Violência obstétrica ainda afeta mulheres no cárcere três anos após Lei de Tratamento Humanitário

Pregnant woman standing by the window

Foto: Freepik

10 de abril, 2025 Gênero e Número Por Adriana Amâncio e Mariana Rosetti

Alas maternas precárias, consultas de pré-natal insuficientes, ambiente hostil e direitos negados revelam que unidades prisionais não oferecem atendimento adequado às mulheres da gestação ao parto.

Clara* foi detida por tráfico de drogas em 2018, grávida de sua primeira filha. Mesmo ano que o Supremo Tribunal Federal reconheceu o Habeas Corpus 143.641, permitindo que mães e gestantes cumprissem prisão domiciliar durante as investigações. A condenação veio oficialmente em 2023. Quando os policiais bateram à porta, estava grávida de três meses de Lucas*, seu terceiro filho, e deixou um casal de crianças – de 4 e 2 anos – aos cuidados da avó.

Na Penitenciária Feminina de Santana, na capital de São Paulo, o pré-natal de Clara se limitou a um ultrassom e uma consulta com ginecologista, contrariando o que recomenda o Ministério da Saúde: no mínimo, seis consultas. Não foi por falta de pedido. Mas, para se deslocar a um hospital, eram preciso viaturas para a escolta e autorização da penitenciária.

A gestação de Clara não mudou a rotina prisional: dividia cela com outras internas, dormia em colchões de espuma – que lhe causavam fortes dores nas costas – e comia a mesma comida. “Tinha dia que eu dormia com fome e acordava com mais fome ainda”, relembra.

No regime semiaberto, foi transferida ao Centro de Progressão de Pena (CPP) do Butantã, zona oeste paulista. Antes de Lucas nascer, Clara caminhava inquieta na enfermaria da unidade, tentando aliviar as dores das contrações, que começaram às 17h. A escolta demorou e só chegou ao Hospital Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, às 22h30.

Apesar dos quatro centímetros de dilatação, a médica sugeriu que ela retornasse ao CPP, mas Clara insistiu para ficar, dizendo “que estava com muita dor e que aquilo não era normal”. Minutos depois, a contração veio mais forte, e ela pôde sentir a cabeça do filho ali mesmo, no corredor. Só então foi encaminhada à sala de parto. Era meia-noite e cinco quando Lucas nasceu.

Ao ser indagada sobre o tratamento durante o parto, responde: “Eu não dei trabalho, não fiquei gritando nem nada”. Aos 27 anos, após passar boa parte da gravidez e do puerpério presa, perdeu também o direito de escolher, opinar ou expressar a dor de um parto normal. Ela acredita que seu “bom comportamento” determinou como foi atendida.

Embora a Lei 14.326, conhecida como Lei de Tratamento Humanitário, sancionada em abril de 2022, preveja tratamento humanizado a gestantes e puérperas privadas de liberdade, além de assistência integral à saúde da mãe e do bebê, na prática, o direito raramente se concretiza. Além de Clara, outras mulheres ouvidas pela reportagem enfrentam uma violência silenciosa: a obstétrica.

Maria do Carmo Leal, professora e coordenadora do estudo Nascer na prisão: gestação e parto atrás das grades no Brasil, explica que a violência obstétrica é a “violência física, verbal, sexual, negligência, maus-tratos, desrespeito, condutas não baseadas em evidências científicas e inadequações nos serviços de saúde” durante a gestação, o parto ou o puerpério. Ela é frequentemente praticada por profissionais da saúde, combinando atos interpessoais (violência física e verbal) com aspectos institucionais (maternidades sobrecarregadas, com estrutura e recursos humanos inadequados).

No contexto prisional, a violência obstétrica não só transforma a maternidade em mais uma pena a ser cumprida pela mulher, como estende a penitência à criança, frequentemente atingida pelas marcas do cárcere.

As mulheres que não conseguem acesso à prisão domiciliar seguem cumprindo pena nas unidades prisionais, independentemente da gestação.

Entre 2017 e 2024, a proporção de celas dormitório para gestantes nas unidades prisionais brasileiras aumentou de 14% para 26%, segundo dados do Sistema de Informações Penais (Sisdepen). Embora o crescimento represente um avanço, o número segue abaixo do mínimo necessário. Isso significa que, mesmo com o aumento, três em cada quatro unidades femininas ou mistas no país ainda não oferecem espaços adequados para mulheres grávidas.

Em 2024, por exemplo, das 245 unidades prisionais que responderam ao levantamento, apenas 63 possuíam celas dormitório destinadas a gestantes. Isso revela que 74% das unidades seguem alocando mulheres grávidas em celas comuns, sem estrutura apropriada para esse período tão delicado. A ausência dessas celas compromete a dignidade, a segurança e a saúde das mulheres e dos bebês em formação.

As mulheres que já receberam sentença e atingiram o percentual de cumprimento de pena previsto em lei, ganham o direito à saída temporária. Em dias de liberdade provisória, das portas do CPP do Butantã saem dezenas de mulheres uniformizadas – calça bege, camiseta branca e chinelos. Mas, em meio à multidão, duas figuras pequenas se destacam. Envoltos em cobertas, uma rosa e outra verde, com toucas e meias, estão os bebês Nina* e Lucas, nos braços de Júlia* e Clara.

