Quando Nina entrou no consultório médico, só queria levar o resultado de exames. Buscou o gastroenterologista por sofrer com dores estomacais, que levaram a uma suspeita de gastrite. Já havia passado ali acompanhada da mãe, mas daquela vez foi sozinha. Tinha 16 anos e morava em uma cidade a oeste do Paraná.
O médico que a atendeu pediu para examiná-la lá mesmo, em vez de apenas analisar os documentos que ela trazia. Ela se deitou na maca. “Ele me tocou e colocou os dedos na minha vagina”, relata Nina Marqueti, hoje com 28 anos.
Não foi a primeira vez. “Numa consulta anterior, com a minha mãe no consultório, ele ficou passando a mão pela minha virilha”. A justificativa usada era da existência de ínguas — aumento dos gânglios linfáticos — na região. Passar a mão pela região seria, então, a forma de descobrir se algum lugar “doía”.
O desconforto acendeu o sinal vermelho para o abuso. Mas a paranaense conta que sequer sabia como contestar o médico sobre o procedimento. “Eu nunca tinha visto na minha vida alguém questionar o que um médico falava”.
Foram mais de dez anos de silêncio até que Nina falasse publicamente sobre o assunto. Ela se tornou porta-voz da campanha #ondedói , criada por uma coalizão de organizações e grupos feministas, que busca notificar a violência contra a mulher cometida por médicos e outros profissionais de saúde.
A hashtag ganhou força e recebeu mais de 4 mil relatos em redes sociais como o Twitter. Já no site da iniciativa, que documenta as ocorrências por um formulário, o número passa de 360.
“A gente já sabia que esse era um crime frequente, mas se surpreendeu com a quantidade de pessoas que passaram por isso”, explica Nina, que hoje mora em Nova York, nos EUA.
Os depoimentos mostram a dimensão do problema.
Uma usuária descreve que precisou tirar a roupa para um procedimento, e só descobriu que isso não era necessário quando falou com outra profissional de saúde.
Outra, ainda criança, foi examinada a portas fechadas e tocada na vagina — mesmo que tivesse sido levada ao médico por uma dor de garganta.
Cifra escondida
Ainda não há um levantamento oficial sobre as ocorrências de violência sexual em ambientes médicos, como hospitais, consultórios e postos de saúde. Os conselhos de medicina, que podem cassar a licença de profissionais com conduta indevida, também não apresentam estatísticas.
O CRM-PR (Conselho Regional de Medicina do Paraná) — Estado onde ocorreu o caso de Nina — afirma que não possui estatísticas sobre as denúncias que se enquadram como “assédio”. “Este termo não é utilizado em nosso índice remissivo, que é estritamente vinculado aos artigos do Código de Ética Médica”, declara a entidade em nota.
Já o Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) forneceu em nota os números sobre abuso sexual entre 2014 e 2019. “Foram instauradas 317 sindicâncias, sendo: 128 em andamento, 138 arquivadas, 49 transformadas em processo e 2 transformadas em procedimento administrativo”.
Por sua vez, o Conselho Federal de Medicina, entidade que julga os recursos apresentados em processos do tipo, não possui um levantamento a nível nacional sobre as denúncias de assédio e estupro que chegam aos conselhos regionais.
“As pessoas sabem [dos mecanismos de denúncia] mas existe o constrangimento”, opina o cardiologista Julio Braga, vice-presidente do Cremeb (Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia).
São poucas as denúncias que chegam ao órgão, segundo ele. Em um ano, foram “duas ou três” casos no estado. Ele explica que a necessidade de narrar a violência, ocorrida em “momento de relação íntima profissional”, às autoridades pode afastar as vítimas.
Nessas ocorrências, o papel das entidades é de determinar se houve alguma violação ética. “Se o médico usar a questão da confiança por parte do paciente, da sedação, do uso de medicamentos…”, exemplifica o médico.
Se, por esse caminho, os registros são poucos, há outra porta de entrada: as delegacias. Um levantamento do site Intercept Brasil, feito com base nos dados de secretarias de segurança, deu conta de mais de mil casos reportados em nove Estados brasileiros. Especialistas estimam que crimes do tipo, de cunho sexual, sejam ainda subnotificados.
Por trás do silêncio
São poucas as ocorrências que chegam às vias institucionais. O que iniciativas como a campanha #ondedói apontam — e os depoimentos compartilhados pela hashtag indicam — é que há uma série de obstáculos no caminho de quem sofre violência e que leva ao silêncio.
O primeiro problema, como explica Nina Marqueti, diz respeito à violência em si, que pode passar despercebida. Ou seja, atitudes abusivas podem ser interpretadas como procedimento padrão pelas pacientes.
“A gente sente o desconforto, percebe que tem alguma coisa errada mas está em uma situação muito vulnerável, em que não sabe qual o procedimento”, sintetiza a porta-voz da campanha.
A advogada Amarílis Costa, membra executiva das Comissões da Mulher Advogada e de Igualdade Racial da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), também destaca o problema.
“As mulheres não conseguem dizer se aquele toque ultrapassa o profissional”, resume a advogada, que atende casos de violência contra a mulher em ambientes médicos, em especial sofridos por mulheres negras. “É uma relação de confiança com uma pessoa que se entende como tendo aptidão técnica”.
