Em cidades em que não há peritas, vítimas são orientadas a se deslocar à capital, mas muitas desistem
(Folha, 12/03/2019 – acesse no site de origem)
Uma lei que obriga que crianças e adolescentes estupradas sejam periciadas por médicas legistas mulheres tem feito com que parte das vítimas fique sem atendimento no Rio de Janeiro, já que o número dessas profissionais no estado não é suficiente.
Aprovada em junho do ano passado, a lei estadual 8.008/2018 diz: “Sempre que possível, a vítima do sexo feminino será examinada por perito legista mulher, exceto em caso de menor de idade do sexo feminino, que deverá ser, obrigatoriamente, examinado por legista mulher”.
Esse último trecho, que desde então tem preocupado a comunidade de médicos legistas, deve ser debatido no Supremo Tribunal Federal nesta quarta-feira (13), após uma ação de inconstitucionalidade da Procuradora-Geral Raquel Dodge.
“A norma ofende a competência privativa da União para legislar sobre direito processual penal […]. Além disso, sustenta que a lei ofende o direito das crianças e adolescentes ao acesso à Justiça, assim como os princípios da proteção integral e da prioridade absoluta”, diz a ação.
Coincidentemente, deputados estaduais devem votar também na quarta uma proposta de modificação desse parágrafo. A ideia é retirar a frase, que, segundo o Cremerj (Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro), tem prejudicado tanto médicos quanto pacientes.
Questionada, a Polícia Civil não informou quantos legistas existem no estado nem qual é a proporção feminina —funcionários estimam que elas representem cerca de 20% do efetivo. Quase 70% das 4.173 vítimas de estupro no RJ em 2017 tinham menos de 18 anos.
“É algo que está acontecendo diariamente. A vítima chega e, quando não tem médica, temos que orientar que ela vá para a capital, mas na prática muitas acabam desistindo”, diz Raphael Câmara, conselheiro do Cremerj e perito no IML (Instituto Médico Legal) de Niterói, na região metropolitana.
Nessa unidade, por exemplo, há sete médicos responsáveis pelo atendimento, um para cada dia da semana, e só uma é mulher. Ou seja, uma paciente pode ter que esperar até uma semana para fazer o exame caso não queira se deslocar.
“Em Niterói ainda é fácil porque é só atravessar a ponte, mas imagina no interior”, afirma Câmara. “As provas têm que ser colhidas muito rapidamente, porque enquanto isso a mulher fica com esperma na vagina. Um espermatozoide dura três ou quatro dias, a pele debaixo da unha, pêlos, se perdem.”
Diante do problema, a própria Polícia Técnico-Científica recomendou oficialmente que, caso não haja médicas mulheres, os peritos colham uma autorização dos responsáveis pela vítima e façam o exame. O Cremerj, porém, critica o fato de que a responsabilidade ao violar a lei é do médico.
A Polícia Civil redistribuiu peritas e peritos pelas cidades após a aprovação da lei —antes a distribuição era aleatória. A legista Gabriela Graça, diretora da sede do IML na capital, diz que sua unidade tem sempre ao menos uma médica mulher, 24 horas por dia.
Segundo ela, a corporação defende que a vítima possa escolher se quer ser atendida por um homem ou se quer se deslocar, e que o atendimento por mulher não seja obrigatório.
O que causou certo tumulto, diz Graça, é que a lei foi feita sem consulta aos órgãos envolvidos. O projeto é de autoria do deputado estadual Carlos Minc (PSB), que afirma que essa obrigatoriedade não estava em seu projeto original e foi adicionada no dia da votação.
“Acabou sendo aprovada assim, não atentamos. Depois que passou um tempo, fui procurado pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública, que disseram que no interior não havia peritas suficientes”, afirma o parlamentar.
Em agosto, ele apresentou um novo projeto retirando a frase, apenas frisando que “sempre que possível, a vítima do sexo feminino será examinada por perito legista mulher”. Esse texto deve ser discutido nesta quarta pelos deputados.
Júlia Barbon