Imobilidade tônica: o que é a resposta instintiva ao estupro que pode causar ainda mais desamparo às vítimas, por Mirtes Garcia Pereira, Camila Monteiro F. Gama, Eliane Volchan, Letícia Oliveira e Raquel M. Gonçalves

21 de outubro, 2025 The Conversation Por Mirtes Garcia Pereira, Camila Monteiro F. Gama, Eliane Volchan, Letícia Oliveira e Raquel M. Gonçalves

Ela sabia do que ele era capaz. Quando o ex-companheiro forçou a porta e avançou em sua direção, o corpo não reagiu. Não gritou, não empurrou, não correu. Ficou imóvel, como uma pedra. Enquanto o estupro acontecia, a mente estava consciente tentando sobreviver ao que o corpo já não podia evitar. Dias depois, diante da delegada, ela ouviu a pergunta que tantas mulheres escutam: “Mas por que você não fez nada?” Foi então que percebeu que sua paralisia, uma resposta automática ao terror, conhecida como imobilidade tônica, seria mais um obstáculo na busca por justiça e proteção.

A descrição acima é fictícia, mas reflete uma realidade que se repete. Já ouviu a expressão “se fingir de morto”? Vários animais paralisam seus movimentos quando nas garras de um predador. O nome científico dessa paralisia total é imobilidade tônica. Na verdade, o animal não está “fingindo de morto” pois essa é uma reação involuntária desencadeada em situação de risco de morte iminente, sobre a qual o animal não tem controle.

Nossos grupos de pesquisa do Laboratório de Neurofisiologia do Comportamento da Universidade Federal Fluminense, do Laboratório Integrado de Pesquisas sobre o Estresse e do Laboratório de Neurobiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro têm estudado a resposta de imobilidade tônica em pessoas diante de uma agressão como o abuso sexual e outros eventos traumáticos.

Somos um dos poucos grupos de pesquisa no mundo a estudar isso. A imobilidade tônica em humanos é um fenômeno biológico bem descrito mas ainda pouco divulgado e, em casos de estupro, pode ter implicações legais.

Um estupro a cada 6 minutos

Os dados mais atuais sobre violência sexual contra mulheres, crianças e adolescentes no Brasil são estarrecedores e representam o registro de um estupro a cada seis minutos durante todo o ano de 2023.

Por violência sexual entende-se qualquer ato que envolva contato sexual não-consentido, sendo este tentado ou consumado, ou qualquer ato que envolva o uso de coerção contra a sexualidade de outrem ( Art. 213 do Código Penal Brasileiro).

Vítimas de violência sexual podem apresentar vários sintomas físicos, como tensão muscular, problemas estomacais, sintomas emocionais, como medo, culpa e vergonha, além de psicológicos que incluem pesadelos e reações fóbicas a disparadores de lembranças do evento.

A observação deste conjunto de alterações a partir de uma pesquisa, datada da década de 70, que entrevistou 146 mulheres vítimas de estupro, levou à caracterização da síndrome do trauma de estupro.

A descrição desta síndrome foi uma das razões para o surgimento do diagnóstico de Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT), postulado no Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders (DSM-III de 1980). Com o tempo, sua definição passou a incluir diferentes tipos de eventos traumáticos.

Hoje, o TEPT é caracterizado pela exposição direta ou indireta a situações que envolvem morte, lesão grave ou violência sexual, e o diagnóstico pode ser feito se sintomas como reviver o trauma, evitar lembranças associadas, apresentar pensamentos e emoções negativas e manter um estado de alerta e irritabilidade aumentados persistirem por mais de um mês.

Vale destacar que eventos potencialmente traumáticos são comuns. Mais de 80% da população brasileira já foi exposta a pelo menos um evento desse tipo. Entretanto, apenas uma minoria dessas pessoas desenvolve TEPT, mas nas vítimas de violência sexual a proporção pode chegar a 55%.

Imobilidade tônica

A imobilidade tônica é uma reação defensiva involuntária à percepção de morte iminente. É caracterizada por profunda inibição motora e analgesia, sem perda de consciência, e é reversível.

Há décadas, vários estudos identificaram e caracterizaram esta reação em diversas espécies não humanas. Observou-se que, apesar de ser uma reação drástica que provoca um grande desequilíbrio na fisiologia do organismo, a mesma pode aumentar as chances de sobrevivência, pois um predador pode desistir da presa inerte ou se afastar para rechaçar um outro predador. O afastamento do predador permite a reversão da paralisia e a fuga da presa.

Estudos iniciais em humanos identificaram semelhanças entre a imobilidade tônica descrita em animais não-humanos e a chamada “paralisia induzida por estupro” observada em mulheres vítimas de violência sexual. Foi desenvolvida uma escala específica para avaliar a imobilidade tônica, e estudos indicam que essa reação pode atingir até 70% das vítimas de violência sexual quando avaliada logo após o trauma.

O estudo pioneiro de 2011, conduzido pelo grupo da professora Eliane Volchan (UFRJ), foi o primeiro a registrar parâmetros psicofisiológicos da imobilidade tônica em humanos. Utilizando estabilometria e eletrocardiograma, os pesquisadores avaliaram pacientes com TEPT enquanto ouviam um áudio com a descrição do próprio trauma e preenchiam a Escala de Imobilidade Tônica.

Aqueles que apresentaram maiores escores na Escala de Imobilidade Tônica, mostraram redução nas oscilações corporais, indicando rigidez postural, além de aumento da frequência cardíaca e redução na modulação benigna da atividade cardíaca.

Esses achados demonstraram que a imobilidade tônica humana tem características semelhantes às observadas em animais e pode ser evocada pela revivescência do trauma.

Acesse o artigo no site de origem.

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas