Projeto que obriga reeducação de agressores esbarra em falta de oferta de grupos e regras

17 de fevereiro, 2020

Apenas 14 unidades federativas têm programas voltados para homens que praticaram violência doméstica

(Folha de S.Paulo, 17/02/2020 – acesse no site de origem)

O Senado aprovou na última semana um projeto de lei que inclui no rol de medidas protetivas à vítima de violência doméstica a frequência do agressor a um centro de educação e recuperação e seu acompanhamento psicossocial. O texto aguarda sanção presidencial.

Mas, caso entre em vigor, a nova lei enfrentará obstáculos: a falta de oferta de grupos reflexivos para homens, de investimento e de diretrizes e regras comuns a todos.

Hoje, homens com medidas protetivas ou condenados (geralmente a regime aberto ou semiaberto) já podem ser encaminhados para centros do tipo por meio de decisões judiciais.

O que muda é que a penalidade ficará explícita no artigo 22 da Lei Maria da Penha. Caso não cumpra a medida, o homem poderá ser preso, explica o juiz Mário Filho, da vara de violência contra a mulher que atende os bairros de São Mateus, Guaianazes e Itaquera, na zona leste da capital.

Juntam-se a outros cinco incisos da Lei Maria da Penha que tratam de medidas protetivas de urgência, tais como a suspensão da posse de armas do agressor e o afastamento do homem do lar. Os juízes têm até 48 horas para conceder (ou não) a medida protetiva à vítima.

Para Filho, um dos méritos do projeto é obrigar o agressor ser reeducado no início do ciclo de violência, não apenas após a condenação. “A reincidência costuma ser maior no início, quando começam as agressões. É um momento crítico. A medida protetiva ajuda a estancar a violência”, diz.

O problema é que faltam centros do tipo no país, diz a juíza Teresa Santana, integrante da Comesp (coordenadoria para a mulher vítima de violência do Tribunal de Justiça) e juíza da 2ª Vara Criminal de Santo André: “Como política pública, a iniciativa não foi implementada de maneira universal.”

Mais importante do que fazer um projeto de lei sobre a questão seria regulamentar os centros, definindo como devem operar e qual a entidade responsável por eles, diz a socióloga e especialista em violência de gênero Wânia Pasinato.

A socióloga critica a falta de metodologia e de diretrizes de funcionamento comuns entre eles e a ausência de fiscalização e dados: “Não sabemos hoje no Brasil como as perspectivas de gênero e masculinidades são trabalhadas nesses grupos.”

Em 2008, houve uma proposta da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres para a implementação de serviços de responsabilização de agressores e definição de padrões, mas, segundo Pasinato, não foi adiante.

Os centros têm formatos variados: são operados por ONGs, criados por varas especializadas, feitos por coletivos. A carga horária e o número de encontros variam. Abordam temas como machismo e violência contra a mulher e costumam desenvolver atividades voltadas para a desconstrução de padrões tóxicos.

Sobre os centros, a Lei Maria da Penha se limita a dizer que “a União, o Distrito Federal, estados e municípios poderão criar e promover” centros de educação e reabilitação para agressores. Mas não é taxativa ao afirmar quem deve financiá-los e mantê-los.

Folha procurou os tribunais de Justiça de todos os estados e o Distrito Federal. Destes, 14 unidades federativas informaram ter programas voltados para agressores: BA, CE, DF, GO, ES, MA, MT, MS, PE, RN, RS, RR, SE e SC.

Em São Paulo, o primeiro grupo reflexivo para homens foi criado em 2009 pelo Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. Atende hoje homens denunciados por mulheres com base na Lei Maria da Penha. “Não é um curso, mas um grupo para pensar o que é ser homem, as mudanças na sociedade e propor um outro tipo de socialização masculina”, explica o psicólogo Tales Mistura.

Há notícias e vídeos, discussões e compartilhamento de experiências. Uma das atividades, por exemplo, consiste em escrever vantagens de ser homem e de ser mulher, seguida por um debate. No início, conta, os homens chegam “muito revoltados, com um sentimento de injustiça”.

Os participantes devem participar de ao menos 16 encontros de duas horas cada. Pode servir como atenuante de uma futura condenação. Cerca de 1.000 homens foram atendidos em 10 anos e a taxa de reincidência de violência foi de cerca de 5%.

A maior dificuldade, diz, é conseguir investimento para realizar o curso, realizado de forma voluntária. Eles têm uma parceria com o Fórum da Barra Funda.

Outro projeto no estado é o “Tempo de Despertar”, criado em 2014 pela promotora Gabriela Manssur. “É melhor forma de lidar com a violência contra a mulher, porque é uma questão comportamental. Mas não de forma isolada.”

O projeto virou política pública no município de Taboão da Serra e, no fim do ano passado, passou a ser apoiado pela prefeitura de São Paulo. Os encontros, oito no total, são realizados às terças e quintas no Fórum da Barra Funda (zona oeste da capital) durante duas horas.

Os participantes são acompanhados por um ano após a conclusão e diz que a taxa de reincidência entre eles foi de 2%. Espera que 700 homens participem do projeto neste ano —cerca de mil homens já foram atendidos.

Na última semana, a promotora foi a Brasília para sugerir ao governo a implementação da ação em todo o país. “É um projeto barato e que oferece um resultado satisfatório. Por que não adotar um programa nacional?”, diz. “Hoje, existem pouquíssimos.”

Há também o “E Agora, José?”, que atende a cidade de Santo André. Segundo o psicólogo Flávio Urra, coordenador da ONG que realiza o projeto, a fila de espera para participar dos encontros já chega a 50 pessoas (são atendidos 40 homens todas as quartas). São 26 encontros no total.

“Em todos os espaços que o homem frequenta, da escolinha até o bar, o machismo prevalece. Procuro criar um ambiente não machista, e provoca uma mudança neles: começam a falar de coisas que não falam em outros ambientes”, diz.

O perfil dos alunos varia. Tem desde os que cometeram agressão verbal até abuso sexual no transporte público. O mais velho tem 95 anos.

Se mantém à base de penas pecuniárias recebidas pelo fórum que são revertidas ao projeto. “O trabalho deveria ser transformado em uma política de segurança pública. Se faz, rompe com todas as violências: urbana, de torcidas, de trânsito. São todas fruto de machismo”, diz.

Caso a política pública comece a ser implementada desde a escola, o resultado pode ser ainda mais eficaz, diz a juíza Teresa Santana. “A violência doméstica é fundamentada em uma questão cultural. Se não muda, a tendência é que se repita.”

A Folha entrou em contato com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para saber se há alguma política pública nacional sobre a questão em desenvolvimento, mas não obteve retorno.

Por Júlia Zaremba

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