Com conteúdo sem regras, a cultura machista e violenta contra as mulheres pode ser reforçada e reproduzida no ambiente online, indica especialista

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Ato Por Todas elas (nós)/RJ. Foto: Mídia Ninja

27 de setembro, 2022 Agência Patrícia Galvão Por Juliana Vieira

Ano de eleições e a violência de gênero na política ganha destaque, tanto pelo aumento de agressões contra mulheres quanto pela vigência da Lei 14.192/2021, que prevê o enfrentamento aos ataques às parlamentares no exercício de funções públicas. E a internet é o principal meio para essas manifestações de violência de gênero. Discurso de ódio, desinformação e incitação à violência desvelam crimes no ambiente digital. Neste cenário, a Safernet lançou em 2022 a cartilha #EleicoesSemOdio, com uma abordagem pedagógica sobre conteúdos impróprios e medidas de segurança para navegabilidade e que traz também indicadores produzidos a partir das denúncias recebidas pela organização. Dentre os resultados, a misoginia foi apontada como uma das violações mais notificadas pelas usuárias, evidenciando que o gênero é fator de alto risco no ambiente online.

Em entrevista ao Boletim Violência de Gênero em Dados, uma das responsáveis pela cartilha, a psicóloga Juliana Cunha – mestre em Cultura e Sociedade pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e diretora de projetos especiais da Safernet – analisa as diversas dimensões da violência online e da violência política na perspectiva de gênero, considerando aspectos como: o período do pleito, impacto da legislação de regulação da Internet e a importância da nomeação das violências e também da interseccionalidade com o fator raça nas interações virtuais.

O período eleitoral tem sido marcado pela violência online, por meio da disseminação de discursos de ódio e fake news, especialmente nos últimos quatro anos. Em 2018, o aumento dos casos de misoginia chegou a 1.640% em comparação ao ano anterior. Nos primeiros seis meses de 2022 foram 7.096 denúncias de misoginia. Com base nos dados coletados pela Central Nacional de Denúncias da Safernet e divulgados na cartilha #EleiçõesSemÓdio, como você analisa a relação da violência online com a violência política de gênero?

Juliana Cunha, psicóloga, mestre em Cultura e Sociedade e diretora de projetos na SaferNet. (Foto: Arquivo pessoal)

Juliana CunhaAmbas as violências são reflexo de um problema estrutural. A internet acaba sendo um espelho, um reflexo de muitas desigualdades, uma caixa de ressonância desses problemas que ganham visibilidade e alcance. Tanto a questão da violência online quanto da violência política de gênero são resultados do machismo e da misoginia da sociedade. E, na internet, esses fenômenos têm particularidades. Nela, existem “chans”, os fóruns da deep web, ambientes anônimos e plataformas sem qualquer política de moderação de conteúdo. Com conteúdo sem regras, sem uma política que estabeleça o que é aceitável e o que não é, a cultura machista, misógina e de discriminação contra as mulheres pode ser reforçada, reproduzida ou alimentada nesses ambientes. A questão não está na internet em si, mas no fato de que ela reflete as nossas desigualdades.

Nas últimas eleições, observamos uma tendência de aumento das denúncias de discurso de ódio. E, com base nos indicadores da cartilha #EleiçõesSemÓdio, concluímos que as eleições funcionam como gatilho para influenciar o engajamento em conteúdo que incita violência. As mulheres são alvo, assim como outros grupos, como a população negra, LGBTs, nortistas, nordestinos e pessoas com determinadas orientações religiosas. Esses são os perfis de quem costuma ser mais alvo. E as eleições são terreno fértil, porque muitas figuras públicas usam o discurso de ódio, por exemplo a LGBTfobia, machismo, misoginia, como plataforma política para ganhar visibilidade. Os debates políticos são um exemplo: reações às falas dos candidatos podem repercutir em muitos seguidores nas redes. Com base nesse cenário, fizemos a cartilha; primeiro, com o objetivo de educar para o problema, conscientizar, e depois, considerando as pessoas espectadoras, que são expostas ao conteúdo e têm um papel importante. A depender de como é a interação com o discurso de ódio nas redes, a mensagem ganha mais alcance, o que é justamente o que não queremos. Conheça a cartilha #Eleiçõessemódio.

