Após primeiro relato, mais de 200 mulheres procuraram MP dizendo terem sido abusadas pelo médium; Depoimentos consistentes embasam investigação, diz especialista.
(HuffPost Brasil, 12/12/2018 – acesse no site de origem)
Começou com a holandesa Zahira Leeneke Maus, que na última sexta-feira (7), contou ao programa Conversa com Bial, da TV Globo, ter sido assediada pelo médium e líder espiritual João Teixeira de Faria, popularmente conhecido como João de Deus. Desde então, mais de 200 mulheres procuraram o Ministério Público afirmando também terem sido assediadas pelo médium.
A enxurrada de depoimentos se assemelha ao que ocorreu nos Estados Unidos com o movimento #MeToo (#EuTambém), desencadeado em outubro de 2017 após denúncias de assédio contra o poderoso produtor de Hollywood Harvey Weinstein.
O caso brasileiro expôs, nos últimos dias, a importância de tomar a iniciativa da denúncia em caso de assédio.
Uma das principais dificuldades enfrentadas em termos de processos penais é o fato de que nem todos os crimes sexuais deixam vestígios físicos. Mas quando as vítimas tornam públicos testemunhos homogêneos, consistentes e harmônicos entre si, a palavra dessas mulheres passa a ser o principal elemento de prova para iniciar as investigações.
Para Maíra Zapater, professora de Direito e membro do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena (FGV), os depoimentos consistentes já são provas suficientes para embasar uma investigação contra o agressor.
Nesta terça-feria (11), em entrevista ao G1, a holandesa que fez a primeira denúncia pública se disse “realmente aliviada de saber quantas mulheres se apresentaram desde [a exibição] do programa”. “Tenho um sentimento positivo, porque foi a razão pela qual decidi dar entrevista pela primeira vez. Foi para abrir a porta pela primeira vez para todas as mulheres e garotas que sofreram abuso se apresentarem. E isso aconteceu.”
Segundo Zapater, a legislação brasileira já tem o entendimento do relato da mulher como algo probatório por compreender que a imensa maioria dos crimes de violência sexual ocorre na ausência de testemunhas.
É o caso das vítimas de João de Deus. De acordo com os relatos, havia um método na atuação do médium, em que as mulheres eram assediadas em uma sala privativa.
As mulheres foram por conta própria até a instituição Casa de Dom Inácio, em Abadiânia (GO), em busca de curas para problemas pessoais. Na instituição, participaram de atendimentos em sessões coletivas e depois do primeiro contato, João de Deus pedia que elas se encontrassem com ele para um atendimento privado.
As mulheres eram encaminhadas para um escritório e ficavam sozinhas com o médium. No espaço, relataram terem sido assediadas por ele. Em seu depoimento, Zahira Leeneke Maus afirma ter sido penetrada por ele.
A importância da denúncia
A coreógrafa holandesa não falou nada sobre o assédio por 4 anos. Em seu relato, ela explica que preferiu manter o caso em silêncio por ter medo de ser perseguida e por saber que ele era um homem famoso e que “estava curando milhares de pessoas.”
“A gente ainda vê com muita frequência mulheres que tem medo de procurar as delegacias por medo de terem a sua palavra questionada, já que não podem apresentar nenhuma prova material da violência sofrida. E isso é uma falha que não é discutida nem mesmo nos cursos de Direito atuais”, diz Zapater. “Os profissionais chegam para lidar com essas situações completamente despreparados e não raro essas mulheres são constrangidas.”
As mulheres que enfrentam esse medo e resolvem denunciar o seu agressor contribuem para a produção de estatísticas sobre a violência de gênero no País e, sobretudo, para o combate da cultura do estupro.
“Denunciar é importante para que o Estado e a sociedade possam investigar por quais motivos crimes contra a mulher ainda ocorrem, como ocorrem e contra quem ocorrem. Mas além da relevância na produção de dados, a denúncia é relevante pois retira a vítima daquele lugar de ‘não tenho certeza do que aconteceu’ ou ‘eu devo estar louca'”, explica Maira Pinheiro, advogada criminal e membro da Rede Feminista de Juristas.
Segundo a advogada, é possível notar na maioria dos relatos de mulheres vítimas de violência a tentativa de justificar, de alguma forma, a atitude do agressor.
“É muito presente nas narrativas a busca por um elemento que explicaria por que ela sofreu isso. O que ela teria causado para o agressor ou como ela se colocou em uma situação que a sujeitou àquela violência”, diz Pinheiro.
