Violência durante a infância contribui para violência na fase adulta

19 de maio, 2016

(Agência Brasil, 19/05/2016) A constante exposição à violência urbana durante a infância e a adolescência contribui para a reprodução da violência na fase adulta, inclusive doméstica e de gênero. É o que conclui o estudo Masculinidade e Não Violência no Rio de Janeiro, publicado hoje (19) pelo Instituto Promundo em parceria com o programa Global Safe and Inclusive Cities (Cidades Seguras e Inclusivas, em tradução literal).

Foram entrevistadas 1.151 pessoas entre 2013 e 2016, de 18 a 59 anos, em duas áreas da cidade do Rio de Janeiro: a sul, onde as taxas de homicídio são mais reduzidas, e a norte, onde essas taxas são mais elevadas. Na etapa qualitativa foram feitas 56 entrevistas com homens e familiares, de 18 a 56 anos, que tomaram trajetórias de não violência, incluindo ex-traficantes, policiais, ativistas e as respectivas parceiras.

A violência dentro de casa aparece no estudo como fator crucial para a perpetração da violência na fase adulta. Mais de 64% dos homens que declararam ter sido expostos à violência doméstica durante a infância tinham praticado violência nas relações íntimas, 70% tinham praticado violência física na rua e quase 30% haviam feito uso de violência sexual. As entrevistadas expostas à violência doméstica eram significativamente mais propensas a usar a violência urbana física e verbal em alguma ocasião, aponta a pesquisa.

Mais de 80% dos homens haviam sofrido pelo menos duas situações de violência antes dos 18 anos. Na fase adulta, o uso da violência urbana foi cometido pela maioria: cerca de 65% dos homens da região sul e 57,3% da norte. A violência contra parceiras íntimas, violência sexual e pública foram mais praticadas nos bairros com maiores índices de homicídio. Mais de 46% dos homens que moravam na região norte e 38,7% dos que moravam na região sul relataram ter usado violência contra pessoas íntimas. Na zona norte, 17% dos homens relataram ter perpetrado violência sexual contra uma mulher que não a sua parceira. Na zona sul esse percentual foi 9,2%.

Trajetórias de não violência

Um dos entrevistados, o ativista Jailson de Souza e Silva, fundador do Observatório de Favelas, disse que ele e os quatro irmãos conseguiram romper com a violência vivida em casa. “Meu pai quando bebia era muito agressivo, violento. Era militar e só andava com revolver e punhal. A resposta de todos nós foi de romper com essa trajetória de violência, somo cinco homens muito pacíficos”, disse. “Agora, éramos uma família muito unida, estruturada. Minha mãe, tia e avó souberam lidar com essa situação [de violência] de uma forma não violenta. Nasci em favela, mas quando era garoto, na década de 1960, Mangueirinha [zona norte], não era um espaço marcado pela violência e isso faz diferença”.

Para Jailson, a naturalização da violência nas favelas, com altos números de violência, contribui para  reproduzir e reforçar a violência dentro e fora de casa. “Muitas ambiente naturaliza determinadas manifestações agressivas, as pessoas acabam incorporando-a achando que aquilo faz parte do cotidiano. O machismo, preconceito contra nordestinos, racismo são outras formas de violência naturalizadas em alguns territórios”.

Violência e Tráfico

A vulnerabilidade e a precariedade da infância, bem como situações de violência que sofreram, eram os elementos chave que explicaram a entrada do tráfico na vida dos entrevistados. Um dos entrevistados, não identificado por motivos de segurança, contou que a perda dos pais foi fundamental para a entrada no tráfico. “Com 11 anos perdi minha mãe, com uns 14 ou 15 perdi o meu pai, daí já conheci o tráfico. Já influência de estar fumando maconha, de estar com certos amigos entre aspas. Aí meu pai morreu e eu fui indo, indo, indo, indo e quando eu fui ver eu estava envolvido. Sem pai, sem mãe, sem trabalho, o jeito era ir para o tráfico”.

Um morador da favela do Vidigal, zona sul, descreveu como as crianças são seduzidas pelo tráfico devido à proximidade com os adultos envolvidos no crime. “Você está ali, conversando, jogando bolinha de gude ou soltando pipa, ou qualquer outra coisa, com um monte de moleques. Aí passa aquele bonde de 40 cabeças, com fuzis para o alto, com muito dinheiro. ‘E aí, vai ali comprar uma pizza pra gente’, ‘O troco é seu.’ Pronto, você ganhou o moleque”, disse o entrevistado. “Uma vez ou outra, ‘qual é? Quer dar um tiro?’, ‘não’, ‘quer dar um tiro?’, Aí você, pá, pá, pá. Pô, é emocionante. Qualquer criança, você se sente o Rambo. Esse bandido também é vitima e um dia fizeram isso com ele”.

Morador do Complexo da Maré, identificado como H, de 23 anos, falou do fascínio que filhos de traficantes exerciam por terem o que a maioria dos meninos da comunidade não tinha. “A gente para poder ter umas dez bolinhas de gude, a gente tinha que ficar uma semana pedindo bolinha de gude emprestada para tentar jogar e conquistar as outras. Os moleques chegavam com garrafas de bolinha de gude”, lembrou. “’Está com uma garrafa de bolinha de gude! Ele é filho de ciclano, é irmão de ciclano’. Claro um moleque de 7, 10 anos, com uma garrafa de bolinha de gude ele é o bam-bam-bam”.

A paternidade surgiu como fator central de mudança dos entrevistados que declararam ter seguido trajetória de não violência.  Outros fatores para a mudança citados foram: conexão a círculos de convivência ou apoio social, níveis de escolaridade dos homens foram alguns fatores citados para a mudança, entre outros. Os policiais entrevistados disseram que procuraram ajuda psicológica nos serviços de apoio da Polícia Militar.  Ex-traficantes entrevistados disseram que o movimento de mudança para atitudes não violentas foi influenciado pela ajuda de organizações não governamentais na assistência na saída do tráfico de drogas, por pressão ou apoio familiar para o abandono do tráfico ou por eventos e riscos traumáticos, como morte de amigos.

Uma das coordenadoras da pesquisa, Alice Taylor,  disse que uma das novidades do estudo é apontar casos de sucesso na prevenção, que combinam atividades socioeducativas e apoios psicológicos a homens jovens nos territórios marcados pela violência. “Muito se gasta com policiamento e políticas repressivas, mas são muito poucos os recursos para incentivar e apoiar as mediações de conflito entre jovens, ajudá-los a sair do tráfico, por exemplo. Há projetos no Brasil que oferecem a oportunidade de homens de falar sobre a violência sofrida na infância e na adolescência e muitos desses homens têm conseguido traçar uma trajetória de não violência ou de menos violência”, disse.

Alice também destacou a importância de se trabalhar nas escolas o questionamento das normas de gênero  que legitimam posturas violentas associadas à masculinidade. “Programas nesse sentido tem tido resultados positivos na diminuição de atitudes favoráveis a violências. Nossas experiências e diversas pesquisas mostram que é possível ”, disse. “Políticas sobre violência urbana e segurança pública geralmente têm relação com intervenções policiais e mais policiamento, que são importantes, mas precisamos olhar para além da polícia e promover estratégias mais eficazes”.

Flávia Villela; Edição: Fábio Massalli

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