Amarílis nota um padrão entre as mulheres que a procuram para apoio jurídico. Em geral, elas só buscam advogados depois de uma “terceira pessoa” apontar o problema.
“Em um momento de diálogo, essas mulheres dividem o desconforto com uma amiga, que diz ‘você foi vítima de uma violência sexual’. Só depois disso ela começa a conjecturar a possibilidade de acessar as vias legais”, explica.
Uma vez identificada a violência, surge outra barreira: a de acolhimento e denúncia.
O caso de Nina ilustra um dos dilemas de quem sofre violência cometida por médicos: a descrença ao narrar o ocorrido. Ela conta que não teve apoio da família para comunicar o caso às autoridades, anos atrás — o que a fez sentir “sozinha e desamparada”.
“A família de outra vítima [do mesmo médico], abusada aos 13 anos de idade, foi prontamente à delegacia e denunciou”, exemplifica.
O tabu em torno da violência sexual, somado à figura de autoridade do médico, contribuem para que a vítima se cale. “Quando a gente passa por um processo de deslegitimação dessa experiência, tenta se convencer de que nada aconteceu”.
Iniciativas como a #ondedói chamam a atenção para outro lado do problema, da desinformação sobre opções de denúncia. A porta-voz do projeto afirma que nem todas as mulheres conhecem os órgãos que podem receber denúncias, como os conselhos regionais.
E nem todos esses canais, como aponta a advogada Amarílis Costa, oferecem um ambiente acolhedor para quem sofreu violência.
“Já parou para pensar em como é estar sozinha em uma fila de triagem na delegacia, tendo que informar que foi estuprada?”, questiona a jurista. Ao longo do processo, a vítima tem ainda de narrar o próprio trauma repetidas vezes — o que piora o quadro para quem busca ajuda.
Mesmo os casos que chegam às vias institucionais encontram outros obstáculos, como a obtenção de provas. Em muitas ocorrências, não há testemunhas nem registros em imagem, vídeo ou áudio do que aconteceu.
“Muitas vezes nem há outra pessoa na sala, o acompanhante ou funcionário que estava lá saiu”, pontua Julio Braga, vice-presidente do Cremeb. Para resolver o impasse, a busca por evidências indiretas faz diferença: por exemplo, registros no prontuário que comprovem que a consulta aconteceu e que o médico estava presente no momento do delito.
Amarílis cita outras possibilidades: filmagens de áreas externas (“que mostram o estado da vítima quando entrou e quando saiu do consultório”), declarações de testemunhas e laudos.
Por outro lado, ela ressalta que em “pouquíssimos casos” é possível comprovar a materialidade do crime — ou seja, reunir elementos físicos suficientes que mostram que algo, de fato, aconteceu.
“Isso é pouco recorrente porque os médicos têm conhecimento do que podem ou não fazer para não gerar provas”, detalha a advogada. Por exemplo, há sedativos que não deixam rastros e mesmo atos violentos que não deixam marcas físicas.
Como e onde denunciar
Há dois caminhos possíveis e paralelos à disposição das vítimas. Um deles é o de conselhos regionais, que coletam informações sobre casos e podem cassar os médicos responsáveis.
É possível registrar o caso pela internet, por meio do site do conselho regional em que o delito aconteceu. As denúncias não podem ser anônimas, mas a vítima pode solicitar que sua identidade seja mantida em sigilo desde o início.
A partir daí, a entidade abre uma sindicância para apurar os primeiros detalhes — por exemplo, solicitar registros do hospital em que o crime ocorreu. Depois de reunidos tais materiais, o processo é aberto.
Os passos seguintes assemelham-se aos de um processo legal comum. O denunciado é chamado para apresentar sua versão, e as testemunhas convocadas a falar. Também cabe às autoridades questionar a vítima sobre o ocorrido.
Como resposta, as penas variam de censura pública (publicada em jornais de alcance nacional ou no diário oficial) até suspensão por 30 dias e, em casos mais graves, a cassação. Ao longo do processo, as entidades podem pedir ainda a interdição cautelar do médico, para que ele não exerça a profissão nesse período.
“É importante cobrar dos conselhos de medicina que fiscalizem e garantam a exclusão dessas pessoas de seus quadros”, opina Amarílis Costa. “Além disso, que façam uma divulgação mais ampla e estabeleçam um diálogo aberto com a sociedade civil”.
O segundo caminho é a denúncia em uma delegacia, que leva a um processo no âmbito penal. Novamente, é necessário reunir provas que ajudem a comprovar o crime. Para dar seguimento ao processo, a vítima pode recorrer a órgãos como a Defensoria Pública para obter apoio jurídico.
Uma listagem dos serviços disponíveis — de psicólogas solidárias a juristas, passando por grupos de apoio — foi disponibilizada pela campanha #ondedói.
Os planos futuros incluem o desenvolvimento de uma cartilha que detalhe os direitos das vítimas e quais são as condutas adequadas em procedimentos médicos. O site ainda recolhe casos de abuso para mapeamento do problema, por meio de um formulário.
“Eu acreditei por muito tempo que só era eu, me culpava e me perguntava: o que eu fiz para passar por isso?”, diz Nina Marqueti. “Mas nós precisamos falar das nossas dores porque muita gente sofre achando que está sozinha. É muito pesado ser a única pessoa vítima de um médico”.
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