(El País, 10/12/2014) O aterrorizante capítulo do relatório da Comissão Nacional da Verdade, sobre os crimes da ditadura militar, que aborda a violência sexual começa com o depoimento de Isabel Fávero: “Depois de três ou quatro dias presa, comecei a passar mal. Estava grávida de dois meses e tive um aborto espontâneo. Sangrava muito, não tinha como me limpar, usava papel higiênico. E cheirava mal, estava suja. Por isso acho… Não, tenho quase certeza de que não fui estuprada. Porque eles me ameaçavam constantemente mas tinham nojo de mim. (…) Certamente foi por isso. Eles ficavam irritados ao me ver suja, sangrando e cheirando mal e ficavam com ainda mais raiva, e me batiam ainda mais”.
O relatório afirma que os casos de estupro e de violência sexual foram praticados “de maneira extensa durante toda a repressão do período da ditadura militar brasileira”.
Alguns dos torturados, como Marco Antônio Tavares, dizem que os torturadores do DOI (Departamento de Operações e Informação) tinham “uma obsessão doentia” pelo abuso sexual, por humilhar as vítimas de uma maneira sexual. “Tenho certeza que despiram e torturaram Vera só para poderem vê-la nua”. E prossegue: “Não há outra explicação para todos esses tipos de tortura, como introduzir cabos de vassoura no ânus e na vagina ou aplicar descargas elétricas nos genitais”. José Carlos Zanetti, preso em maio de 1971 na Bahia, ao lembrar de seus carrascos, exclama: “Não sei como essas pessoas podiam dormir, podiam seguir vivendo”.
Os estupros eram algo corriqueiro. Algumas vezes ocorriam com o namorado ou o marido da vítima na mesma sala. Eliete Lisboa Martela, que foi presa em São Paulo, relata o sofrimento de um amigo, João Leonardo Silva Rocha, detido em junho de 1975: “João Leonardo estava completamente fora de si porque estupraram sua mulher naquela sala onde também tiraram minha roupa. Ele estava amarrado no pau-de-arara, com um fio elétrico enfiado no ânus. E ali estupraram sua mulher, que era professora de inglês. Ela foi estuprada ali, na frente dele. E ele entrou em choque com isso”.
Karen Keilt foi levada à força junto com seu marido para o Departamento Estadual de Investigações Criminais de São Paulo em meados de maio de 1976. Os dois foram soltos em julho depois de pagar uma fiança de 400.000 dólares. Anos depois, mudou-se para os Estados Unidos. Eis seu depoimento: “Começaram a me bater. Me amarraram num pau-de-arara e me deixaram pendurada. Me deram choques elétricos. Nos seios, nos mamilos… Desmaiei. E comecei a sangrar. Sangrava por todas as partes. Pelo nariz, pela boca. Estava muito mal. Então um dos guardas veio, me levou para uma das celas e me estuprou. Ele me disse que eu era rica mas tinha a mesma vagina que o resto das mulheres. Era um homem horrível”.
Para Karen, assim como para muitas outras vítimas desse tipo de violência, uma vez libertadas, o suicídio se tornou uma das saídas do labirinto psicológico no qual os torturadores as tinham colocado. “Quando voltei para casa, na primeira semana, tentei me matar. Era julho, inverno em São Paulo. Tomei vários comprimidos, saí da cama e entrei na piscina. Não queria sobreviver de maneira alguma. O Rick me escutou e me salvou. Mas ele começou a beber. Bebia, bebia, bebia. Muito. Virou alcóolatra. Nunca se recuperou da tortura”.
Às vezes, o pior castigo era o que as pessoas levavam para sempre dentro de si ao deixar o quartel ou a cela. Uma jovem de 19 anos que não quis se identificar, presa no Rio de Janeiro, conta que foi torturada duas vezes. Uma por seus carrascos. Outra, por ela mesma, pelo resto da vida, porque não conseguiu resistir e entregou um companheiro. “Saí dali com minha dignidade destruída. Me sentia responsável pelo sofrimento daquela pessoa que acabou sendo presa por causa das minhas palavras, obtidas sob coação. Alguns anos depois, eu soube que ele passou dois meses na prisão. E que estava em liberdade, o que me deixou contente. Muitas vezes pensei em procurá-lo, em contar a ele as circunstâncias sob as quais o denunciei, falar sobre as ameaças de estupro. Mas sempre que eu tentava, acabava voltando atrás, paralisada pelo pânico. Será que ele iria me entender? Será que me perdoaria? Eu não aguentava a tristeza. (…) Há muitas maneiras de uma pessoa dizer que resistiu, há muitas expressões para descrever seu orgulho e sua honra, e essas mesmas expressões escondem uma acusação implícita para aqueles que não resistiram. Para aqueles que sofrem de uma dor que, talvez, muitos desconheçam”.
Antonio Jiménez Barca
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