Os recentes fatos envolvendo o internacionalmente conhecido médium João de Deus nos conduz à reflexão sobre a natureza jurídica dos delitos por ele praticados e o forçoso reconhecimento de que deve ser reconhecida a imprescritibilidade destes, por se tratarem de crimes contra a humanidade.
(O Estado de S. Paulo, 27/12/2018 – acesse no site de origem)
Isto porque a pessoa que busca auxílio de natureza espiritual por razões de saúde física ou psíquica ou mesmo com o escopo de busca de sua paz interior se encontra em típica situação de vulnerabilidade, que não se confunde com antiga presunção de violência prevista, por se tratarem de conceitos jurídicos absolutamente diversos.
A vulnerabilidade pode ser entendida como componente (explícito ou implícito) de um sistema ou situação de fato, em correspondência com a qual as medidas psíquicas de proteção da vítima estão ausentes, que permite que o agressor comprometa seu nível de segurança física, psicológica, sexual e social. A vulnerabilidade pode ser individual ou coletiva, conforme a situação fática apresentada se refira a comportamento isolado, comunidade ou grupo de vítimas. Nessas hipóteses, o agressor, especialmente em casos de natureza sexual compromete o sistema psíquico individual ou da comunidade de referência, reduzindo ou eliminando o nível de proteção inerente a todos os seres humanos.
Nesse sentido, ao prever no Título VI- Dos Crimes Contra A Dignidade Sexual e no Capítulo I – Dos Crimes Contra A Liberdade Sexual o legislador pátrio tutela não apenas a liberdade sexual individual como também coletiva. Tratando-se de bem jurídico de natureza coletiva é irrelevante se perquirir sobre eventual consentimento da vítima, uma vez constatada a situação de vulnerabilidade coletiva.
A esse respeito o art. 215 do Código Penal estabelece o delito de “Violação sexual mediante fraude”, in verbis:
Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima.(Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009). Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
Da análise do modus operandi da conduta do médium João de Deus veiculado pela grande imprensa temos que o aproveitamento da situação de vulnerabilidade da vítima e da comunidade de referência está abarcada pela expressão “fraude” ou “outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vítima”. Ora, trata-se de simples interpretação analógica, uma vez que no elemento normativo mencionado se encontra previsto o conceito de abuso da condição de vulnerabilidade das vítimas individuais e coletivas que buscam auxílio espiritual e, portanto, com seus mecanismos naturais de defesa comprometidos.
A reiteração da conduta destinada à coletividade de pessoas que frequentavam o local em que exercia suas atividades implicam no reconhecimento da existência de verdadeiro delito contra a humanidade, consoante previsão do Estatuto de Roma que foi ratificado em nossa legislação pátria (art 7.º, 1, “g” do Decreto 4388, de 25 de setembro de 2008).
A esse respeito, cumpre destacar que o mencionado diploma legal tem como fundamentação justamente o fato de que: “Tendo presente que, no decurso deste século, milhões de crianças, homens e mulheres têm sido vítimas de atrocidades inimagináveis que chocam profundamente a consciência da humanidade”. Violam, portanto, os bens jurídicos coletivos paz, segurança e bem-estar da humanidade. Por conseguinte, suas previsões possuem status normativo em nosso ordenamento jurídico, dentre as quais se destaca a imprescritibilidade dos delitos praticados contra a humanidade (art. 29 do Decreto 4338/2008).
Ainda que nossos Tribunais não adotem a interpretação mencionada, o médium João de Deus estaria ainda sujeito em caráter complementar no caso de inação do Estado Brasileiro a julgamento pelo Tribunal Penal Internacional, devendo ser efetuada a sua entrega pelo Brasil, uma vez que tal instituto não se confunde com a extradição, esta sim com impedimento constitucional aplicável a brasileiros natos. Frise-se o caráter transnacional das vítimas dos delitos praticados que possuem como denominador comum a violação dos bens jurídicos de natureza coletiva “dignidade e liberdade sexual” e, portanto, sua natureza de direito humano fundamental de todos os indivíduos, especialmente das mulheres (cf. Celeste Leite dos Santos. A Dignidade e Liberdade Sexual Como Mínimo Vital a Dignidade da Pessoa Humana. In: Declaração Universal dos Direitos Humanos 70 Anos Depois. Porto, Juruá, 2018).
Em síntese, os delitos de natureza sexual tutelam não apenas a liberdade e dignidade sexual de determinada vítima, mas da coletividade de mulheres que frequentavam o local em que o médium exercia suas atividades. Houve, portanto, violação aos direitos humanos fundamentais de todas as mulheres vítimas da violação sexual, sem prejuízo e eventual caracterização de delitos mais graves. Desse modo, deve ser reconhecida a imprescritibilidade do jus puniendi nacional e internacional, uma vez que encontra previsão expressa no Estatuto de Roma.
Espera-se que estas breves reflexões possam auxiliar as autoridades locais e internacionais no cabal esclarecimento dos fatos ante as centenas de vítimas mulheres no cenário mundial noticiadas pela grande imprensa.
Celeste Leite dos Santos, associada do Movimento do Ministério Público Democrático, promotora de Justiça, doutora em Direito pela Universidade de São Paulo, especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM e coordenadora geral dos grupos de estudos do Ministério Público do Estado de São Paulo