A violência contra as mulheres é sempre uma das principais denúncias, desde 2018, justamente o ano em que a lei (13.642/2018) acrescenta à Polícia Federal a atribuição de investigar casos de misoginia na internet. Observamos também que, em período de eleição, como as mulheres servem de objeto no debate político, especialmente em relação aos seus direitos, como o aborto, tema muitas vezes polarizado, as figuras públicas se valem disso para, de novo, incitar discriminação e ataques contra as mulheres.

Com a sanção da lei 14.192/2021, que combate a violência política de gênero, incluindo manifestações de ódio em redes sociais e em transmissões em tempo real na internet, na sua avaliação, já é possível mensurar a “temperatura” das eleições deste ano?

Juliana Cunha: Pela legislação ser recente, é difícil mensurar. A análise possível é que há um esforço do poder público, das autoridades em geral, inclusive judiciárias, para esse enfrentamento. No entanto, acabar com a violência política de gênero não é meta a curto prazo. O que está na raiz do problema é uma cultura que naturaliza as violências. A legislação dá mais poder para que a gente consiga denunciar e ter uma resposta, pelo menos cobrar respostas do poder público. Agora, há um aspecto importante: a legislação é restrita às candidatas, às mulheres que estão no exercício do seu direito político e de suas funções públicas. Ficam de fora jornalistas, ativistas, mulheres que, de alguma forma, também podem ser alvo de violência de cunho político. Seria importante ampliar esse direito para garantir  proteção às mulheres que estão no debate público e podem sofrer violência. De todo modo, certamente não veremos resultados nestas eleições. Será a longo prazo e, ainda assim, tendo como grande desafio mudar o cenário de violência contra as mulheres. Apesar da existência de autoridades, lei, delegacias, toda uma rede, se não tem mudança cultural – por exemplo, a Justiça e os partidos políticos são majoritariamente compostos por homens –, então, como a gente muda a cultura de proteção e de direitos das mulheres se a realidade ainda reproduz preconceitos?

Os dados apontam que há uma combinação de violências contra as mulheres na internet, sendo a exposição de imagens íntimas, ofensas virtuais e perseguição algumas das que mais vitimizam as brasileiras. Na sua opinião, quais pontos são relevantes quanto à regulamentação e ao uso da internet no Brasil em prol da prevenção de crimes contra as usuárias?

Juliana Cunha: Tivemos muitos avanços, especialmente no quesito de violações como o compartilhamento não consensual de imagens íntimas. Monitoramos esses números que vinham crescendo desde 2012, 2013, quando ocorreu um uso massivo de aplicativos de troca de mensagens. Daí virou um problema maior, o  que fez com que, no Marco Civil da Internet (Lei n° 12.965, de 2014, que estabelece os princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil), houvesse uma mudança para que as próprias vítimas notificassem as plataformas sem a necessidade de medida judicial para isso. Além disso, foi incluída a responsabilização subsidiária das plataformas caso não investiguem de forma diligente esse tipo de conteúdo. Outro ponto foi a Lei de Importunação Sexual (13.718, de 2018), que prevê e especifica o crime de compartilhamento não consensual de imagens íntimas. E, ainda, há um esforço das plataformas com tecnologia de inteligência artificial para detectar e evitar que o conteúdo seja publicado. Uma vez divulgado, as plataformas fazem uma espécie de impressão digital no conteúdo indevido para que não seja republicado, já que será detectado automaticamente como imagem criminosa. 

Ainda assim, temos desafios no âmbito da legislação. Existem outras violações que não estão previstas nem na Lei Maria da Penha, porque nela é preciso que o autor da violência seja o atual ou tenha tido algum grau de relacionamento com a vítima. E alguns crimes contra as mulheres, como quando a usuária compartilha dados pessoais e passa a ser stalkeada, perseguida e sofre ameaças de morte, são praticados por desconhecidos. De todo modo, a Lei de Stalking (14.132/2021) é um avanço do ponto de vista de favorecer maior capacitação às autoridades, especialmente aos policiais, para investigar o crime. E, às vezes, a denúncia é feita, ou seja, é notificada, mas nem todas as delegacias estão preparadas para fazer perícia, com técnico especializado em informática, ou possuem tecnologia ou mesmo conhecimento para tratar do caso.

