ordem referenciada por elas, do mais frequente ao quinto menos frequente: humilhação, revitimização, medo, culpa e desesperança. Dados disponibilizados pelo próprio Conselho Nacional de Justiça em seu sítio eletrônico consultável apontam para o fato de que maioria das ações culminam em prescrição, evidenciando que entre o boletim de ocorrência e a instrução penal anos se passam, sendo a fase entre o recebimento da denúncia e a instrução processual a mais morosa, conforme dissertação de direito defendida por Cláudio Guida e orientada pela professora Artenira Silva, junto à Universidade Federal do Maranhão. Quando sentenciadas, sem que tenham sido fulminadas por prescrições, as ações penais que geram condenações frequentemente esbarram na suspensão condicional dos processos. Ou seja, as ações penais em âmbito da Lei Maria da Penha predominantemente definem impunidade, o que, por sua vez, empodera os agressores e coloca as vítimas em situação de desesperança e desamparo. Não é ao acaso que mulheres indígenas, por exemplo, não se sentem sequer contempladas pela Lei Maria da Penha, integrando um movimento em redes sociais, acessáveis por um click, nomeado “para nós não”. Também não é ao acaso que o movimento pernambucano liderado por Karinny Oliveira, nomeado “Marias também têm força” reúne milhares de mulheres cujas ações tiveram fim revitimizante, de modo que elas se identificam como sobreviventes de violência institucional. Mais de setenta por cento das entrevistadas não queriam se separar de seus agressores, com eles possuíam ou possuem filhas e filhos menores de idade ou ainda explicitamente “não queriam que seus agressores fossem presos”, mesmo aquelas que possuíram ou possuem ações penais em curso. Diante dessa última realidade apontada profissionais de educação, de assistência, de saúde e principalmente do direito, por desconhecimento de como se instala um ciclo de violência doméstica e de todos os seus desdobramentos do referido ciclo frente à saúde psicológica da vítima, frequentemente não sabem como agir ou acabam por revitimizá-las, responsabilizando-as pela violência que sofrem.

Atualmente, pela Lei Maria da Penha, a violência contra a mulher é julgada apenas de forma fragmentada, via ações penais, que apenas levam a juízo crimes isolados e não o ciclo de violência familiar em sua integralidade, na prática, mascarando o poder de dano da violência familiar frente ao sistema de justiça brasileiro. Ela é uma lei híbrida, logo, permite que se avaliem outras possibilidades de ações que possam ser mais eficazes que as ações penais, permitindo que se leve a juízo a complexa e dolorosa integralidade do ciclo de violência sofrido. Com isso em mente e atentando para a necessidade de se enfrentar a impunidade é que se construiu um novo caminho jurídico que possa distinguir dano moral e dano psicológico de dano existencial, podendo o último configurar uma ação cível, já conhecida nacionalmente no âmbito do direito do trabalho, como sendo um sopro de esperança para mulheres vítimas de violência doméstica junto às varas especializadas brasileiras. Quantas mulheres ao longo dos anos de violência doméstica sofrida, mudam de emprego, abandonam emprego, mudam de cidade, são afastadas de familiares e amigos, a partir de campanhas incansáveis de desqualificação delas por seus agressores, são acometidas por síndrome de estresse pós traumático, comprometendo todos os seus papéis sociais, sendo reiteradamente instigadas ao suicídio? A ação de dano existencial por violência familiar pode abrir caminho para que centenas de milhares de brasileiras possam mudar essa realidade de impunidade e de fragmentação da violência doméstica junto às varas especializadas do país.

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