O recente voto do ministro Flávio Dino no RE 1.520.4681 (Tema 1.370) representa um marco relevante para a consolidação da perspectiva de gênero em processos que envolvam o impacto da violência doméstica familiar na vida profissional das mulheres brasileiras. O sistema de saúde brasileiro continua detectando que mulheres estão expostas a diferentes formas de violência e que suas próprias residências seguem sendo espaços inseguros para elas.
Significa dizer que casa é o lugar menos seguro para a mulher. De acordo com o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 64,3% dos feminicídios aconteceram na residência das vítimas. Em 2023, as agressões em contexto de violência doméstica aumentaram: foram 258.941 vítimas mulheres, o que indica um crescimento de 9,8% em relação à 2022. O número de mulheres ameaçadas subiu 16,5%: foram 778.921 as mulheres que vivenciaram essa situação e registraram a ocorrência junto à polícia. O aumento dos registros de violência psicológica também foi grande, de 33,8%, totalizando 38.507 mulheres. O crime de stalking (perseguição) também subiu, com 77.083 mulheres passando por isso, um aumento de 34,5%. No mesmo sentido caminharam os crimes sexuais com vítimas mulheres: o estupro (incluindo o estupro de vulnerável, que acontece quando a vítima é menor de 14 anos ou quando, sendo maior de 14 anos, não está em condições de consentir) cresceu 5,3% no período, vitimando pelo menos 72.454 mulheres e crianças do sexo feminino2.
Portanto, ao reconhecer […] a natureza jurídica previdenciária ou assistencial e a responsabilidade pelo ônus remuneratório decorrente da manutenção do vínculo trabalhista de mulheres vítimas de violência doméstica, quando necessário o afastamento de seu local de trabalho em razão da implementação de medidas protetivas por aplicação do art. 9º, § 2º, II, da lei Maria da Penha (lei 11.340/2006) […] o STF dá um passo importante em direção a necessidade de que não só a sociedade, mas o Estado, se responsabilizem pelo custo objetivo produzido pela violência contra mulher.
A decisão, também, abrange a manutenção do vínculo trabalhista da mulher em situação de violência doméstica e familiar, que está previsto no inciso II, do § 2º, do art. 9º da lei Maria da Penha.
1. Interrupção do contrato de trabalho
O art. 9º, § 2º, II, da lei Maria da Penha garante a manutenção do vínculo trabalhista quando necessário o afastamento da vítima de violência doméstica e familiar. Contudo, sempre houve controvérsia acerca da natureza jurídica dessa medida (se o afastamento se daria por suspensão – sem pagamento remuneratório, ou por interrupção – com pagamento remuneratório – do contrato de trabalho)
No TST, em posição restritiva, as decisões atribuíam efeitos suspensivos aos contratos, no entanto, em 2019, o STJ, no julgamento do REsp 1.757.775/SP3, atribuiu efeitos de interrupção ao afastamento, com equivalência ao auxílio doença no INSS. Em 2023, um projeto de lei, visando a extensão dos benefícios para mulheres fora do regime geral (através da LOAS) foi encaminhado pelas advogadas que subscrevem este artigo, junto ao gabinete da dep. Federal Denise Pessoa4.
Agora, em 2025, retomada a discussão pelo STF, o ministro Flávio Dino, associa vulnerabilidade, hipossuficiência e impactos da violência sobre a mulher com a necessidade de proteção estatal. Negar renda nesse cenário faz com que a vítima retorne ao ciclo da violência.
2. Garantia de salário e benefício por incapacidade
A decisão se pautou em importantes controvérsias, que diga-se, permeiam as questões que envolvem trabalho e direito das mulheres, debatidas no presente caso: (i) a responsabilidade pelo ônus remuneratório decorrente da manutenção do vínculo trabalhista de mulheres vítimas de violência doméstica, quando necessário o afastamento de seu local de trabalho, por até seis meses, em razão da implementação de medidas protetivas por aplicação do art. 9º, § 2º, II, da lei Maria da Penha (lei 11.340/2006); e (ii) a competência do juízo criminal para a fixação da medida protetiva disposta no art. 9º, § 2º, II, da lei 11.340/2006, inclusive no que concerne à determinação dirigida ao INSS para que garanta o afastamento remunerado mediante a concessão de benefício análogo ao auxílio-doença (p. 5 do acórdão).
Reforçado o entendimento pela interrupção do contrato de trabalho, o voto reconhece que o afastamento laboral em razão da violência doméstica se caracteriza como uma incapacidade laboral momentânea da mulher. Considerando que o caso analisado diz respeito a uma trabalhadora urbana, regida pelas regras da CLT e vinculada ao regime geral de Previdência Social, a decisão reconhece o direito da trabalhadora ao pagamento de salário nos primeiros 15 dias e, após, ao percebimento de benefício previdenciário pelo INSS, nos moldes do benefício por incapacidade temporária.
Além disso, a decisão exemplifica que a garantia da verba alimentar da mulher nessa situação deverá observar o vínculo trabalhista e previdenciário ao qual ela está submetida. No caso de trabalhadoras domésticas, autônomas e seguradas previdenciárias facultativas, a responsabilidade do pagamento é integralmente do INSS.
O ministro também afastou a exigência de carência para o benefício previdenciário, equiparando a situação a infortúnio de natureza acidentária. Também elucidou que não se trata de requerimento ou ação de benefício previdenciário ordinário, não sendo caso de atuação do INSS como parte ré, mas sim hipótese de medida cautelar, válida por no máximo 6 meses, na qual o INSS é requisitado a cumprir determinação judicial de pagamento de verba alimentar.
Sob a ótica de gênero, reconhece-se que a violência doméstica impacta diretamente a capacidade laboral da vítima, exigindo resposta estatal imediata da Previdência Social, a qual é requisitada a compor o conjunto integrado de medidas de combate à violência doméstica e familiar e de proteção à mulher. Trata-se de um passo importante na compreensão da violência como causa legítima de afastamento previdenciário, sendo uma contingência social que afeta as trabalhadoras.
3. Benefício assistencial
Para as mulheres sem vínculo formal de emprego e sem qualidade de seguradas do INSS, dentro da lógica indicada pelo ministro Flávio Dino, remanesce a necessidade de proteção do Estado pela via assistencial. Nessa hipótese, o Juizado da Violência Doméstica deverá analisar a vulnerabilidade financeira e determinar a concessão de benefício eventual à analogia do Benefício de Prestação Continuada previsto na LOAS.
Este é o principal ponto de inovação do voto, já que se está admitindo que mulheres afastadas de atividades informais ou de trabalhos domésticos não remunerados também fazem jus a garantia da verba alimentar. No Brasil, 76,4% das mulheres empregadas domésticas, não têm carteira de trabalho anotada; 65,7% não tem contribuição previdenciária5. Essa interpretação reconhece a condição de trabalhadoras que, embora desprovidas de contrato formal e contribuição previdenciária, são dependentes de sua renda mínima para sobrevivência.
A aplicação da perspectiva de gênero, aqui, consiste em valorizar o trabalho feminino invisibilizado e admitir a vulnerabilidade econômica como fator de risco que perpetua a violência.