A conscientização para o enfrentamento das violências é um caminho longo. Em 2012 havia outra percepção da população sobre o compartilhamento não consensual de imagens íntimas que, aliás, muitas vezes recaía na culpabilização da mulher vítima. Atualmente, percebo uma mudança de percepção, sutil a depender do contexto, e mais madura. Antes falavam: “quem mandou enviar?”. Hoje, já há outro argumento: “não é culpa da vítima, é culpa de quem passa a imagem adiante”. É uma mudança de percepção que requer trabalho incessante na perspectiva da educação. Por isso, incluir esses temas nos primeiros anos da escola e incentivar boas práticas aos educadores é fundamental.

Os indicadores da Safernet mostram que, em 2020, as denúncias de racismo tiveram um aumento de 148% em relação a 2019. Como a perspectiva de gênero e raça pode ser instrumento na análise de dados de violações online?

Juliana Cunha: Notamos que é alto o número de denúncias por parte de grupos historicamente alvo de segregação e discriminação, que acabam sendo os mais atingidos pela violência online. É um contínuo, aquilo que está no mundo off-line reverbera e se estende para o mundo online. Quem é a base da pirâmide da violência? A mulher negra. Então, há uma intersecção de gênero e raça. E vemos isso nos números. Agora, é importante ter uma análise aprofundada do teor dessas denúncias para entendermos se, nas denúncias de racismo, o percentual maior é contra mulheres ou homens, se nas denúncias de violência contra a mulher, de misoginia, as mulheres negras são alvo preferencial.

Quanto à subnotificação de casos de violência online contra as mulheres, quais medidas podem ser tomadas para fomentar mais denúncias?

Juliana Cunha: O maior obstáculo para a notificação da violência na internet é a barreira que as vítimas ou pessoas mais próximas enfrentam para perceber e nomear a violência. Até recentemente, antes da legislação de stalking, ou perseguição online, muita gente sequer percebia que estava vivendo uma situação passível de denúncia. Então, às vezes, as pessoas falavam: “ah, é só um ex dando problema, dando dor de cabeça”. A pessoa persegue no trabalho da vítima ou instala um programa espião no celular, consegue ter acesso às interações nas redes sociais da vítima. Daí, o primeiro obstáculo é o gargalo da identificação de que é um crime, é nomear a violência. Outra barreira é a cultural. É preciso tirar da normalidade, desnaturalizar aquilo que ainda é aceito. Como em casos de vazamento de nudes, a vítima diz: “ah, não devia ter enviado”, aí começa a culpabilização, a estigmatização. Mais um ponto é o medo de retaliação. Muitas vítimas não notificam porque temem que o agressor se vingue, exponha mais. E, por fim, a percepção de impunidade que ainda persiste. A sociedade vê que os crimes na internet carecem de punição das autoridades, constantemente as pessoas dizem: “minha denúncia não vai dar em nada” e “quem faz continua impune, não vai resolver, não vai me ajudar”. A denúncia é o passo necessário para cobrar providências das autoridades.

Comente a importância dos dados sobre violência online para a compreensão do fenômeno das violências e da necessidade de mobilização para políticas públicas de proteção às mulheres.

Juliana Cunha: Os dados são importantes porque trazem à visibilidade o que muitas vezes está invisível. Mas, para a formulação de políticas públicas, acredito que, para além dos dados, é preciso vontade política. Os formuladores de políticas públicas também vivem as consequências das raízes do machismo e a naturalização de determinadas práticas. Há pouco tempo, nem se entendia assédio como assédio. As pessoas diziam: “ah, é só uma cantada”. Precisou ter um movimento. E acredito que isso seja tão importante quanto os indicadores. Por exemplo, o movimento organizado de mulheres trazer à tona assuntos por vezes silenciados e levantar temas aos grupos mais resistentes. E as redes podem ser aliadas nesse movimento. Pressionar em casos públicos, envolvendo figuras poderosas e notórias. O impacto chega às autoridades, em quem é responsável pela tomada de decisões políticas. É fundamental exercer mais pressão, constranger os tomadores de decisão para que eles se posicionem e não permaneçam em um lugar de omissão ou até de anuência.

Sobre o Boletim Violência de Gênero em Dados

Realizado com apoio do Consulado Geral da Irlanda em São Paulo, o Boletim Violência de Gênero em Dados divulga mensalmente uma seleção de estatísticas e dados de estudos realizados por órgãos governamentais, institutos de pesquisa e organizações da sociedade civil, sobre os diversos tipos e formas de violência contra as mulheres, com curadoria da equipe do Instituto Patrícia Galvão. Saiba mais.

 

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