Vestidos com roupas coloridas, os pequenos destoam do concreto que cerca a penitenciária. Ao deixarem os portões, ainda na calçada, as mães se protegem sob uma tenda de voluntários religiosos. O dia está cinza, e o chuvisco intermitente ameaça a saúde dos bebês. Clara carrega Lucas junto de uma banheira azul, uma bolsa de maternidade escura e uma sacola plástica com pertences seus e outros tantos do filho. Ela aguarda familiares que encontrarão o menino pela primeira vez.

Júlia segura Nina com força: será a última saída temporária antes de entregar a filha para a família. “Eu choro todo dia só de pensar. O lugar não é apropriado para criança, não dá para ficar com ela aqui por mais de seis meses”, diz, em lágrimas. Júlia foi presa por tráfico de drogas com um mês de gravidez e teve a filha na Penitenciária Feminina de Mogi das Cruzes.

Minutos antes, os quatro estavam na Casa Mãe, a ala materna do CPP. O lugar, criado para ser um pavilhão masculino, se limita a um corredor com grades pretas. As celas são compartilhadas entre gestantes e lactantes, sem diferenciação alimentar ou cuidados específicos.

A rotina começa às 5h, quando as grades batem, e as mulheres levantam para a contagem. Algumas agentes fazem o procedimento em silêncio, respeitando o sono dos bebês, outras “mandam a gente levantar, pegar o bebê e abrir a janela. É barulho o tempo todo”, diz Júlia. Banhos de sol acontecem a cada dois dias, por duas horas, sempre com os bebês nos braços.

Uma inspeção surpresa no CPP do Butantã, feita em outubro de 2024 pela Defensoria Pública de São Paulo, registrou imagens e denúncias. O local foi descrito pelas internas como não apropriada “nem para mãezinha, nem para grávida”. O documento aponta condições precárias na Casa Mãe: chuveiros queimados, banho de sol restrito e hostilidade dos funcionários, além da falta de acompanhamento pediátrico.

“Não há consultas periódicas, e as mães relataram dificuldades em conseguir atendimento médico para os bebês quando necessário”, afirma o documento. As mulheres ouvidas pela reportagem, meses após a inspeção surpresa, apontaram os mesmos problemas descritos no relatório elaborado pela defensoria.

Unidades prisionais descumprem Constituição

Sob a sombra da lei, a violência obstétrica configura agravamento da pena da mulher e punição do bebê, segundo a pesquisa “Mulheres encarceradas: a violência obstétrica no sistema prisional brasileiro”, do Instituto de Direito Público de Brasília.

Segundo a pesquisa, o princípio Non Bis In Idem é um dos pilares do ordenamento pátrio. Ele determina “que ninguém poderá ser punido mais de uma vez pela mesma infração penal.” Isso significa que a punição imposta à mulher é a privação de liberdade por uma quantidade de anos, como descrito na sentença. A violência obstétrica e a privação de acesso a direitos básicos são punições extras e ilegais.

Outro princípio violado é o risco de vida imposto ao bebê pela falta de oferta de pré-natal adequado, além de outros cuidados. É como se o filho fosse punido junto à mãe. A prática fere o inciso 45 do artigo 5º da Constituição Federal, que fala da intranscendência da pena. Esse princípio determina que “nenhuma pena ultrapassará da pessoa do condenado.”

Para o Defensor Público e Coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC) de São Paulo, Bruno Shimizu, desde a Lei 13.434/2017, que proibiu o uso de algemas durante o parto, violações evidentes foram reduzidas, enquanto outras seguem presentes.

“É extremamente comum que mulheres grávidas não passem por um pré-natal adequado. Mesmo quando a unidade sabe da gestação, há casos em que elas recebem apenas uma ou duas consultas”, aponta. “As unidades prisionais estão em um estado de coisas inconstitucional”, resume.

Mesmo inadequada, a Casa Mãe de São Paulo ainda é exceção no Brasil. De 2017 a 2024, a proporção de unidades com esse tipo de espaço cresceu de 12% para apenas 22%, segundo o Sisdepen. Ou seja, em mais de 75% das unidades, não há berçários onde as mães possam cuidar de seus filhos recém-nascidos com dignidade. A ausência desses espaços ignora o que está previsto no artigo 89 da Lei de Execução Penal, que determina que “os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade”.

É o caso da Colônia Penal Feminina de Abreu e Lima (CPFAL), instalada na região metropolitana do Recife. A reportagem acessou um relatório de inspeção realizado pela Defensoria Pública do Estado de Pernambuco, em 21 de outubro de 2024, na CPFAL. Segundo o documento, “observou-se a ausência de berçário na unidade prisional, sendo informado que, havendo presa gestante, é concedida prisão domiciliar até a criança atingir 6 (seis) meses de idade.”

A equipe pontua que “não há profissional de saúde de plantão durante o período noturno, nos finais de semana e feriados. Em situações de atendimento de emergência nesses períodos, os pacientes são encaminhados para o Hospital Barão de Lucena, IMIP ou posto de saúde”. Outro trecho do relatório certifica que “não havia profissionais em licença no momento da inspeção”.

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