“Se há, ainda, uma influência hierárquica do agressor em relação a vítima, ele vai se valer da manipulação para confundi-la a respeito do caráter violento de suas ações. É essa a cultura do estupro que está presente na formação da consciência das pessoas, inclusive das mulheres, e que resulta na dificuldade de compreensão que o que aconteceu com elas é sim um crime.”
Violência contra a mulher no Brasil
Em 2017, foram registrados mais de 60 mil casos de violência contra a mulher no País, mas como a taxa de subnotificação do crime é alta, esse número pode chegar até a 500 mil casos por ano. Em média, 530 mulheres acionaram a lei Maria da Penha por dia. Ou seja, cerca de 22 pedidos de ajuda por hora. * Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública |
Estruturas de acolhimento
Além de criar um ambiente seguro para que as denúncias aconteçam, o Brasil ainda precisa lidar com outro grande desafio: a construção de redes de proteção efetivas para as mulheres vítimas de violência.
“Em tese, os serviços dessas redes deveriam atuar profundamente integrados: serviços de saúde, de proteção social, de política de atendimento multidisciplinar, de incentivo à autonomia financeira das mulheres”, explica a advogada Maira Pinheiro.
“A perpetuação da violência contra a mulher, na maioria dos casos, decorre de uma situação de dependência que ela tem com o seu agressor, seja o seu pai, o seu companheiro, o seu líder espiritual ou o seu chefe. É preciso que os equipamentos públicos possam recebê-las, e não apenas durante a denúncia.”
Violência contra a mulher no mundo
A cada 6 horas uma mulher é vítima de feminicídio no mundo, de acordo com relatório da ONU. A pesquisa aponta que, em 2017, 87 mil mulheres foram vítimas de feminicídio e mais da metade delas (58%), cerca de 50 mil, foram mortas por conhecidos, companheiros, ex-maridos ou familiares. A conclusão é de que o lar é o ambiente mais violento para as mulheres. |
Próximos passos das denúncias contra o médium
Os relatos compartilhados até agora pelas mulheres servem como notícias-crime e informam as autoridades do que aconteceu. A partir daí, cabe a investigação e a apuração das suspeitas em relação a João de Deus.
“O Ministério Público oferece a denúncia para o juiz criminal e somente quando o juiz recebê-la é que o João de Deus passa a ser réu. Com a denúncia em mãos, o juiz poderá analisar se de fato ocorreu o crime”, explica Maíra Zapater.
Na última segunda-feira (10), a polícia de Goiás montou uma força-tarefa para investigar as acusações de violência sexual que teriam sido cometidas pelo médium. De acordo com o delegado-geral do estado, André Fernandes, apenas no último final de semana a delegacia recebeu outros 25 depoimentos.
O advogado Alberto Toron, que faz parte da defesa do médium, afirmou que o cliente nega as acusações. Ele disse estar à disposição da Justiça para esclarecimentos e critica a ausência de identificação das mulheres que dizem ter sido assediadas.
“Tem acusações, e é importante dizer isso, cujas vozes e a cara das pessoas não foram exibidas. Então veja você: não se ouve a voz, nem se vê o rosto. São coisas de mais de dez anos. Outras de quatro anos. É impossível sequer rememorar se ele conhece a pessoa e se a atendeu”, disse Toron em entrevista à Folha.
Até então, apenas duas vítimas tinham aceito ser identificadas: a coreógrafa holandesa Zahira Lieneke Mous, e da empresária paulistana Aline Saleh.
Por meio de nota, João de Deus rechaçou “veementemente qualquer prática imprópria em seus atendimentos”.
“Ele recebe com indignação a existência dessas declarações, mas o que eu quero esclarecer, que me parece importante, é que ele tem um trabalho de mais de 40 anos naquela comunidade, atendendo a todos os brasileiros, gente de fora do país, sem nunca receber esse tipo de acusação”, diz o texto.
Não silencie!
“Foi só um empurrãozinho”, “Ele só estava irritado com alguma coisa do trabalho e descontou em mim”, “Já levei um tapa, mas faz parte do relacionamento”. Você já disse alguma dessas frases ou já ouviu alguma mulher dizer? Por medo ou vergonha, muitas mulheres que sofrem algum tipo de violência, seja física, sexual ou psicológica, continuam caladas. Desde 2005, a Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180, funciona em todo o Brasil e auxilia mulheres em situação de violência 24 horas por dia, sete dias por semana. O próximo passo é procurar uma Delegacia da Mulher ou Delegacia de Defesa da Mulher. O Instituto Patrícia Galvão, referência na defesa da mulher, tem uma página completa com endereços no Brasil. Clique aqui. |