(O Globo, 14/12/2014) Vez por outra, aqui e acolá, vêm a público uma pesquisa, um relatório, uma data a denunciar o endêmico ambiente de tolerância à violência de gênero no Brasil. Na semana passada, três episódios foram mais reveladores do desolador cenário que páginas e páginas de produção acadêmica, registros e mais registros de ocorrências policiais. Atos isolados, acomodaram no mesmo cesto de preconceito e injustiça um deputado federal, uma fotomontagem de gosto deplorável numa rede social e um autodeclarado serial killer. Um a um, eles lembraram ao país que é permitido ameaçar, ofender e executar mulheres.
Nos dicionários, merecer é definido como “ser digno de”. Noutra explicação, o verbete significa “estar, por qualidades ou conduta, no direito de obter ou passar por algo”. Foi o verbo escolhido por Jair Bolsonaro (PP-RJ) para insultar a também deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), durante sessão no plenário da Câmara. Reeleito em 2014 para o sétimo mandato — teve 464 mil votos, recorde no estado —, o parlamentar declarou à ex-ministra dos Direitos Humanos, diante de seus pares, de microfones e câmeras: “Eu não ia estuprar você, porque você não merece”.
O cartaz compartilhado numa página no Facebook repete o verbo: “Eu não mereço mulher rodada”. Explicita na sentença a aversão masculina a parceiras com experiência sexual, numa materialização dos enredos mitológicos que atrelam a dignidade feminina à castidade.
Não por acaso, uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgada em abril deste ano, mostrou que um em quatro brasileiros concordava com a frase “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. De novo, o verbo. O recado óbvio é que a mulher resistente às ideias ou aos valores morais a ela impostos torna-se passível de punição, da rejeição conjugal à agressão física, do crime sexual ao homicídio.
Jovens Brasil afora têm se apropriado do tal verbo para reagir. Sabem que não merecem homens do quilate do parlamentar e dos séquitos real ou virtual que o acompanham em atos e palavras.
Tampouco merecem instituições indiferentes ao cotidiano de violações. A confissão de dezenas de crimes por Saílson José das Graças, após prisão em flagrante por matar a facadas uma vizinha de 64 anos, foi o exemplo que fechou a semana de descaso escancarado à condição feminina. Se não for um mitômano empenhado em exagerar o prontuário homicida, o serial killer será julgado pela execução cruel de 38 mulheres na Baixada Fluminense, região historicamente (agora, mais do que nunca) esquecida pelas autoridades da segurança pública do Rio.
O assassino passou nove anos estrangulando e esfaqueando mulheres no segundo estado mais rico do Brasil, sem que a investigação policial desconfiasse de sua existência. A sobrevivente de uma dúzia de perfurações disse que foi à delegacia, mas não conseguiu registrar a tentativa de homicídio. De tão frequentes as mortes, moradores de Jardim Corumbá, em Nova Iguaçu, por conta própria, já haviam identificado o autor. Foram eles que denunciaram o crime que pôs Saílson atrás das grades e detonou a confissão estarrecedora.
Por recorrentes, quase banais, os múltiplos assassinatos não sensibilizaram os investigadores. Possivelmente, porque além de mulheres, as vítimas eram pobres. Não mereciam.
Acesse o PDF: Violência em três atos, Flávia Oliveira (O Globo, 14/12/2014)